Por Ruben Rosenthal
O general McKenzie se contentará em ser um observador da evolução das negociações entre Estados Unidos e Irã sobre o acordo nuclear ou tentará sabotá-las, com a ajuda de Israel?

Com o intuito de aumentar sua influência e poder no meio militar o general Kenneth Franklin McKenzie Jr., chefe do CENTCOM¹ – Comando Central dos Estados Unidos, procurou acirrar a crise EUA-Irã. O objetivo do general foi trazer de volta o foco militar principal dos EUA para o Golfo Pérsico e Oriente Médio, área de atuação de seu Comando.
Com astúcia ímpar, Frank McKenzie soube usar a mídia, mesmo ao custo de elevar as tensões no Golfo Pérsico a níveis próximos da confrontação militar direta. O risco seria ainda maior caso Israel se aproveitasse de uma crise fabricada artificialmente para acender o pavio, através de um ataque camuflado de falsa bandeira (false flag). A região entraria em conflito bélico, do qual Israel provavelmente não hesitaria em participar, atacando alvos estratégicos iranianos.
Os líderes iranianos têm sabido responder a provocações, sem deixar a crise escalar a ponto de tornar-se irreversível a deflagração de um confronto generalizado. As retaliações contra os EUA, como após o assassinato do general Soleimani em janeiro de 2020, têm ocorrido no campo da guerra híbrida, sem o envolvimento direto de contingentes iranianos e sim de ações de milícias parceiras, como o Hezbollah.
Artigo do historiador e jornalista investigativo Gareth Porter² no The Grayzone revela detalhes de como o general McKenzie vem atuando por ambição pessoal, desde que assumiu o comando do CENTCOM em março de 2019. Porter relata como nas últimas semanas do governo Trump, McKenzie fomentou as tensões EUA-Irã, sem que tivessem partido de Teerã ameaças concretas às tropas norte-americanas estacionadas no Oriente Médio.
Para alcançar seus objetivos o general McKenzie precisava reverter a estratégia de segurança nacional do governo Trump, voltada para a competição com a Rússia e a China, “países que desafiam os interesses, influência e o poder norte-americano”.
Mais armas e tropas para conter o Irã
Em maio de 2019, o general já recomendava pela volta a uma maior presença de forças dos EUA no Oriente Médio para ajudar na contenção de ameaças iranianas, conforme publicado pelo Wall Street Journal. Além de tropas, foi solicitado o envio do porta-aviões USS Abraham Lincoln, bombardeiros e um sistema antimísseis. O USS Abraham Lincoln permaneceria no Golfo Pérsico até novembro do mesmo ano
Em junho de 2019, McKenzie declarou à imprensa que “a ameaça representada pelo Irã fora estabilizada…. mas que os perigos permaneciam reais e um ataque poderia ser iminente”. O novo artigo no Wall Street Journal acrescentou que McKenzie estava pretendendo expandir ainda mais o poderio militar estadunidense na região para conter o Irã.
Em 31 de dezembro, o Hezbollah cometeu um atentado contra o complexo da embaixada dos EUA em Bagdá, em retaliação contra ataques aéreos dos EUA dias antes. Foi exatamente este ataque à embaixada que levou Trump a ordenar a ação que resultou no assassinato do general iraniano Soleimani no início de 2020, e as retaliações subsequentes pelo Irã.
McKenzie tentou manter o máximo de tropas na ocupação no Iraque, com o pretexto do combate ao ISIS. Entretanto, com o assassinato de Soleimani o Iraque pediu a retirada de todas as tropas norte-americanas do país. Ao mesmo tempo, milícias alinhadas com o Irã aumentaram os ataques, inclusive o que foi efetuado com foguetes contra o Campo Taji em 11 de março, e que resultou na morte de dois militares norte-americanos.
Em 13 de março, Frank McKenzie testemunhou perante um comitê do Senado norte-americano. Quando da audiência, o general já estava por completar 12 meses à frente do CENTCOM. O ataque que ocorrera na véspera da audiência desafiara a noção de que a ameaça representada pelo Irã aos interesses norte-americanos havia sido contida.
O testemunho foi divulgado pelo setor de mídia do CENTCOM. O general McKenzie apresentou um relatório das ações bélicas realizadas por Teerã ou milícias parceiras contra alvos norte-americanos ou de seus aliados regionais.
O general foi questionado pelos senadores sobre a incapacidade das 14.000 tropas adicionais enviadas à região em conter o Irã e seus apoiadores, que prosseguiam nos ataques contra alvos norte-americanos e nações aliadas. Cerca de 90.000 tropas se encontravam então sob o controle do Comando Central dos EUA.
Em resposta, McKenzie declarou que a nível de estado-estado a contenção do Irã fora alcançada. E que, mesmo não havendo então risco iminente de ataques diretos de mísseis vindos do Irã, as ações iranianas continuariam de forma indireta através dos parceiros de Teerã.
No decorrer de 2020, parte das 90.000 tropas sob a jurisdição do Comando Central foram enviadas para a Ásia Oriental ou Europa, conforme relatado por Porter em seu artigo. Esta mudança estava em linha com a prioridade da administração Trump na competição com a China e Rússia, e não mais na “guerra ao terror”.
Os ataques das milícias contra bases norte-americanas aumentaram entre março e agosto de 2020. Pressionado, McKenzie se viu então obrigado a retirar suas tropas e repassar as bases para o controle do Iraque. Conforme relatado no PODER360, McKenzie anunciou em setembro que o contingente no Iraque seria reduzido de 5.200 para 3.000 militares. Mas também em setembro o porta-aviões USS Nimitz entrou no Golfo Pérsico, o primeiro após a partida do USS Abraham Lincoln.
Em meados de novembro, Trump decidiu reduzir ainda mais as tropas no Afeganistão e Iraque, passando o contingente em cada país para 2.500 militares, conforme relatado por Gareth Porter. McKenzie e seus aliados resolveram então que chegara a hora de acirrar ainda mais a crise com o Irã, fomentando o temor de que o país estava planejando atacar alvos norte-americanos.
Cronologia do agravamento das tensões EUA-Irã
16/11/2020: O New York Times publicou que setores militares estavam preocupados com possíveis ataques, coincidindo com o primeiro aniversário da morte de Soleimani em janeiro de 2021. Na ocasião, Trump foi desaconselhado por seus assessores mais próximos a atacar instalações nucleares do Irã, para evitar um conflito em larga escala.
17/11/2020: O Washington Post bateu na mesma tecla do aumento das tensões com Teerã, após novo ataque de milícias pró-Irã contra o complexo da embaixada dos EUA em Bagdá. O artigo cita declarações de um “oficial sênior dos EUA que falou na condição de anonimato”, sobre os riscos de ataques preventivos ao Irã.

21/11/2020: Um esquadrão com duas fortalezas voadoras B-52 voou para o Golfo Pérsico, tendo como única justificativa por parte do Comando Central dos EUA, a proximidade com o aniversário do assassinato de Soleimani.
07/12/2020: McKenzie prosseguiu com seu trabalho junto à mídia. Um “oficial sênior, com conhecimento na região” ressaltou a necessidade de um novo esquadrão de caças a jato e a permanência do USS Nimitz na região. A agência Associated Press citou que “um oficial sênior dos EUA, com conhecimento na região”, declarou que o Irã poderia tirar proveito da retirada de tropas do Iraque e do Afeganistão.
10/12/2020: De forma provocativa, bombardeiros B-52 sobrevoaram o Golfo Pérsico em uma região próxima ao espaço aéreo do Irã, aumentando a tensão entre os dois países. A matéria foi publicada no New York Times com o título: “Para conter ataques iranianos às tropas dos EUA, o Pentágono ordena voos de B-52 ao Oriente Médio”.
20/12/2020: Ocorreram ataques com foguetes na chamada zona verde da capital iraquiana, que chegaram a atingir o complexo da embaixada norte-americana sem, no entanto, causar vítimas. O site do CENTCOM atribuiu o ataque a grupos de milícias apoiadas pelo Irã.
21/12/2020: A marinha dos EUA anunciou que o submarino nuclear USS Georgia, que pode levar até 154 mísseis Tomahawk, e dois cruzadores com mísseis guiados atravessaram o estreito de Hormuz, entrando no Golfo Pérsico. Mais uma vez foi levantada por “oficiais dos EUA” a possibilidade do Irã aproveitar o aniversário do assassinato do general Soleimani para atacar alvos norte-americanos.
22/12/2020: Na sequência do ataque com foguetes à embaixada dos EUA em Bagdá, Frank Mckenzie procurou o jornalista Luiz Martinez da ABC News. Conforme transcrito no site do CENTCOM, o general declarou que acreditava no risco de ataques por parte de grupos xiitas apoiados pelos iranianos, com a intenção de forçar a saída das tropas norte-americanas do Iraque, mas que o Irã não deseja a guerra com os EUA.
30/12/2020: O Secretário de Defesa Christopher Miller decidiu não estender a permanência do porta-aviões Nimitz no Golfo Pérsico, desta forma enviando um sinal a Teerã da intenção dos EUA de amainar a crise, segundo a CNN. McKenzie, em posição contrária a de Miller, vinha pressionando pela não retirada do Nimitz da região.
Entretanto, também em 30 de dezembro bombardeiros B-52 se dirigiram ao Golfo Pérsico, em mais uma demonstração de força pelos Estados Unidos. McKenzie foi enfático ao declarar que “sua intenção era deixar evidente a capacidade de resposta a qualquer agressão dirigida contra os interesses norte-americanos”.
Ainda segundo a CNN as mensagens conflitantes poderiam refletir divisões internas no Pentágono. Um “oficial sênior da defesa” (não identificado) declarou que “não existe qualquer evidência que sugira a iminência de um ataque pelo Irã”. Já outro “oficial militar sênior”, também não identificado, destacou que “estamos vendo planejamentos (pelos iranianos) que poderão matar vários norte-americanos”.

03/01/2021: O Pentágono decide que o porta-aviões Nimitz deve permanecer no Golfo Pérsico devido à “ameaça” iraniana. Miller foi forçado a reverter sua decisão, no que representou uma vitória significativa para McKenzie.
07/01/2021: Ocorre outro sobrevoo de fortalezas B-52 no Golfo, apesar de não terem ocorrido quaisquer incidentes no aniversário do assassinato de Soleimani. Nova vitória de McKenzie sobre o Secretário de Estado Miller.
14/01/2021: O Pentágono informou que Israel passaria a integrar a estrutura do CENTCOM, saindo do EUCOM, o Comando Europeu dos Estados Unidos, conforme noticiado pelo Wall Street Journal. Agora o CENTCOM não poderia mais alegar desconhecimento quando Israel atacar alvos na Síria e Iraque, analisou o Jerusalem Post. Com esta mudança ao final de seu governo, Trump espera prejudicar as negociações sobre o acordo nuclear que Joe Biden anunciou que pretendia retomar.
Biden e o acordo nuclear com o Irã
A administração Biden resolveu que já era hora do Nimitz retornar aos Estados Unidos. No entanto, as missões dos B-52 no Golfo ainda seriam mantidas como demonstração de força, segundo relato no New York Times em 1 de fevereiro. O artigo acrescentou ainda que o especialista Robert Malley será enviado ao Irã para abrir negociações sobre a questão do enriquecimento de urânio e das atuais sanções econômicas.
Esta mudança na política norte-americana desagradou a Israel. O general israelense Aviv Kochavi alertou Biden para não retomar o acordo nuclear, e ao mesmo tempo ordenou que suas forças aumentassem os preparativos para possíveis ações futuras contra o Irã.
Resta ver como Frank Mckenzie e seus apoiadores no Pentágono irão lidar com a possibilidade de um um alívio nas tensões entre Estados Unidos e Irã que, se concretizado, diminuiria a influência de McKenzie. O general se contentará em ser um observador da evolução das negociações entre Estados Unidos e Irã sobre o acordo nuclear ou tentará sabotá-las, com a ajuda de Israel?
Notas do autor.
- O CENTCOM está sediado na Base Aérea de MacDill, Flórida. Trata-se de um comando unificado de combate, abrangendo uma área de responsabilidade que inclui a região conhecida como Chifre da África, o Oriente Médio, o Golfo Pérsico, a Ásia Central e partes do Sul da Ásia, em um total de 28 países, com a entrada de Israel.
- Gareth Porter recebeu o Prêmio Martha Gellhorn de jornalismo em 2012.
O autor é professor aposentado da UENF, e responsável pelo blogue Chacoalhando.