Ser ou não Ser Antissionista, o Dilema Shakespeariano do Partido Trabalhista do Reino Unido

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“Ser ou não ser, eis a questão.
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias
E, combatendo-o, dar-lhe fim?
(tradução de Millôr Fernandes)

Com a liderança de Jeremy Corbyn, esquerdista convicto e simpatizante da causa de um Estado Palestino, o Partido Trabalhista almeja voltar ao poder nas próximas eleições gerais no Reino Unido. Daí se explica a tentativa desesperada da mídia britânica de denegrir a imagem de Corbyn e do próprio partido, com acusações de antissemitismo.

Os ataques partiram dos movimentos judaicos de direita e da ala “blairista” do partido, com amplo respaldo da mídia, incluindo a rede pública BBC. Cabe lembrar que o Partido Trabalhista vinha sendo dominado internamente há anos pelos “blairistas”, termo usado em referência aos seguidores do ex-primeiro-ministro Tony Blair.  Para alguns, ele  deveria estar preso por crimes contra a humanidade, devido ao seu apoio ativo na invasão do Iraque e pela conivência com atos de tortura extremamente cruéis durante a chamada “guerra contra o terror”, conforme denúncias do ex-embaixador britânico Craig Murray (acesse aqui).

Internamente, o governo Blair representou a garantia da permanência do status quo de privilégios e desigualdades sociais herdados do sistema monárquico.

O ataque contra Corbyn começou de forma sistemática a partir do editorial conjunto intitulado Unidos Resistimos (United we Stand), publicado em 25 de julho na primeira página dos três mais importantes jornais judaicos do Reino Unido, Jewish Chronicle, Jewish News e Jewish Telegraph,  acusando o Partido de mostrar “desconsideração pelos Judeus e por Israel”, e alertando que um governo com a liderança de Corbyn representaria “uma ameaça existencial à vida dos judeus” (The Guardian, acesse aqui). O editorial foi especialmente crítico da decisão do Partido Trabalhista de adotar uma “versão diluída” da definição (e exemplos práticos) de anti-semitismo elaborada originalmente pela IHRA, a Aliança Internacional para a Recordação do Holocausto. A definição, que data de 2016, estabelece: “Antissemitismo é uma certa percepção dos judeus, que pode ser expressa na forma de ódio a eles. Manifestações físicas ou retóricas de anti-semitismo são direcionadas contra indivíduos, judeus ou não, e/ou suas propriedades, contra instituições comunitárias e locais religiosos”. Embora a Executiva Nacional do Partido Trabalhista aceite a definição, não concordava com quatro dos onze exemplos de comportamento antissemita definidos pela Aliança. 

Em particular, dois destes exemplos estão relacionados à críticas a Israel e são bastante controversos. “É potencialmente antissemita aplicar dois pesos e duas medidas ao requerer de Israel um comportamento que não seja cobrado de outra nação democrática”. Este exemplo tem sido usado para atacar o movimento BDS, de Boicote, Desinvestimento e Sanções, alegando que, se todas as nações que violarem direitos humanos não forem submetidas à sanções, então haveria motivação (de natureza) antissemita para punir apenas a Israel com o BDS. Cabe recordar que o BDS foi calcado no boicote à África do Sul, e ajudou a acabar com o regime de Apartheid. O outro exemplo polêmico, é que “constitui uma forma de antissemitismo declarar que Israel é uma empreendimento (instituição) racista (“racist endeavour”). Este segundo exemplo será abordado mais de uma vez neste artigo.

Alguns membros do próprio trabalhismo juntaram-se às críticas de que Corbyn não se mostrou firme em combater os casos de antissemitismo existentes no partido, chegando mesmo a acusar Corbyn de racista e de antissemita. Muitos jovens judeus que apoiam o Partido Trabalhista em questões sociais se sentem desconcertados com a crise entre o partido e as lideranças judaicas do país. Por outro lado, não se sentiriam confortáveis migrando para o Partido Conservador, que vem sendo acusado de Islamofobia (The Guardian, acesse aqui).

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Protesto de judeus contra Corbyn  

A questão do “antissemitismo no Partido Trabalhista” passou a dominar a mídia do Reino Unido e também de Israel. Mesmo no jornal de esquerda de Israel, Haaretz, foram publicadas críticas à Corbyn (acesse aqui). O jornalista britânico Anshel Pfeffer, que contribui regularmente no Haaretz, escreveu o artigo “Por que o Corbynismo é uma Ameaça aos Judeus do Ocidente”, publicado em 3 de agosto, ressaltando que Corbyn estaria se  recusando a intervir na prejudicial crise interna para tratar do antissemitismo no Partido, contra a opinião de seus próprios aliados. O autor avalia ainda que “por ser Corbyn o único líder de esquerda  radical e verdadeiramente socialista do Ocidente”, existe o risco inerente que “a chegada (do Partido Trabalhista) ao poder nas próximas eleições gerais fará com que sua ideologia (antissemita?) se torne altamente influente por toda a Europa e América”. 

Para os apoiadores das alterações feitas nas normas da IHRA, a preocupação é que alguns dos exemplos estipulados de antissemitismo possam servir para negar aos Palestinos o direito de denunciar a discriminação e as injustiças sofridas. Desde que as diretrizes da IHRA foram adotadas no Reino Unido em dezembro de 2016, mesmo sem ter efeito legal, elas já teriam sido aplicadas para atingir organizações que apoiam os direitos dos Palestinos.

Em artigo publicado no The Guardian em 3 de agosto (acesse aqui), Corbyn se defende, ressaltando “a importância da sociedade britânica multicultural, e da imensa contribuição feita por judeus, homens e mulheres, em todos os aspectos da vida do país, da arte à ciência, indústria e política, na paz e na guerra…….e no movimento trabalhista ao longo da nossa história”. Ele declara: “Em nenhum momento aceito que um governo trabalhista represente ameaça, muito menos existencial à vida dos judeus no país, como três jornais judaicos recentemente publicaram….Mas reconheço que existe um problema real (de antissemitismo), que o partido está procurando resolver”. Corbyn ainda acrescentou: “nos anos 70, alguns na esquerda equivocadamente argumentavam que ‘Sionismo é racismo’. Aquilo estava errado. Mas afirmar agora que ‘Antissionismo é racismo’ também está errado”.

Com a recente aprovação no parlamento Israelense da Lei Básica do Estado-Nação, que torna constitucional a discriminação contra a população não Judaica de Israel, caso a definição e exemplos de práticas antissemitas, conforme definidos pela IHRA, sejam estritamente seguidos, críticas na Inglaterra à esta polêmica legislação podem ser rotuladas de práticas antissemitas. Entretanto, antissemitismo é uma acusação que não pode ser aplicada no caso da Dama inglesa Vivien Duffield, possivelmente a maior benemérita de Israel, que em entrevista ao Haaretz (acesse aqui) declarou “Meu Israel está morto. (Agora) É Apartheid!  Para os ingleses que se recordam da África do Sul, isto (a Lei do Estado-Nação) é a África do Sul. Uma regra para um grupo (étnico) e uma outra para o outro”. Acrescente-se que Dama Duffield está muito distante de poder ser considerada como simpatizante de Corbyn. 

Não são apenas críticas que Corbyn vem recebendo. Em carta publicada no britânico The Guardian, com o título “Parem o julgamento de Corbyn na mídia por antissemitismo”, quarenta acadêmicos seniores condenaram o que consideram ser uma cobertura tendenciosa da questão do antissemitismo (acesse aqui). Os signatários criticaram a omissão da mídia na cobertura das manifestações de judeus em prol de Corbyn, por seu reconhecido histórico anti-racista, salientando que a mídia deveria estar mais preocupada com o crescimento do antissemitismo em países da Europa, como a Hungria. O texto da carta faz uma associação das críticas a Corbyn com o fato dele estar bem posicionado para se tornar o próximo primeiro-ministro do país. Os signatários ressaltam que as fontes de informação a que a mídia britânica recorre consistem de conhecidos opositores de Corbyn.

Outro importante apoio a Corbyn foi a declaração conjunta de quarenta grupos judaicos de 15 países diferentes, condenando as tentativas de abafar críticas às políticas de ocupação (de terras) por Israel com falsas acusações de antissemitismo (The Independent, acesse aqui).

Segundo a declaração, a própria definição de antissemitismo da IHRA, cada vez mais adotada pelos governos do Ocidente, foi elaborada de forma intencional, com o intuito de suprimir a luta pelos direitos dos Palestinos, servindo também para blindar Israel de prestar contas perante as leis internacionais de (violações de) direitos humanos. Nos Estados Unidos a Lei de Conscientização do Antissemitismo teria o mesmo objetivo. Os signatários da declaração consideram ainda que, não apenas a luta por justiça para os Palestinos fica prejudicada ao se rotular de antissemitismo críticas às políticas discriminatórias de Israel, mas também a própria luta contra o (real) antissemitismo.

Em artigo de Ian Almond, escritor britânico especialista em culturas Orientais, publicado na Al Jazeera, é analisado exatamente o perigo de se considerar como  antissemitismo críticas feitas ao Sionismo (acesse aqui).   Ele pondera que o desvio proposital no uso do termo antissemitismo traria o risco de descaracterizar seu significado (ficando com isto agradecidos os reais  antissemitas). O jornalista vê ainda como perturbadores vários aspectos da cobertura pela mídia, pela quase completa ausência de um debate crítico, bem como o posicionamento quase geral dos comentaristas e entrevistados na televisão, de que o antissemitismo é um problema exclusivo do Partido Trabalhista, quando na verdade ele estaria presente em todo o espectro partidário.

A campanha de Israel contra os opositores de sua política para com os Palestinos não poupa nem aos judeus dissidentes. Foi o caso da detenção para interrogatório no aeroporto Ben Gurion, do jornalista americano Peter Beinert, que anteriormente expressara publicamente seu apoio ao boicote de produtos oriundos dos assentamentos judaicos na Cisjordânia ocupada (Haaretz, acesse aqui). O boicote direcionado apenas aos produtos e serviços associados aos assentamentos de colonos judeus considerados ilegais pela ONU, portanto uma ação menos radical que o BDS, também era a proposta do jornalista e ativista israelense Uri Avnery, falecido recentemente aos 94 anos, mas o histórico de décadas de lutas a favor de um Estado Palestino independente e estatura moral de Avnery o colocavam imune a retaliações de Benjamin Netanyahu, o radical primeiro-ministro de direita de Israel. Avnery defendia que o BDS tinha efeito prejudicial à causa palestina exatamente por fortalecer a direita israelense.

A formidável pressão da mídia sobre o Partido Trabalhista resultou,  em 4 de setembro, na aceitação pela Executiva Nacional de todos os exemplos de comportamento antissemita, conforme estipulados pela IHRA. Foi recusado um adendo proposto por Corbyn às definições da IHRA, de que “não deveria ser considerado antissemitismo descrever como racistas a Israel, suas políticas ou as circunstâncias de sua fundação pelo impacto discriminatório que tiveram, ou ainda apoiar um acordo diferente para a solução do conflito Israel-Palestina”.  Foi, no entanto, aprovada a inclusão de uma cláusula assegurando o direito de livre expressão sobre os direitos dos Palestinos.

O professor Colin Shindler, professor da London University, em artigo publicado no jornal Haaretz (acesse aqui), analisou as consequências do adendo proposto por Corbyn, se aprovado. Shindler avalia que, na visão de Corbyn, “Israel nasceu de um ‘empreendimento racista’ que visou expulsar Árabes Palestinos”. Ainda segundo o autor, a implicação é que devido a este ‘pecado original’ na criação, Corbyn consideraria que Israel não tem direito a sua auto-determinação, e que isto teria que ser levado em consideração em um futuro acordo de resolução do conflito.

Como evidência que a crise interna está longe de ser amenizada, a cláusula de liberdade de expressão passou a ser alvo de ataque de alguns grupos trabalhistas ligados a Israel, ainda com respaldo da mídia, por considerarem que ela daria cobertura a manifestações racistas contra os judeus.

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Cartaz espalhado em Londres  acusando Israel de racismo 

Por outro lado, organizações de apoio aos Palestinos criticaram o que consideraram ser um recuo do Partido Trabalhista, aceitar os ditames da IHRA e, em protesto, espalharam por Londres cartazes com os dizeres “Israel é uma Instituição Racista”.  O Labour Party está descobrindo que o preço a pagar poderá ser muito alto para a chegada ao poder. Corbyn precisará resolver seu dilema Shakespeariano: “ceder e sofrer na alma, ou pegar em armas contra o mar de angústias e, combatendo-o, dar-lhe fim”.


 

3 comentários em “Ser ou não Ser Antissionista, o Dilema Shakespeariano do Partido Trabalhista do Reino Unido

  1. Rosenthal,
    parabéns pelo blog. Belo texto na forma e no conteúdo. O modo de colocar e abordar o assunto, embora descritivo, induz o leitor a identificar a opinião do autor sobre o tema. Eu concordo com ela. O lobby sionista tenta travar qualquer discussão favorável aos direitos palestinos e dos árabes israelenses em qualquer parte do mundo e, principalmente nos centros políticos, econômicos e culturais do mundo.
    No partido trabalhista inglês, a ação desses lobbies se soma a ações partidárias externa e interna. No front externo, o partido conservador e a mídia conservadora associada tentam impedir a ascensão de Corbyn, visto que esse redirecionou o partido para a discussão econômica contrária à linha conservadora e à própria linha introduzida por Blair, conhecida como terceira via. Isso colocava o Labour como linha auxiliar dos Tories em assuntos econômicos. No front interno, a turma de Blair não se conforma de perder o controle do partido e continua a luta, sempre com a ajuda da mídia conservadora, que amplifica todo tipo de confronto interno. Mas já foi pior. Foi a base do partido trabalhista, liderada pela juventude, que garantiu Corbyn na liderança.

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