Aborto nos EUA: a solução está no aumento de juízes da Suprema Corte?

Por Ruben Rosenthal

Restaurar o equilíbrio entre conservadores e liberais na Corte, talvez seja a única forma de reverter o progressivo aumento da cisão na sociedade norte-americana.

Abortion is a extremely divisive theme for the north-americanssive
Manifestantes contra e favor da legalização do aborto. A sociedade norte-americana se encontra dividida.

Conforme já era esperado, a Suprema Corte norte-americana decidiu por 5 a 4 reverter o caso Roe vs. Wade que estabelecera o direito constitucional ao aborto em 1973, com base na 4a e 14a emendas da Constituição. Agora os estados poderão estabelecer legislações específicas. Estima-se que em 26 estados do país o aborto será proibido ou terá severas restrições.

As mudanças afetarão principalmente mulheres de baixa renda, que não terão condições financeiras de viajar para outros estados para interromper a gravidez. Algumas empresas, como a Amazon e a Apple, já anunciaram que pagarão as despesas de suas funcionárias que precisarem viajar.

Mas outras liberdades civis também poderão ser afetadas com a nova interpretação da Corte de maioria conservadora. Voltam a surgir no país vozes de peso que defendem o aumento no número de juízes da Corte, de forma a restabelecer o equilíbrio entre liberais e conservadores.

As hesitações de Biden

Na sequência da decisão da corte, Biden se limitou a declarar que “os eleitores terão a palavra final”. Este posicionamento indicou que a intenção do presidente era de capitalizar em cima do drama de milhares de mulheres, visando atrair votos para o partido Democrata nas eleições legislativas de novembro próximo. Mas o presidente parece ter se dado conta que, ao contrário, este posicionamento dúbio estava trazendo imenso desgaste político, no momento em que seu apoio popular já se encontra bastante prejudicado pela alta inflação, que está próxima dos dois dígitos.

Em 30 de junho, após criticar o “comportamento vergonhoso” da Suprema Corte, Biden declarou que irá impedir que a oposição obstrua a votação no Senado que garantiria o direito ao aborto em todo o país: “Temos que codificar Roe vs. Wade na lei, e a forma de conseguir é garantindo que o Congresso faça isso”, disse Biden. “E se a obstrução (pela oposição) for atrapalhar, será como no (caso do) direito ao voto, nós criaremos….uma exceção à obstrução (específica) para essa ação.”

Só que Biden parece se esquecer que, no caso da votação da reforma eleitoral ocorrida em janeiro deste ano, dois senadores democratas “problemáticos”, Joe Manchin e Kyrsten Sinema, se posicionaram com os republicanos, e a legislação não foi aprovada. No caso da questão do aborto, Biden e a liderança democrata precisarão negociar muito para superar a dissidência interna no partido.

A 14a emenda

A 14a emenda foi criada em 1868, no pós-guerra civil nos EUA, para impor aos estados do Sul escravocrata direitos individuais aos ex-escravos.  Conforme lembrou o professor Rafael Ioris, no programa Agenda Mundo, ao longo do século 20, a 14a emenda foi interpretada para garantir a ampliação de direitos individuais, como a dessegregação nas escolas (1954), e estendeu o direito à privacidade (estabelecido pela 4a emenda) ao direito ao aborto (1973), e, posteriormente, ao do casamento entre pessoas do mesmo sexo (2015).

Ioris ressaltou ainda que estes direitos não estão explicitados na Constituição: “A interpretação que foi concedida do direito ao aborto nunca foi absoluta, tanto que possibilitou que os estados regulamentassem de forma diversa sua aplicação. Por se tratar de uma interpretação (da emenda), mudanças na composição da Suprema Corte podem rever decisões anteriores.”

Obama e Biden não cumpriram promessas de campanha

Conforme o ativista político e youtuber Jimmy Dore ressaltou em seu programa, quando das últimas eleições presidenciais em 2020 Biden declarou que, se eleito, enviaria imediatamente para votação no Congresso a codificação da decisão da Corte no caso Roe vs Wade, o que não ele não fez. A codificação da lei do aborto pela autoridade federal invalidaria quaisquer leis estaduais anti-aborto que estivessem em conflito com as cláusulas da lei federal.

Antes dele, Barack Obama também dissera que a primeira coisa que faria como presidente seria assinar o ato da “liberdade de escolha”. Naquela ocasião Obama dispunha de maioria expressiva tanto na Câmara como no Senado, o que não é o caso de Biden agora.

Atualmente, a maioria democrata na Câmara é de 220 a 210, enquanto que no Senado 50 assentos são ocupados pelos republicanos, 48 pelos democratas, e 2 por independentes que votam com os democratas. Em caso de empate 50-50, a decisão cabe ao voto da vice-presidente, Kamala Harris. No entanto, a atual maioria democrata no Senado é ilusória, já que os republicanos podem fazer uso do mecanismo de obstrução (filibuster, em inglês), válido para casos polêmicos.

A obstrução no Senado

Para que uma legislação seja aprovada no Senado sem sofrer obstrução pela oposição, é necessário que uma maioria qualificada de 60 votos seja alcançada. No passado, o mecanismo de obstrução já foi utilizado para barrar a aprovação de projetos de lei que visavam combater a discriminação racial, conforme relatado pelo Centro Brennan por Justiça (Brennan Center for Justice), um think tank progressista norte-americano da área advocatícia.

Quando o projeto de lei chega ao plenário para votação após a conclusão dos debates, basta uma maioria simples de 51 votos para aprová-lo. Entretanto, a oposição pode estender indefinidamente os debates, de forma obstrutiva, a não ser que o projeto alcance um mínimo de 60 votos. Biden anteriormente se posicionara contrariamente aos apelos vindos da ala liberal do Partido Democrata para que fosse abolido de vez o mecanismo da obstrução.

Por vezes, alguns tipos de leis foram isentadas da regra, como em acordos comerciais. Biden tentou criar uma exceção para o caso da reforma eleitoral e não conseguiu. E agora ele declara que vai garantir uma exceção para tornar lei federal o parecer do caso Roe vs Wade. Um possível complicador é que codificar Roe vs Wade significaria ignorar decisões da Suprema Corte posteriores a 1973, que possibilitaram a estados governados por conservadores impor algumas restrições ao aborto. É possível, e mesmo provável, que os senadores Manchin e Sinema não aceitem que Roe vs Wade se torne lei federal, se ficarem de fora as restrições posteriores aceitas pela Corte.

Existe um plano B?

Não está claro ainda se Biden está buscando alternativas, caso não consiga negociar um consenso com os dissidentes democratas. Enquanto esta situação não se define, uma alternativa relativamente simples de ser implementada a curto prazo foi sugerida pela congressista Alexandria Ocasio-Cortez: que nos estados em que o aborto seja totalmente proibido ou sofra fortes restrições, a interrupção da gravidez possa ser conduzida em clínicas estabelecidas em espaços que estejam sob jurisdição federal.

Esta seria evidentemente uma solução emergencial, pois é provável que um futuro presidente republicano viesse a reverter a medida. E esta é a perspectiva que se coloca já para 2024, caso os Democratas não consigam recuperar o apoio que vem perdendo desde a posse de Biden.

Mas a questão da proibição do aborto não é a único trauma que poderá afligir amplos setores da sociedade norte-americana. Com a nova interpretação da14a emenda pela Suprema Corte ficou também aberto o caminho para que outros direitos já estabelecidos sejam revertidos, como o casamento de pessoas do mesmo sexo e o controle de natalidade.

Falta legitimidade à Suprema Corte dos EUA

Na origem dos atuais problemas está a expressiva maioria conservadora na Suprema Corte (6 a 3), alcançada principalmente através de um lobby intenso de grupos bancados por bilionários, conforme detalhado em artigo anterior do blog.

No governo Obama, um doador desconhecido contribuiu com 17 milhões de dólares para barrar a indicação do juiz Merrick Garland para a Suprema Corte, e apoiar posteriormente a indicação de Neil Gorsuck para a mesma vaga, já na administração Trump. Em 2018, o grupo Judicial Crisis Network recebeu possivelmente do mesmo doador outros 17 milhões para intermediar apoio à indicação de Brett Kavanaugh, que precisou superar acusações de que cometera abusos sexuais na juventude.

Outro grupo atuante é a Federalist Society, uma influente organização de advogados conservadores e ultraliberais, com ligações próximas a juízes da Suprema Corte. O advogado Leonard Leo, então vice-presidente executivo da entidade, foi o principal articulador do plano para garantir a indicação de juízes conservadores para as cortes federais, como também para influenciar no desfecho de causas. Detalhes da estratégia adotada foram relatados pelo jornal The Washington Post, em artigo de maio de 2019.

Para a senadora democrata Elisabeth Warren, que foi pré-candidata nas eleições presidenciais de 2020, a solução estaria em expandir a Corte: “Acredito que precisamos restaurar a confiança em nossa Corte, e isso significa que precisamos de mais juízes na Suprema Corte dos Estados Unidos. Já aconteceu antes. Fizemos isso antes e precisamos fazê-lo novamente.”

De fato, isso já foi feito antes, por 7 vezes. O artigo 3 da Constituição dos Estados Unidos, na seção 1, concede esta autoridade ao Congresso. Restaurar o equilíbrio entre conservadores e liberais na Corte, talvez seja a única forma de reverter o progressivo aumento da cisão na sociedade norte-americana. Resta ver se Biden conseguirá se superar e estar à altura da gravidade do atual momento.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Ucranianos morrem para os Democratas não perderem votos

Por Ruben Rosenthal

Biden parece estar mais interessado em não prejudicar eleitoralmente o Partido Democrata do que nas mortes e sofrimento do povo ucraniano com o prolongamento da guerra que financia.

Xadrez da geopolítica EUA-Rússia
A Ucrânia é peça importante no xadrez da geopolítica Rússia-Estados Unidos / Foto: Relatório Rand Corporation

A desinformação propagada pela mídia ocidental, difundindo uma suposta incompetência dos militares russos, não consegue ocultar que as forças de combate russas estão próximas de expulsar das repúblicas separatistas do Donbass as tropas do governo central de Kiev, compostas principalmente de milícias de extrema-direita e mercenários estrangeiros. Ao mesmo tempo, foi conquistado um amplo corredor terrestre conectando Crimeia e Rússia.

Faltam ainda a ser alcançados outros objetivos estabelecidos inicialmente por Putin, como a desmilitarização e desnazificação da Ucrânia, bem como o não ingresso na OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, e a garantia de neutralidade do país com o qual a Rússia faz fronteira por uma extensão de cerca de 2.700 quilômetros.

A questão que se colocará em breve é se Moscou se dará por satisfeita com a liberação do Donbass e com outras metas já alcançadas, ou se o conflito entrará em uma nova fase, com consequências imprevisíveis para a Europa e para o mundo. A Rússia parece não ter sido profundamente afetada pelas sanções econômicas por parte do Ocidente, mas estas vêm causando aumento dos preços de combustíveis e escassez de alimentos em vários países.

No discurso de 24 de fevereiro ao povo russo, Putin ressaltou que as operações que se fizerem necessárias para expulsar as tropas ucranianas do Donbass estão de acordo com o Artigo 51 (capítulo VII) da Carta da ONU, e atenderam ao acordo de amizade e de assistência mútua com as repúblicas populares de Luhansk e Donetsk, que constituem o Donbass, cuja população é majoritariamente de origem russa. A escala das operações militares até o momento se faz com a autorização concedida pela Duma, o parlamento russo.

A ampliação das operações de combate necessárias para serem alcançados os objetivos originalmente pretendidos poderá fazer com que o conflito se espalhe para países vizinhos pertencentes a OTAN, avalia o analista Scott Ritter, ex-oficial de inteligência do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos.

Para melhor compreensão do cenário atual e do que poderá vir futuramente é necessário se ter em conta quais foram os antecedentes que levaram à intervenção russa em solo ucraniano.

O pavio do conflito. Os analistas independentes não hesitam em associar a origem do atual conflito ao golpe de 2014, apoiado por Barack Obama, que afastou o presidente eleito Viktor Yanukovych através do que ficou conhecido como a revolução colorida de Maidan (ver artigo anterior do blog)

Seguiu-se o referendo na Crimeia, com 97% dos votantes optando pela incorporação da península à Rússia. Na sequência, as regiões Luhansk e Donetsk demandaram um referendo de autodeterminação (autonomia), de forma a poder preservar a cultura russa, que se via ameaçada pelo novo governo. Não se tratava naquela ocasião de um movimento separatista.

A reação de Kiev levou à repressão contra diversas regiões de língua russa, e a massacres em Odessa e Mariupol.  Os autonomistas tomaram em armas para se defender. Conforme assinala artigo do analista Jacques Baud, ex-membro da inteligência estratégica suíça, os rebeldes não obtiveram suas armas da Rússia, e sim, de unidades ucranianas de fala russa. Baud lembra ainda que os acordos de Minsk 1 (setembro de 2014) e Minsk 2 (fevereiro de 2015) não concediam independência às Repúblicas de Luhansk e Donetsk, mas, um certo grau de autonomia.

O acordo deveria também incluir uma ampla anistia a todos os envolvidos no conflito, bem como o desmantelamento das organizações paramilitares de extrema direita que participaram do Maidan, e que também se envolveram nos confrontos bélicos. Entretanto, a Ucrânia não implementou quaisquer das  medidas estipuladas. A OSCE passou a monitorar a linha de separação entre as partes beligerantes, mas não tinha capacidade militar para intervir.

O estopim do conflito. Em 24 de março de 2021, o presidente ucraniano Volodymir Zelensky emitiu um decreto que reafirmava a soberania sobre a Crimeia e passou a estacionar tropas no sul do país. As tensões entre Rússia e Ucrânia escalaram no decorrer do ano.

A intenção explicitada por Zelensky  de que seu país entrasse para a OTAN, contou com a concordância de Joe Biden. O Ministério das Relações Exteriores russo pediu garantias por escrito de que a Ucrânia jamais ingressaria na OTAN. Em 17 de dezembro de 2021, Putin cobrou também que a área de influência militar da OTAN retrocedesse aos limites existentes em 1997, conforme o que havia sido então acordado entre EUA e Rússia quando do final da União Soviética.

Expansão da OTAN para o Leste da Europa
Expansão da OTAN no Leste da Europa após 1997; a adesão da Alemanha Oriental se deu com a reunificação do país em 1990 / Fonte: BBC

Em 27 de janeiro de 2022, o Secretário de Estado Antony Blinken declarou que Washington não daria garantias à Rússia de que a Ucrânia não ingressaria no bloco militar. Os EUA continuaram a agitar o cenário político, criando um clima de pânico de que a invasão russa era iminente, o que fez com que Zelensky pedisse moderação ao Ocidente, para não prejudicar a economia ucraniana.

Em 16 de fevereiro de 2022, a artilharia ucraniana iniciou um massivo bombardeio de regiões civis do Donbass sob controle dos rebeldes. Talvez isso explique porque Biden anunciou, em 17 de fevereiro, que a Rússia atacaria a Ucrânia nos próximos dias.

Os ataques devem ter partido provavelmente do batalhão Azov, que está vinculado à Guarda Nacional, que responde ao Ministério do Interior; já o Exército, está subordinado ao Ministério da Defesa.

Teria o batalhão Azov agido à revelia de Zelensky, incitado por Washington? Esta é uma hipótese bem plausível, considerando que aos EUA interessavam a deflagração de um conflito que desgastasse a economia russa. A estratégia está explicitada nas páginas 95 a 103 do manual de guerra híbrida da Rand Corporation, think tank financiado pelo exército norte-americano.

Vale lembrar que Zelensky fora eleito com uma proposta de selar a paz no Donbass. Mas segundo declaração do especialista em Rússia, Stephen Cohen (falecido recentemente), em entrevista ao jornalista Aaron Maté, Zelensky logo foi obrigado a recuar em face das ameaças de morte vindas da extrema-direita ucraniana, e por não ter recebido apoio de Washington. Mas, como todo ator que se preza, Zelensky assumiu e incorporou um novo personagem, que agora só usa como traje teatral, camisas T-shirt do exército ucraniano.

Em 19 de fevereiro de 2022, Zelensky fez um discurso na Conferência de Segurança de Munique, em que pede ao Ocidente que apoie a Ucrânia para impedir uma invasão russa. O presidente ucraniano ameaçou abandonar o Memorando de Budapeste de 1994, pelo qual a Ucrânia abrira mão de seu arsenal atômico com a garantia que teria preservada a integridade de suas fronteiras.  A declaração acirrou ainda mais as tensões com a Rússia.

Em 21 de fevereiro, Putin reconheceu a independência das Repúblicas de Luhansk e Donesk. Em 23 de fevereiro as duas repúblicas pediram ajuda militar à Rússia. No dia seguinte, Putin fez o discurso já mencionado, em que estabeleceu os objetivos da intervenção que se iniciava em solo ucraniano.   

A primeira fase da guerra. Nas primeiras semanas do conflito a capital ucraniana Kiev foi submetida a intenso bombardeio, ao mesmo tempo em que um longo comboio de blindados se dirigia para a capital. Para os analistas da mídia ocidental a estratégia russa era de tomar a capital ucraniana, afastando Zelensky da presidência.

Após um mês de luta as tropas russas se retiraram do norte da Ucrânia, e passaram a focar na conquista da região leste. Ritter cita em seu artigo a declaração feita em 25 de março pelo coronel-general Sergei Rudskoy, do Estado-Maior da Forças Armadas da Federação Russa: “Os objetivos principais da primeira fase de operações foram alcançados. A capacidade de combate das Forças Armadas da Ucrânia foi significativamente reduzida, o que nos permite de novo concentrar nossos esforços em alcançar o objetivo principal – a liberação do Donbass. Todas as 24 formações das forças terrestres (ucranianas)….sofreram perdas significativas.”

A segunda fase da guerra. Na batalha da informação, prevalecia o consenso estabelecido pela mídia do Ocidente, que demonizava Putin e procurava desmoralizar a eficácia das tropas russas, ecoando versões que a Ucrânia estava forçando os russos a recuarem, e que logo a Crimeia seria retomada.

De fato, a tarefa de derrotar as tropas ucranianas estacionadas no Donbass não seria fácil. Nos oito anos de guerra civil os militares do governo central de Kiev preparam um cinturão defensivo, consistindo de estruturas de concreto bem fortificadas, segundo declaração do general Rudskoy citada por Scott Ritter.

Ainda segundo Ritter, a vantagem russa na artilharia vem sendo um fator determinante do resultado vitorioso na fase 2 das operações, “pulverizando as defesas ucranianas e abrindo o caminho para a infantaria e blindados”. E acrescentou: “A vitória russa no leste da Ucrânia possibilita uma conexão por terra entre a Crimeia e o território da Federação Russa. A tomada de Kherson permite restabelecer o fornecimento de água à Crimeia, o que vinha sendo impedido pelo governo central desde o plebiscito de 2014.”

 A guerra entrará em uma terceira fase? Vários dos objetivos pretendidos por Putin não foram ainda alcançados, ressalta Scott Ritter. No campo político, a “operação especial militar” tinha como um dos principais objetivos, impedir o ingresso da Ucrânia na OTAN. No campo dos objetivos militares, faltava ainda desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia.

Desnazificação. A derrota do Batalhão Azov em Mariupol representou um sério revés para as milícias neonazistas. No entanto, milhares de combatentes neonazistas se encontram ainda em atividade no leste da Ucrânia.

Para Ritter, o objetivo só poderá ser alcançado com a  remoção de Zelensky da presidência, e sua substituição por uma liderança que esteja comprometida com a efetiva  erradicação da ideologia neonazista na Ucrânia.

Desmilitarização. Conforme relato de Jacques Baud, a desmilitarização seria alcançada através dos seguintes objetivos: destruição no solo da aviação, dos sistemas de defesa aérea e dos meios de reconhecimento; neutralização das estruturas de comando e inteligência, bem como das principais rotas logísticas no interior do território; cerco ao exército ucraniano concentrado no sudeste do país. 

No entanto, com a ajuda militar de dezenas de bilhões de dólares a Kiev pelos EUA e outros países da OTAN torna-se bem mais complicado para a Rússia conseguir completar os objetivos de desnazificar e desmilitarizar a Ucrânia.

Putin precisará avaliar muito bem se poderá continuar a perseguir estes objetivos, bem como a não filiação da Ucrânia à OTAN, fortalecida ainda mais com o ingresso esperado da Suécia e Finlândia, sendo que este último apresenta extensa fronteira comum com a Rússia. Para obter sucesso, a Rússia precisaria expandir as operações militares em regiões não ocupadas nas fases 1 e 2, avalia Ritter. Aos Estados Unidos interessam estender a duração do conflito, para desgastar ainda mais a economia russa.  

No entanto, importantes especialistas militares das Forças Armadas norte-americanas já consideram que, para a Ucrânia, é melhor negociar agora um acordo de paz com a Rússia, do que esperar mais tempo e entrar enfraquecida nas negociações. Em um painel organizado pelo think tank CFR, Council for Foreign Relations no final de maio, essa foi a opinião expressa pelo tenente-general Stephen Twitty, ex-comandante do Primeiro Exército dos EUA e ex-vice-comandante (2018-2020) do Comando Europeu dos EUA. Para Twitty, os ucranianos nunca conseguirão derrotar os russos: apesar da paridade numérica de ambas as tropas (nos cenários de operações), a Rússia tem um poder de combate bem maior que o dos ucranianos.

Ao participar de um seminário na Finlândia em 12 de junho, o secretário geral da OTAN, Jens Stoltemberg, também se mostrou realista sobre o encaminhamento da guerra, antecipando que a Ucrânia precisaria fazer concessões, ao declarar: “O apoio militar (a Kiev) é um caminho para fortalecer os ucranianos na mesa de negociações…(mas) a questão é: qual o preço a pagar pela paz? Quanto território? Quanta independência? Quanta soberania?”  

Para o presidente norte-americano Joe Biden, a capitulação da Ucrânia antes das eleições de novembro representaria um forte revés político, que seria explorado politicamente pelos republicanos. Biden parece estar mais interessado em não prejudicar as chances do Partido Democrata do que nas mortes e sofrimento do povo ucraniano com o prolongamento da guerra que financia.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

 

Rússia-Ucrânia: a geopolítica do novo mundo

Por Ruben Rosenthal

O processo-chave neste novo mundo será o chamado “confronto gerenciado” entre a Rússia e o Ocidente, impedindo a escalada espontânea em direção à guerra.

War in Ukraine
Guerra Rússia-Ucrânia: tensões no Leste da Europa. Foto montagem: Kirill Makarov

Tanto cutucaram o urso com vara curta que finalmente ele reagiu. A crise na Ucrânia, que culminou com a invasão russa de 24 de fevereiro, foi em verdade iniciada em 2014, com o golpe apoiado por Barack Obama e que afastou o presidente eleito Viktor Yanukovych através da revolução colorida de Maidan.

Seguiu-se o referendo na Criméia, com 97% dos votantes optando pela incorporação da península à Rússia. Na sequência  cresceu o movimento separatista no Donbass, onde parte significativa da população é de origem russa.

Nos meses recentes, as constantes violações do cessar-fogo entre os separatistas do Donbass e tropas do governo de ultranacionalista de Kiev contribuíram para a escalada das tensões entre Moscou e Kiev.

A intenção explicitada pelo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky,  de que seu país entrasse para a OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, bem como a concordância de Joe Biden, foram considerados por Vladimir Putin uma ameaça insustentável à segurança da Rússia.

A expansão da OTAN, seguindo-se ao fim da aliança militar do Pacto de Varsóvia (julho 1991) e da União Soviética (dezembro de 1992), já há muito alcançara a fronteira russa. Em dezembro de 2021, a imprensa do ocidente começou a gerar notícias de que uma invasão russa da Ucrânia era iminente.

NATO's eastern expansion
Mapa da expansão da OTAN para o leste da Europa. A Alemanha Oriental foi incluída com a reunificação do país em 1990. Fonte: OTAN

O desenrolar da crise da Ucrânia, desde seu início em 2014 até a escalada de tensões que antecedeu a invasão do território ucraniano, pode ser acompanhada em artigo anterior do blog. Aos Estados Unidos interessam forçar engajamentos militares da Rússia que sobrecarreguem a economia russa, da mesma forma que as sanções aplicadas pelo Ocidente. A receita está explicitada no manual de guerra híbrida da Rand Corporation, think tank financiado principalmente pelo exército norte-americano.

A invasão da Ucrânia tem o potencial de abalar a atual ordem geopolítica. Segundo o veículo informativo alemão Deutsche Welle (DW), analistas consideram que poderá ser revertido “o ordenamento pacífico” (grifo do blog) que muitos previam que iria prevalecer quando a OTAN e a União Europeia começaram a incorporar novos países-membros no Leste da Europa, com o colapso da União Soviética.

Para esses analistas, com a atual crise na Ucrânia os países europeus passariam a ser mais dependentes dos EUA para a defesa de seus territórios, assim como quando do período da Guerra Fria. Também aumentaria a militarização das regiões próximas à fronteira russa.

Para o New Statesman, as relações entre a Rússia e o Ocidente serão alteradas de tal forma que o cenário da geopolítica global poderá ser afetado. Os efeitos desestabilizadores do conflito chegariam a outras regiões na Europa Central, Bálcãs, Ásia Central e ao Pacífico. A questão China-Taiwan voltaria a ficar na ordem do dia, para o veículo de mídia britânico.

Os dois países beligerantes acertaram iniciar conversações na fronteira entre Ucrânia e Bielorússia (Belarus) em 28 e fevereiro. A Rússia certamente não aceitará menos do que a desmilitarização da Ucrânia e o compromisso de não filiação à OTAN.  Por outro lado, pode fazer parte das cartas de Putin que as regiões de Donetsk e Luhansk, no Donbass, voltem se integrar à Ucrânia, mas como repúblicas autônomas. O Protocolo de Minsk de 2014, que já previa a concessão de um certo grau de autonomia para estas regiões, foi então sabotado pela Ucrânia e pelos Estados Unidos.

No entanto, na visão do analista russo Andrey Sushentsov, decano da Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou (MGIMO), poderia estar nos planos de Putin que a Ucrânia venha a se tornar o terceiro membro de uma União de Estados entre Rússia e Bielorrússia. No entanto, considerando que as negociações para se criar a União de Estados entre Belarus e Rússia já se arrastam há mais de 20 anos, fica difícil imaginar como tal solução poderia ser implementada no caso da Ucrânia, senão através de uma adesão compulsória que não seria aceita por parte da população ucraniana.

O artigo de Sushentsov intitulado “Rússia-Ucrânia: Aonde Vais”, publicado em 26.02.2022 no Valdai Club, é apresentado a seguir em sua íntegra1, com tradução2 de Ruben Rosenthal. O autor prevê que o novo ordenamento geopolítico global que se anuncia buscará sua estabilidade através do “confronto gerenciado”.

Russia-Ukraine: Quo Vadis?, por Andrey Sushentsov

“Em 24 de fevereiro, terminou a era da busca da Rússia por seu lugar em um mundo centrado no Ocidente. Neste mundo, todas as iniciativas políticas vieram apenas do Ocidente. Os países ocidentais também determinaram as regras básicas e permitiram, a critério deles, que outros participantes compartilhassem os benefícios da ordem estabelecida.

Nas últimas três décadas, a Rússia procurou encontrar seu lugar neste mundo, de uma forma que estivesse de acordo com seus interesses. De início, com cautela e até timidamente, e depois de forma mais persistente, a Rússia sinalizou que ignorar seus interesses levaria a uma crise mundial.

Em resposta a isso, o Ocidente começou a considerar a Rússia o principal problema enfrentado pela segurança europeia. A questão principal foi estabelecer o grau de culpa da Rússia pelo que estava acontecendo na Europa Oriental – Moldávia, Bielorrússia, Donbass e Crimeia. Ao final de 2020, era rotineiro realizar provocações militares nas fronteiras da Rússia, testando a vontade política da liderança russa quase que diariamente.

A perigosa proximidade de navios militares, as manobras de frotas militares perto das fronteiras da Rússia, provocações no Donbass e na Crimeia, a pressão política constante, as sanções, os ataques cibernéticos, bem como a constante ameaça de escalada do conflito tornaram-se uma característica integral do chamado “diálogo” político com a Rússia.

Ao longo de todas essas décadas, o enfoque russo foi baseado na diplomacia. A resposta russa foi complexa, metódica, e apelou para o senso comum das principais elites do Ocidente. Em uma série de aparições públicas em grandes fóruns estrangeiros e através de uma lista de iniciativas para criar um novo regime de segurança na Europa – como o Tratado Europeu de Segurança – a Rússia buscou que uma sólida e indivisível arquitetura de segurança europeia fosse construída através de acordos e diplomacia.

Quando finalmente percebeu que essas tentativas não tinham sucesso, a Rússia adotou a lógica do Ocidente, segundo a qual a segurança europeia só tinha um problema (a própria Rússia, no entender do Ocidente). Moscou pensa agora também desta forma: o principal problema do sistema de segurança europeu está no ativismo militar dos EUA e da OTAN.

Depois de um tempo, diminuirão as emoções associadas à fase aguda atual da crise, e as negociações inevitavelmente serão retomadas. Mas de qualquer forma, será outro mundo. Neste mundo, a Rússia afastará a fronteira de segurança de suas fronteiras (físicas), para longe em direção ao Ocidente.

A Ucrânia terá um novo governo e será desmilitarizada, com certeza. É mais provável que a Ucrânia se torne o terceiro membro da União (de Estados) entre Rússia e Bielorrússia. Se a ameaça americana de criar um sistema de apoio para ações clandestinas ucranianas, com a implantação de campos no território dos estados da Europa Oriental começar a se materializar, a Rússia terá em mente uma resposta simétrica: forte pressão sobre países da Europa Oriental.

Com o tempo, este confronto híbrido deverá terminar, como terminou antes entre a Rússia e a Turquia, que usaram ferramentas semelhantes de influência uma contra a outra. No novo mundo, a Rússia não tolerará violações dos direitos das pessoas com identidade russa, onde quer que vivam: irá defendê-las com firmeza e persistência.

A troca de ataques cibernéticos se tornará comum em um mundo onde um conflito militar direto entre a Rússia e o Ocidente é impossível. Será relativamente rotineira, para demonstrar as intenções e o potencial militar. No caso do estacionamento de armas ofensivas em países da OTAN nas fronteiras russas, por exemplo, nos territórios dos Estados Bálticos ou da Polônia, a Rússia criará ameaças em lugares inesperados da Europa e do Hemisfério Ocidental.

O processo-chave neste novo mundo será o chamado “confronto gerenciado” (grifo do blog) entre a Rússia e o Ocidente, impedindo a escalada espontânea em direção à guerra. O objetivo da Rússia permanece inalterado – criar um sistema de segurança mais justo na Europa, que leve mais em conta os interesses russos. Este sistema deve basear-se nas regras de comportamento prudente e na recusa em criar ameaças militares mútuas.

A interdependência entre a Rússia e os países do Ocidente será menor, mas não cessará completamente. As entregas de recursos energéticos russos em troca de tecnologias ocidentais continuarão em demanda. Também não é possível excluir completamente a Rússia do sistema financeiro global. No entanto, as sanções impostas pelos EUA e pela UE acelerarão a retirada do dólar dos acordos internacionais.

Embora nas primeiras páginas da mídia mundial vejamos a percepção da crise atual através dos olhos do Ocidente, os atores importantes na situação atual são os estados do Oriente: a China escolheu uma linha cautelosa em relação ao que está acontecendo, e está enviando sinais de que é uma das partes interessadas em criar uma ordem mundial multipolar.

A posição de outros grupos de elite influentes também mostra que eles não estão solidários aos países do Ocidente, com o que está acontecendo. Irã, Azerbaijão, Turquia, Brasil e Paquistão demonstram que seus interesses nacionais são diferentes dos do Ocidente em relação à segurança europeia.

O caráter rotineiro da maior crise militar da Europa desde o ataque da OTAN a Belgrado mostra que as relações internacionais estão voltando ao seu padrão histórico: vários centros de iniciativa que competem entre si pela influência global. Há mais perigos neste mundo, mas também mais cautela.”

1 O blog não necessariamente compartilha de todos os pontos de vista expressos pelo analista russo.

2 Os termos entre parênteses foram acrescentados na tradução.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF e responsável pelo  blogue Chacoalhando.

Agrotóxicos matam mais crianças no Brasil que a Covid-19

Por Ruben Rosenthal

É inaceitável que a ANVISA não tenha a última palavra sobre a proibição de agrotóxicos que causem a morte e danos irreparáveis à saúde de centenas de crianças.

Stringer Mexico Reuters
Protesto contra a Monsanto, México, 2021 \ Foto: Stringer México/Reuters 

O texto-base do Projeto de Lei 6299/2002 aprovado há poucos dias na Câmara transfere a decisão de autorização e comercialização de agrotóxicos no país para o Ministério da Agricultura. Com isso, o IBAMA e a ANVISA, embora mantenham a responsabilidade por analisar e estabelecer exigências aos produtos, deixariam de ter o poder de decisão final.

No entanto, ao longo dos anos, tanto IBAMA como ANVISA permitiram que a contaminação de alimentos e da água causada pelos agrotóxicos atingisse níveis alarmantes. Com as mudanças que governo Bolsonaro procura aprovar na legislação, as consequências serão catastróficas – caso o Senado ratifique estas medidas – que causarão ainda mais mortes.

Os agrotóxicos mais consumidos no mundo são à base de glifosato, como o Roundup desenvolvido pela Monsanto, que foi comprada pela Bayer em 2018.

Desde 2015, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, que faz parte da OMS, a Organização Mundial de Saúde, classificou o glifosato como provável causador de câncer.

Um estudo feito por pesquisadores brasileiros da Universidade de Princeton, da FGV e do Insper, mostrou que mais de 500 crianças morrem no Brasil todos os anos pelo efeito do glifosato. Existem também muitos relatos de malformação congênita e sérios distúrbios neurológicos em crianças causados por este agrotóxico.

Segundo o estudo, as mortes aumentaram a partir da introdução da soja transgênica, conhecida como Roundup Ready. Por ser resistente ao uso do glifosato, maiores níveis do produto podem ser aplicados na lavoura, o que levou à contaminação da água dos rios próximos. Na Europa, o limite máximo permitido de glifosato na água é 5.000 vezes menor que no Brasil. Ou seja, 0,1 microgramas por litro lá, e 500 microgramas por litro, aqui.

Alguns países já estão banindo o uso do glifosato, ou mesmo processando a Bayer/Monsanto por casos de câncer, como está ocorrendo nos Estados Unidos. Nos EUA, a Monsanto já foi condenada em várias instâncias em um caso emblemático, que mostrou o glifosato causa o linfoma não-Hodgkin, que é extremamente agressivo e mortal.

Aqui no Brasil, a mídia corporativa só apresenta as virtudes do agronegócio. Na Globo, “Agro é Pop”. Um boletim de 2011 da Rede Globo sobre o agronegócio, voltado especialmente para publicitários, ressaltou como um “caso de sucesso”, como a Monsanto conseguiu alcançar seu público-alvo para comercializar o Roundup, através do Globo Rural.

O periódico britânico The Guardian relatou que o uso indiscriminado do Roundup fez com que surgissem ervas daninhas super-resistentes ao glifosato,    em milhões de acres de terras cultiváveis nos EUA.

Em face disso, Monsanto e BASF atuaram juntas para desenvolver sementes que fossem resistentes a um outro agrotóxico, o dicamba. No entanto, o dicamba é muito volátil no verão, e por deriva pode alcançar regiões bem distantes de onde ele é aplicado, arruinando outras plantações, inclusive de orgânicos. Por este motivo, dezenas de fazendeiros norte-americanos estão processando a Monsanto e a BASF, e seu uso foi proibido pela justiça norte-americana.

Existe documentação que mostra como a Monsanto interferiu secretamente em trabalhos científicos sobre o efeito cancerígeno do glifosato. Os lobistas dos agrotóxicos, como a CropLife Brasil, fazem uso destas matérias de pretenso cunho científico para propaganda, e para questionar as pesquisas sérias que demonstraram os efeitos nocivos de vários tipos de agrotóxicos.

Outros agrotóxicos trazem também enormes riscos de saúde. Neste artigo apenas alguns destes são mencionados. O clopirifós é um agrotóxico que foi proibido nos EUA por estar associado à diminuição do QI em crianças, mas que é usado em larga escala no Brasil, segundo o site Por Trás do Alimento.

Segundo outro relato do site Por Trás do Alimento, o Brasil é o principal destino de inseticidas à base de neonicotinóides  exportados pela Bayer e pela chinesa Syngenta. Estes agrotóxicos foram banidos na Europa por causarem a morte de centenas de milhões de abelhas, assim como o fipronil. Como as abelhas são fundamentais para a agricultura através da polinização, o agronegócio pode estar dando um tiro no pé, ao continuar com o uso destes produtos em níveis elevados. Atualmente, a Europa está considerando proibir a exportação de agrotóxicos cujo uso já seja proibido lá.

A Bayer vem investindo em uma agenda positiva, para se contrapor a má imagem na questão dos agrotóxicos. A empresa fabricante de agrotóxicos também produz medicamentos, como a aspirina e outros. E, exatamente por este motivo, ela pode ficar vulnerável a um boicote de consumidores que estejam conscientes da contaminação de alimentos e da água por vários dos “remédios” que a Bayer produz para uso nas lavouras.

Com os desatinos do governo Bolsonaro e de sua ministra Tereza Cristina, que já foi chamada de “musa do veneno”, o número de mortes vai aumentar, bem como o de casos de malformação congênita. O setor dos agrotóxicos precisa ser devidamente regulamentado, de forma a garantir o direito da população a consumir um alimento saudável e o acesso à água não contaminada por resíduos de produtos químicos.

Caso contrário, o cenário que continuaremos a ter todos os anos no país é de mais mortes e sequelas graves em crianças, do que as que foram causadas pela pandemia da Covid-19.

É inaceitável que a ANVISA não tenha a última palavra sobre a proibição de agrotóxicos que causem a morte e danos irreparáveis à saúde de centenas de crianças. Assim como é também inaceitável que não caiba ao IBAMA a decisão de banir um agrotóxico que cause o extermínio de abelhas.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Crise na Ucrânia: quem pisca primeiro, Biden ou Putin?

Por Ruben Rosenthal

O risco é que uma guerra possa irromper de forma inadvertida. A história está repleta de exemplos de provocações que saíram de controle.

Xadrez da geopolítica EUA-Rússia
    Xadrez da geopolítica Rússia-Estados Unidos \ Foto: Relatório da Rand Corporation

O Ocidente voltou a acusar a Rússia se estar prestes a invadir a Ucrânia, mas o Kremlin nega que tenha planos de invasão. Segundo a mídia ocidental, um contingente de cerca de 100 mil militares russos está estacionado há várias semanas nas proximidades das fronteiras da Ucrânia. Por seu lado, Moscou continua a exigir que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) cesse sua expansão para países do Leste Europeu.

As denúncias da iminência de uma invasão russa surgiram em 3 de dezembro. Segundo o Washington Post, “a inteligência norte-americana teria descoberto que o Kremlin está planejando uma ofensiva militar em várias frentes para o começo de 2022, envolvendo até 175 mil combatentes”.

Na verdade, a mídia Ocidental vem anunciando a proximidade de uma ação bélica russa desde abril de 2021. Naquela ocasião, o comandante do exército ucraniano, general Ruslan Khomchak, declarou que a Rússia estacionara 28 batalhões de grupos táticos na fronteira, totalizando de 20 a 25 mil militares (BBC News). Mas, ainda em abril, a agência Reuters inflou este número para 100 mil. Em 21 janeiro de 2022 o Financial Times “atualizou” o contingente russo para 106 mil.

Em 24 de janeiro, a OTAN anunciou que seus países-membros estavam colocando as tropas em prontidão e enviando navios e aviões de guerra para o Leste da Europa, pelo receio de uma invasão russa na Ucrânia (Reuters).

Estados Unidos e Reino Unido retiraram parte dos diplomatas da Ucrânia (BBC), ao mesmo tempo em que os EUA anunciaram que haviam colocado em alerta máximo um contingente de 8.500 militares para envio ao leste europeu.

Em 25 de janeiro, a Rússia conduziu manobras militares na Criméia e próximo à Ucrânia. As manobras teriam envolvido a participação de 6 mil militares em exercícios de combate com bombardeiros, sistemas antiaéreos, e navios das frotas do Mar Negro e do Cáspio (Agência France-Presse).

Poucos dias antes (18 de janeiro), ocorreram exercícios militares na Bielorússia, aliada da Rússia, que também faz fronteira com a Ucrânia. As manobras  envolveram sistemas de mísseis russos de defesa S-400 e Pantsir, segundo relato no Financial Times. Novas manobras conjuntas da Rússia com a Bielorússia estão previstas para fevereiro.

O atual recrudescimento da crise já era esperado, do momento em que a Rússia anunciou (17 dez. 2021) que não mais aceitaria que a OTAN prosseguisse em sua contínua expansão na direção da fronteira russa. O Ministério das Relações Exteriores russo pediu garantias por escrito de que a Ucrânia jamais ingressaria na OTAN. A Organização também deveria deixar de promover atividades militares na Ucrânia e em outros países que fazem fronteira com a Rússia (Moscow Times).

No entanto, o Secretário de Estado Antony Blinken declarou em 27 de janeiro de 2022, que Washington não daria tais garantias à Rússia (Folha de São Paulo, New York Times). Para Putin, os EUA estão tentando fazer com que Rússia ataque a Ucrânia, para que então sanções econômicas sejam impostas (BBC News).

Dentre as retaliações planejadas por Washington, caso ocorra uma intervenção militar russa na Ucrânia, estaria aplicar sanções aos títulos públicos russos. Também como retaliação, seria impedido o funcionamento do gasoduto Nord Stream 2, algo que no entanto também prejudicaria a  Alemanha.

Em outra frente de conversações, representantes da França, Alemanha, Rússia e Ucrânia concordaram em manter o acordo de cessar fogo no leste da Ucrânia, entre separatistas do Donbass e o governo central de Kiev (Deutsche-Welle). O enviado do Kremlin, Dmitry Kozak, disse que, “apesar de todas as diferenças nas interpretações, o cessar-fogo precisa ser mantido em linha com os acordos”.  Tratava-se de uma referência aos acordos de Minsk, que foram assinados na Normandia em 2014, pelos representantes dos quatro países.

Histórico da crise: Viktor Yanukovych, eleito presidente da Ucrânia em 2010, adotou com uma posição contrária a um desvantajoso acordo econômico com a União Europeia. O presidente optou então em fazer o acordo com a Rússia, o que desagradou Washington

Sobreveio então a revolução colorida de Maidan, em fevereiro de 2014 – apoiada pelo governo de Barack Obama – que afastou Yanukovych da presidência. Foi então instalado um governo pró-Ocidente em 2014, com a ajuda de grupos neonazistas ucranianos.

Como reação, a população ucraniana de origem russa na Criméia promoveu um referendo, com resultado favorável à anexação da península pela Rússia.  Movimentos separatistas em Luhansk e Donetsk, na região do Donbass no leste da Ucrânia, também defenderam a realização de um referendo, o que levou à confrontação bélica com as tropas de Kiev.

Protocolo de Minsk: As negociações de paz ocorreram na capital da Bielorússia, monitoradas por observadores da OSCE (a Organização para a Segurança e Cooperação Europeia), tendo como garantidores França, Alemanha e Rússia. Pelo acordo de 2015 esperava-se chegar à reconciliação política na Ucrânia através de uma série de etapas que conduziriam a eleições livres, à concessão de autonomia política ao Donbass e ao controle por Kiev da fronteira com a Rússia.

O acordo deveria também incluir uma ampla anistia a todos os envolvidos no conflito, bem como o desmantelamento das organizações paramilitares de extrema direita que participaram do Maidan, e que também se envolveram nos confrontos bélicos. Entretanto, a Ucrânia não implementou quaisquer destas medidas. A OSCE monitora desde então a linha de separação entre as partes beligerantes, mas não tem capacidade militar para intervir.

Região do conflito separatista do Donbass
O mapa mostra as regiões em Luhansk e Donetsk sob controle dos separatistas (região hachurada à direita) e do governo central. 

Um cessar-fogo foi implementado em 27 de julho de 2020, embora escaramuças entre separatistas e tropas do governo tenham ocorrido em algumas ocasiões. Estima-se que, desde o início da guerra, o número de mortes nos confrontos seja de 14 mil. O protocolo de Minsk permanece como base para um acordo futuro.

A expansão da OTAN e o cerco à Rússia

A crise na Ucrânia não pode ser entendida fora do contexto geopolítico que se seguiu ao fim da União Soviética e do Pacto de Varsóvia, segundo o professor russo Alexander Zhebit1 declarou em entrevista ao programa Agenda Mundo (Parte 1, Parte 2).

“Com a extinção do Pacto de Varsóvia em 1990, a Rússia retirou suas tropas – cerca de 350 mil – da Alemanha e da Europa Oriental, mas o aparato militar da OTAN existente ao final da Guerra Fria não foi desmontado”.

“O equilíbrio estratégico começou a mudar severamente contra a Rússia quando OTAN começou a se expandir, apesar das promessas de líderes ocidentais de que tal expansão não ocorreria”.

“Em 1999 ocorreu a adesão da Polônia, Hungria e República Checa à OTAN. Em 2004, a expansão se deu para a área da antiga União Soviética, chegando às fronteiras da Rússia, com a entrada da Lituânia, Letônia e Estônia na Organização. Na Europa centro-oriental, aderiram Eslovênia, Eslováquia, Bulgária e Romênia”.

Mais países ingressaram na OTAN nos anos seguintes, de forma que atualmente a Organização totaliza 30 estados membros. “Várias adesões se deram com base na “chantagem de que a adesão à OTAN seria uma etapa indispensável para ingressar na União Europeia”, lembra Zhebit.

A OTAN pretende expandir o bloco ainda mais, para incluir Ucrânia e Geórgia. Em uma reunião de cúpula da Organização realizada em 2008 em Bucareste, Romênia, o então presidente norte-americano George Bush propôs que Ucrânia e Geórgia passassem por um processo gradativo de ingresso na OTAN. Na ocasião, prevaleceu a posição contrária defendida pela chanceler Angela Merkel, que argumentou que tal ação iria levar ao aumento da fricção com a Rússia (The Guardian).

Quando a escalada da crise começou em abril de 2021, o analista político Mark Sleboda, norte-americano radicado na Rússia, avaliou que o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky estaria interessado em forçar uma intervenção russa, para que o projeto do gasoduto Nord Stream 2 fosse  sustado pela Alemanha. Isso porque, com o gasoduto concluído, a Ucrânia deixaria de receber pagamento pela passagem de suprimentos de gás por seu território, afetando bastante a economia do país.

Alexander Zhebit concorda com Sleboda, acrescentando ainda que “outros membros da União Europeia, como Polônia, Países Bálticos, República Checa e Romênia estariam também interessados em encorajar o agravamento do conflito em Donbass, para induzir a Rússia a alguma ação bélica”.

Entretanto, se esta era a intenção original de Zelensky, o tiro pode ter saído pela culatra, pois o  “pânico” gerado pelo Ocidente está  desestabilizando a economia do país, alertou o presidente ucraniano.

O professor Zhebit mostra como ações dos EUA e da OTAN geraram um clima de histeria : “Desde abril de 2021 vem ocorrendo uma escalada das tensões, causada pela realização de exercícios terrestres e navais no Mar Negro, com a participação da OTAN, inclusive no território ucraniano. A OTAN começou a massificar suas forças nos territórios dos países-membros na Europa Oriental”.

Zhebit associa as provocações da OTAN com as estratégias de guerra híbrida apresentadas no manual de guerra híbrida da Rand Corporation, think tank norte-americano financiado principalmente pelo exército dos EUA. Para os analistas da Rand, a melhor forma de combater a Rússia, seria combalir sua economia, fazendo com que ela se sobrecarregasse com engajamentos militares, que drenariam seus recursos financeiros.

A grande incógnita que se coloca é se a Rússia estaria disposta a enfrentar ameaças econômicas para impedir que a OTAN chegue a suas fronteiras com a Ucrânia.

Para Alexander Zhebit, a Rússia tem feito de tudo para evitar tal desenvolvimento. “Ela está tentando dissuadir a OTAN, advertindo que uma provocação resultaria em conflito. O conflito em si não se transformaria em uma Terceira Guerra Mundial, mas poderia levar a uma nova configuração das forças na Europa e a uma nova guerra fria, mais agressiva”, avalia ele.

“O risco é que uma guerra pode irromper de forma inadvertida. A história está repleta de exemplos de provocações que saíram de controle. Resta ver se o bom senso vai prevalecer em relação a conter o avanço da OTAN para o leste”,  completa Zhebit.

Notas do autor:

1 Alexander Zhebit possui doutorado e livre Docência em História das Relações Internacionais e Política Externa pela Academia Diplomática do Ministério das Relações Exteriores da Rússia. Atualmente, ele é professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Instituto de Relações Internacionais e Defesa.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Pfizer: Verdades e mentiras da vacinação infantil contra a Covid-19  

Por Ruben Rosenthal

A principal verdade é que pais e mães precisam estar bem informados para melhor poderem decidir se querem ou não que seus filhos sejam vacinados contra a Covid-19.

Anistia Internacional lucro das farmacêuticas com a vacina da Covid-19 C
Denúncia dos lucros com as vacinas contra a Covid-19. Anistia Internacional.

 A politização da vacinação infantil contra a Covid-19 teve mais um capítulo, desta vez envolvendo membros do Ministério Público. O caso teve início quando 5 defensores públicos de Goiás encaminharam recomendação ao Ministério da Saúde para divulgar que a vacina da Pfizer ainda se encontra na fase experimental, e que pode causar miocardite e periocardite nas crianças.

De fato, a própria Pfizer, através da Wyeth, relata na bula direcionada a pacientes a ocorrência de “casos muito raros de miocardite e periocardite após a vacinação com a Comirnaty”. O documento menciona ainda que o paciente deve ficar alerta após a vacinação para “falta de ar, palpitações e dores no peito”, e que, em caso de manifestação destes sintomas, é necessário atendimento médico. São também apresentadas outras precauções a serem consideradas em relação à vacinação.

O posicionamento dos cinco defensores públicos foi rebatido em nota da Defensoria Nacional e 13 Defensorias Regionais de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União. Diz a nota que a vacina da Pfizer já tem registro definitivo e que todas as recomendações necessárias já foram indicadas pela ANVISA.

A nota da DN e DRDH/DPU vai mais além, ao declarar que pelo Estatuto da Criança e do Adolescente “é obrigatória a vacinação de crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”, e que, portanto, a imunização de crianças na faixa de 5 a 11 anos contra a Covid-19 deve ser compulsória.

O confronto de posições dentro do Ministério Público reflete a polarização mais ampla na sociedade entre negacionistas da vacina e mesmo da própria existência de uma pandemia mortal, e amplos setores que, em nome da ciência, defendem vacinação irrestrita da população. Mas a ciência não oferece uma única resposta sobre a vacinação infantil.

Consta no site do Colégio Real de Pediatria e Saúde da Criança (RCPCH, na sigla em inglês) do Reino Unido: “o Comitê Conjunto em Vacinação e Imunização recomenda que recebam a vacina da Pfizer apenas as crianças na faixa de 5 a 11 anos que tenham elevado risco clínico, ou que tenham contato em suas casas com familiares que sejam imunossuprimidos”.  A vacinação de crianças dessa faixa etária, que não estejam nos grupos acima mencionados, está ainda pendente de decisão futura.

No mesmo documento estão especificadas quais são as situações de alto risco clínico em crianças de 5 a 15 anos, que as tornam alvos prioritários da campanha de vacinação infantil contra a Covid-19 no Reino Unido: doenças respiratórias crônicas, problema renal crônico, problema no fígado ou no sistema digestivo, doença neurológica crônica, desordens endócrinas, imunossupressão por doença ou tratamento, asplenia ou disfunção do baço, anormalidades genéticas sérias que afetem outros sistemas, e gravidez.

A decisão do Comitê do Reino Unido está em linha com a visão do Centro Europeu para Prevenção e Controle de Doenças (ECDC, na sigla em inglês), que, em manifestação de 1 de dezembro de 2021, relatou que foram raros os casos severos de Covid-19 em crianças na faixa de 5 a 11 anos durante o período de prevalência da variante Delta: 0,61% dos casos  demandaram internação, sendo 0,06% em unidades de tratamento intensivo/apoio respiratório.

Segundo o ECDC, a maior parte (78%) das crianças que necessitaram de internações não se enquadravam, no entanto, em situação prévia de elevado risco clínico. No Brasil morreram de Covid, até momento, 324 crianças na faixa de idade de 5 a 11 anos, mas não está acessível a informação de quantas delas estavam em situação de comorbidade.

É possível que outros países estejam adotando procedimentos semelhantes aos do Reino Unido. Na Austrália, onde a vacinação de crianças na faixa de 5 a 11 é voluntária, os responsáveis pela criança devem assinar um termo de consentimento.

Neste termo consta um formulário com 7 perguntas a serem respondidas. Caso pelo menos uma das respostas for SIM, a criança ainda assim poderá receber a vacina, mas antes deverá ser atendida por um especialista em imunização ou cardiologista. Este determinará as precauções necessárias e o momento adequado para a vacinação.

formulário de consentimento AUS
Formulário de consentimento para vacinação contra a Covid-19 de crianças de 5-11 anos, autoridade sanitária da Austrália.

O fato do setor de vacinação e imunização do Reino Unido ter optado por vacinar contra a Covid-19 apenas as crianças de 5 a 11 anos que se enquadrarem nas condições especificadas acima, não significa que a ANVISA esteja equivocada em sua decisão de aprovar a vacinação irrestrita. A instituição brasileira possui um quadro técnico extremamente qualificado e não precisa ficar a reboque da decisão de outros países.

Mas o que não deveria acontecer é a desinformação ou omissão de informações com o intuito de se “fabricar o consenso”. Os documentos emitidos pela ANVISA e pela Pfizer não alcançam a maioria da população, já que a mídia não está cumprindo o seu papel. A principal verdade é que pais e mães precisam estar bem informados para melhor poderem decidir se querem ou não que seus filhos sejam vacinados contra a Covid-19.

A mídia também falha ao não mostrar como a ganância das grandes farmacêuticas (Big Pharma) atropela a Ciência.

Pfizer, quando o passado condena

Em 2016, a organização Médicos Sem Fronteiras denunciou que a Pfizer fez uma campanha publicitária enganosa em Londres, para tentar influenciar os parlamentares britânicos de que os investimentos necessários em pesquisa e desenvolvimento para se produzir um novo medicamento alcançavam a cifra de 1 bilhão de libras esterlinas (atualmente equivalente a 7,6 bilhões de reais). Segundo o MSF o objetivo real da campanha era o de justificar os elevados preços dos medicamentos.

Más práticas nos testes da vacina da Pfizer

Os testes para verificar a eficácia e a segurança da vacina contra a Covid-19 produzida pela Pfizer foram conduzidos por uma contratada que cometeu  várias irregularidades no decorrer da pesquisa, segundo artigo publicado no British Medical Journal, em 2 de novembro de 2021.

A empresa Ventavia Research Group, que fora contratada pela Pfizer para conduzir os testes da vacina contra a Covid-19, teria cometido diversas irregularidades nos procedimentos adotados, que podem ter comprometido a integridade dos dados obtidos. Dentre estas se incluem desvios do protocolo, armazenamento das vacinas em temperaturas impróprias e erros na rotulagem das amostras.

Segundo a ex-diretora regional da Ventavia, Brook Jackson, a empresa falsificou dados, expôs a identidade de pacientes em testes que requerem anonimato, e contratou  pessoal sem qualificação para aplicar as vacinas. A então diretora enviou um e.mail à FDA em 25 de setembro de 2020, para avisar das práticas indevidas cometidas pela Ventavia. Brook Jackson foi demitida no mesmo dia em que fez a denúncia.

Em 10 de dezembro de 2020, a Pfizer encaminhou a solicitação de uso emergencial de sua vacina (para adultos) ao comitê da FDA, sem mencionar as falhas da Ventavia.  A farmacêutica voltou a contratar a Ventavia para testar as vacinas da Covid-19 para crianças, jovens adultos e mulheres grávidas.

Facebook blinda Pfizer de críticas

Em novembro de 2021 os editores do British Medical Journal enviaram uma carta aberta a Mark Zuckerberg, do Facebook, protestando que o artigo contendo o artigo contendo a denúncia sobre a Ventavia estava sendo tratado como Fake News pela agência terceirizada Lead Stories, que presta serviços ao Facebook. Desta forma o compartilhamento do artigo foi dificultado, o que na prática protegeu a Pfizer de críticas.

Sars-CoV-2, um vírus que veio para ficar

Enquanto a variante ômicron se espalha pelo mundo, foi detectada no sul da França uma nova variante do coronavírus, que foi denominada de IHU. A provável origem teria sido no Camarões, na África Central. No continente africano apenas 6,6% da população havia sido vacinada até o final de novembro de 2021.

Segundo declarou a BBC News,  Ayoade Olatunbosun-Alakija, porta-voz da Aliança Africana para a Distribuição de Vacinas, o “surgimento da variante (ômicron) foi inevitável. Isso ocorreu devido à falta de vacinação e ao acúmulo de vacinas pelos países desenvolvidos”.

Assim, parece que estamos fadados a conviver com por um longo tempo com novas cepas da Covid-19. Mesmo sendo mais fracas em comparação com a Delta, elas poderão continuar a causar mortes, problemas de saúde e afastamento do trabalho, afetando assim a economia de diversos países.

Enquanto isso, BIG Pharma continuará a auferir lucros com as vacinas e medicamentos contra a Covid-19. A empresa Pfizer lucrou 36 bilhões de dólares em 2021, apenas com sua vacina para a Covid-19. E poderá vir a superar este valor em 2022.

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

O sonho americano vira pesadelo?

Por Ruben Rosenthal

Até poucos anos atrás seria impensável que pudesse ocorrer ruptura institucional no sistema político democrático norte-americano. 

Pro-Trump rioters used metal bars and tear gas to over take Capitol Police and breach the building. Lev Radin/Pacific Press/LightRocket via Getty Images
Manifestantes pró-Trump cercam e invadem o Capitólio, em Washington, janeiro 2021. Foto: Lev Radin/Pacific Press/LightRocket via Getty Images

No segundo programa do Agenda Mundo, uma produção conjunta  da TV GGN e do blogue Chacoalhando, o entrevistado foi o professor Rafael Rossoto Ioris1, que leciona no Departamento de História da Universidade de Denver, Colorado. Participou também da entrevista, o jornalista de economia Luis Nassif.

O foco da conversa foi o momento político atual nos Estados Unidos e o pacote econômico trilionário que o presidente Joe Biden tenta aprovar, mas que encontra resistência dentro do próprio Partido Democrata.

A seguir são apresentados, de forma resumida, os temas tratados na entrevista de 16 de novembro, que pode ser assistida aqui na íntegra.

Agenda Mundo: Rafael, no seu artigo, os Estados Unidos na encruzilhada: a crise do sonho americano, você associa a cisão política atual ao contexto que antecedeu a guerra civil no século 19. Você pode comentar?

Ioris: Até poucos anos atrás seria impensável que pudesse ocorrer ruptura institucional no sistema político democrático norte-americano. O sistema político tem evidentemente vários problemas estruturais históricos e também problemas conjunturais, como os partidos não atenderem às demandas (sociais e econômicas) da população. A crise institucional é global e tem se aprofundado nos EUA.

Alguns analistas políticos mencionam que o grau de polarização ideológica e partidária que existe nos EUA hoje em dia tem eco somente na situação de antes da guerra civil de 1860. No entanto, hoje ainda é impensável que haja o risco de uma guerra civil.

Dependendo de como se desenrolar a próxima eleição presidencial, se Trump continuar sendo uma força política importante, ele poderá criar uma situação de não reconhecer uma eventual derrota. E aí se coloca uma crise institucional muito imprevisível, que poderia levar a conflitos. Em uma situação de turbulência, algumas milícias poderiam se levantar, como quando tentaram invadir o congresso norte-americano em janeiro passado.

Nassif: A população se insurge contra o modelo liberal excludente em saúde e educação, que não gera melhoria de vida, mas vai atrás de ultradireita, que representa interesses empresariais. Como você explica este paradoxo? Eu queria entender se decorre de uma carência de informação, como ocorre no Brasil.

Ioris: Sem dúvida. Grande parte do eleitorado mais conservador dos EUA é um eleitorado menos educado, tem menos acesso a informações e tende a ser mais cético em relação a informações da ciência. O eleitorado do interior é muito mais religioso, fundamentalmente evangélico e muito racista.

Quem decide a eleição aqui é a mulher branca dos subúrbios de classe média das grandes cidades, que é muito moderada e pode entender de votar pelos republicanos, caso se sinta ameaçada de que seus filhos sejam doutrinados. Ou ameaçada em relação a outras questões que envolvam sua família e o seu bairro. É o que Trump tentou explorar também na eleição passada, mas perdeu.

Então, porque o eleitorado tende a votar menos com o bolso e mais com o coração, ele é ativado pelo medo e por preconceitos. Isso já é um padrão da política norte-americana faz um bom tempo, mas que se acelerou muito dos anos 90 para cá.

Agenda Mundo: Rafael, voltando ao seu artigo, você abordou a questão da restrição ao sufrágio político das minorias étnicas, chegando a usar o termo “democracia capenga”.

Além das restrições que existem em relação ao direito de voto por presidiários e ex-presidiários em alguns Estados, quais outras restrições que estão afetando o direito de voto das etnias, favorecendo o Partido Republicano nas eleições?

Ioris: O sistema político norte-americano é muito descentralizado. Em última análise, as eleições estão a critério dos Condados. A maneira como a cédula vai ser organizada, como vai ser a votação, em que lugares ela vai se dar, tudo isso é administrado pelos Condados e pelos Estados. Não há uma justiça eleitoral nacional.

Um terço dos Estados já está analisando restrições do acesso ao voto. Eles não usam o termo restrição, dizendo que estão regulando, normalizando ou organizando. Estados republicanos se sentem ameaçados com as minorias sociais, que tendem a votar com os democratas.

As restrições podem incluir a exigência de mais de um documento para a pessoa poder votar. As minorias raciais e socioeconômicas têm muito mais dificuldade para ter mais de um documento. Existe também tendência de se eliminar da relação de eleitores, aqueles que não participaram de eleições anteriores, exatamente as minorias raciais e econômicas. Outra forma é restringir o dia de votação a um dia útil da semana, quando as pessoas mais pobres precisam trabalhar, e recebem por hora de trabalho.

Agenda Mundo: A forma como é constituído o colégio eleitoral vem favorecendo mais ao Partido Republicano. Há viabilidade para que possa ocorrer uma reforma constitucional?

Ioris: A constituição norte-americana é entendida pelos juristas como uma das mais rígidas do mundo. Para haver uma alteração é preciso se obter não só dois terços nas duas Casa federais, o Senado e a Câmara, mas também dois terços nas duas Casas de cada Estado. Por isso é muito difícil qualquer alteração no Colégio Eleitoral.

Agenda Mundo: Abordando agora a questão da Suprema Corte. Nos últimos anos ocorreu um aparelhamento da Corte, através de financiamentos por bilionários como os irmãos Koch. Atualmente o escore é de seis a três, conservadores contra liberais.

Várias dessas indicações ocorreram no governo Trump. Existe alguma vontade política de se a ampliar o número de juízes da Suprema Corte, tentar reequilibrar o número de liberais e conservadores?

Ioris: Já existiram diferentes tamanhos da Suprema Corte, porque na Constituição não está definido quantos juízes ela deve ter. Diferentes políticos ao longo da história aumentaram, diminuíram ou ameaçaram fazer a alteração. Como o presidente Roosevelt ameaçou promover um aumento, para forçar a aprovação do New Deal. O Biden é muito conservador e já disse que não vai fazer esta mudança.

Nassif: Eu queria saber mais sobre três setores que têm muita influência na ultradireita norte-americana e também junto ao Bolsonaro: armas, máfia dos jogos eletrônicos de Las Vegas, combustíveis fósseis/mineração.

Ioris: Estes setores têm um alinhamento muito forte com o Partido Republicano há décadas. A questão dos jogos é mais recente, porque existe uma amizade pessoal entre bilionários de Las Vegas e o Trump, e financiaram as campanhas dele.

Apesar dos massacres com armas de fogo levantarem protestos na opinião pública contra a liberação do acesso a armas, o lobby da indústria é muito poderoso. O acesso às armas é defendido como uma questão de liberdade, um direito natural do ser humano.  Ao final, os protestos acabam se diluindo.

Em relação à indústria suja poderão ocorrer mudanças, pois já existe uma conscientização maior da opinião pública, mesmo que fique para o mercado resolver isso.

Agenda Mundo: Vamos conversar agora sobre o pacote econômico trilionário que o Biden tenta aprovar, o Reconstruir Melhor, ou Build Back Better Act.

Originalmente o pacote era no valor de 3,5 trilhões de dólares, e agora já foi podado para cerca de 1,75 trilhões.

O corte se deu em função da oposição da senadora Sinema e do senador Manchin, ambos democratas. Sem o voto dos dois, o Partido não conseguiria os 50 votos necessários no Senado.

Tem também o pacote de infraestrutura, no valor de 1 trilhão, que é de consenso dos dois partidos e já foi aprovado, com um acréscimo de 200 bilhões de dólares.

Com base em um artigo da CNN é apresentado a seguir uma relação dos itens que Biden quer aprovar no Reconstruir Melhor, totalizando 1,9 trilhões.

-390 bilhões, para ajudar a cobrir custos com filhos de até 6 anos, e com o pré-jardim de infância.

-194 bilhões, para afastamento por doença ou licença-família por 4 semanas.

-203 bilhões, em deduções fiscais no imposto de renda de 17 milhões de trabalhadores de baixa renda e também para 35 milhões de famílias, com filhos até 17 anos.

-150 bilhões em Home Care para idosos e pessoas com deficiências.

-126 bilhões em subsídios para cobrir custos com o plano de saúde Obamacare.

-28 bilhões para despesas com audição. Originalmente incluía despesas com visão e tratamentos dentários.

-155 bilhões para moradias, incluindo aluguel, reforma e compra.

-40 bilhões para subsídios de 550 dólares para 5 milhões de estudantes universitários.

-Alimentação para 9 milhões de crianças durante o ano escolar e compra de alimentos nas férias de verão.

-100 bilhões para reforma do sistema de imigração

-Aumento do limite de dedução em impostos estaduais e municipais, de 10 mil para 80 mil dólares. Esta parte é para beneficiar os ricos.

-570 bilhões para Mudança do Clima, em deduções fiscais para instalações de painéis solares, compra de veículos elétricos, fomento da energia eólica. Inclui a criação de 300.000 empregos em conservação. O Senador Manchin se opõe a usar 150 bilhões para um programa de desempenho em energia limpa.

Rafael, a parte do pacote voltada para a Saúde vai aplacar o movimento a favor de um sistema público único de saúde, o Medicare for All. Um forte movimento pelo sistema único havia tomado as ruas durante meses.

Nurses defend Medicare for All
Membros do Sindicato Nacional de Enfermagem protestam em apoio ao Medicare for All em frente à Representação das Indústrias Farmacêuticas, abril 2019 \ Foto: Win McNamee/Getty Images

Ioris: Nos debates para escolha do candidato democrata às eleições presidenciais Biden se colocou em contrário, defendendo uma melhora do Obamacare, que é um plano privado.

Em relação à aprovação do pacote eu acho ainda incerto se vão conseguir passar, especialmente do Senado. E (mesmo passando) vai haver muito descontentamento ao final.

Nassif: Uma das críticas que escutamos aqui em relação ao pacote é que ele direciona verbas públicas para grupos específicos. Isso é mais um argumento retórico dos republicanos?

Ioris: Essa é lógica da política norte-americana. Não quer dizer que seja ruim ou boa necessariamente. É positivo mudar uma matriz energética para uma energia mais renovável, mas como é que vai ser feito isso? Fundamentalmente pela lógica do mercado, subsidiando grandes empresas para produzir turbinas, painéis solares, subsidiando a classe média para comprar um carro elétrico ou híbrido.

Agenda Mundo: Como ficou a questão das dívidas dos estudantes que pegavam empréstimos para pagar a universidade, e que agora estão inadimplentes?

Rafael: Eu não acredito que exista no pacote esta linha, mas existe uma discussão que está ocorrendo. Creio que existam 30 milhões de pessoas devendo de 50 mil a talvez 200 mil dólares. O problema é que o lobby dos estudantes não é muito articulado, e isso torna a demanda muito difusa.

Agenda Mundo: Vamos agora dar uma olhada de onde vem o dinheiro para bancar o pacote do Reconstruir Melhor.

-Impostos de 15% nos lucros das empresas declarados aos acionistas. Deve trazer 814 bilhões de dólares.

-Impostos nas grandes fortunas: sobretaxa de 5%  para quem ganha

acima de 10 milhões de dólares e mais 3%, para quem ganha acima de 25 milhões. Isso deve levantar 640 bilhões.

-Pagamento de impostos devidos, estimados em 400 bilhões.

-Acordos com a indústria farmacêutica, gerando uma economia superior a 250 bilhões.

Nassif: Como está a discussão nos EUA junto à academia, sobre a capacidade do governo poder emitir dinheiro?

Ioris: Desde o governo Obama fizeram uma política mais frouxa em relação a produção de dinheiro, para poder ativar a economia na crise de 2008. A partir daí se tem recorrido a isso. O atual presidente do Banco Central daqui disse que quer diminuir a impressão, mas de outra vez que isso foi ventilado houve uma crise no mercado, e ocorreu uma retratação do BC.

Hoje a inflação está crescendo e o assunto deve ser novamente colocado em pauta, mas a redução na emissão de dinheiro seria gradual.

Agenda Mundo: Este foi, portanto, um resumo do programa com o professor Ioris. Tivemos uma verdadeira aula sobre o momento atual nos Estados Unidos. Imperdível, para quem quer entender sobre o assunto.

Notas do autor:

1 O professor Rafael Rossoto Ioris se formou em Ciências Sociais pela UFRGS, e fez seu doutorado na Universidade de Emory, nos EUA. No Brasil, ele já lecionou no Ibmec/Rio, na Universidade Metodista Benett e na UniLaSalle, em Niterói, principalmente no campo das Relações Internacionais.

O autor é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacolhando e pelo programa Agenda Mundo, na TV GGN.

Glenn Greenwald no Agenda Mundo: As tretas na esquerda dos Estados Unidos 

Glenn: Google e Facebook podem controlar o nosso discurso político? Eu não confio em qualquer instituição humana controlando o discurso político

entrevista Glenn PNG

No primeiro programa do Agenda Mundo, na TV GGN, o jornalista Glenn Greenwald foi entrevistado pelo apresentador, Ruben Rosenthal. Glenn ganhou o Prêmio Pulitzer de 2014, pelo papel que desempenhou na divulgação dos programas de vigilância secreta conduzidos pela NSA, a Agência de Segurança Nacional norte-americana.  Aqui no Brasil, ele foi peça-chave na divulgação dos documentos da Vazajato.

A seguir são apresentados de forma resumida os temas tratados na instigante entrevista, que pode ser assistida aqui, na íntegra, a partir das 20 horas do dia 2 de novembro.

O foco da conversa foi nas brigas que estão chacoalhando o chamado campo progressista norte-americano. Em tese, pode-se dizer que este campo corresponde à esquerda não marxista norte-americana. Na prática, as posições de esquerda de boa parte dos progressistas ocorrem só nas mídias sociais, mas suas atuações parecem favorecer mais as grandes corporações do que as causas populares.

– Agenda Mundo: Uma polêmica desgastante no campo progressista, que começou pouco após a vitória eleitoral dos democratas em 2020, foi a questão do projeto de lei visando introduzir o equivalente a um sistema único de saúde, o Medicare for All – Cuidados Médicos para Todos. Esta polêmica foi descrita em detalhes em artigos anteriores (aqui e aqui).

Entretanto, os autores do projeto do sistema único de saúde (o senador Bernie Sanders e a deputada Pramila Jayapal) não colocavam o projeto em votação. O recuo talvez fosse para não bater de frente com as lideranças do Partido Democrata (PD), que se elegeram com verbas das grandes corporações, inclusive do sistema privado de saúde.

Então o comediante e YouTuber Jimmy Dore propôs que os congressistas ditos progressistas só apoiassem o reencaminhamento da congressista Democrata Nancy Pelosi à liderança da Câmara, se ela levasse o projeto ao plenário, mesmo que a vitória não fosse garantida. Só que as principais vozes progressistas se recusaram, como foi o caso da deputada Alexandria Ocasio-Cortez, conhecida como AOC, que pertence ao chamado Esquadrão Progressista. Jimmy Dore acusou então os progressistas de traírem as causas que eles defendiam antes das eleições do ano passado.

Glenn, qual é a sua avaliação sobre o recuo dos progressistas, neste caso do Cuidados Médicos para Todos?

– Glenn: O contexto político é muito importante para entender o que está acontecendo nos democratas. Com o resultado das eleições de 2020, os progressistas passaram a ser o fiel da balança para dar maioria ao PD nas votações.

Para Jimmy Dore e alguns outros na esquerda, este poder deveria ser usado para receber algo em troca, de forma a conseguir aprovar projetos que atendam aspirações dos movimentos de base, como o sistema público de saúde. E, para tanto, o establishment do PD deveria ser tratado como um inimigo a ser desafiado.

No entanto, Bernie Sanders – que sempre teve simpatia por Joe Biden – e os membros do Esquadrão, optaram por considerar o PD como um aliado, e resolveram não pleitear nada em troca do apoio a Nancy Pelosi.

– Agenda Mundo: O Esquadrão Progressista consiste atualmente de 6 congressistas: Alexandria Ocasio-Cortez (AOC), Ilhan Omar,  Rachida Tlaib, Ayanna Presley, Cori Bush e Jamaal Bowman.

O Jamaal escreveu no Twitter que o general Colin Powell, recém-falecido, foi uma inspiração para ele. O general esteve associado a vários episódios em sua carreira que podem ser caracterizados como crimes de guerra. A Ilhan Omar declarou que é fã da Margareth Tatcher,  que atacou os direitos trabalhistas, e fez cortes nos programas sociais no Reino Unido. E, além disso, cometeu crimes de guerra nas Malvinas e na Irlanda do Norte.

Glenn, você acha que essas declarações do Jamaal e da Ilham podem ser compatíveis com alguém que se diga progressista?

– Glenn: Muitas vezes as pessoas presumem que ser membro do Esquadrão significa estar bem à esquerda do espectro político, o que não corresponde à realidade.

Por questões eleitorais, Jamaal Bowman e AOC se posicionaram a favor de mais verbas norte-americanas para Israel aumentar sua proteção com o escudo antimísseis, ao passo que os outros quatro membros foram contrários, revelando uma divisão no grupo.

– Agenda Mundo: Glenn, vamos ver outras tretas no campo progressista.

Os jornalistas Cenk Uygur e Ana Kasparian apresentam no YouTube o programa Os Jovens Turcos (traduzido de The Young Turks), considerado liberal e progressista. Em um programa no mês de maio deste ano, Ana acusou o jornalista Aaron Maté de estar a serviço de ditadores desprezíveis, uma referência a Putin e Assad. Ana acusou Maté de negar que crianças sírias foram mortas com ataques químicos.

Aaron Maté é um jovem jornalista que contribuiu para expor a farsa que fora montada dentro da OPAQ, a Organização para Prevenção de Armas Químicas, para incriminar o governo Assad (ver artigo aqui). Maté também ajudou a expor outra farsa, que foi o caso que ficou conhecido   como Russiagate, em que Putin foi acusado de conluio com Donald Trump, para prejudicar Hillary Clinton nas eleições presidenciais de 2016.

Jimmy Dore se mostrou solidário com Aaron Maté.  E isto deu origem à outra treta, poucos dias depois. Ana Kasparian acusou Jimmy de ter cometido assédio sexual, quando eles trabalharam juntos, 10 anos antes.

Em seguida Os Jovens Turcos abriram chumbo grosso contra você, Glenn, por causa do artigo em que você comenta as táticas sujas que passaram a ser usadas para desqualificar adversários de políticos do establishment do PD. Você pode comentar sobre estas questões, Glenn?

– Glenn: O conflito parece muito pessoal, mas tem mais a ver com o debate sobre o relacionamento entre a esquerda e o Partido Democrata. Os Jovens Turcos querem ficar próximos ao PD, e recebem financiamentos de bilionários associados ao Partido. Então eles acusam os críticos do PD de serem agentes da Rússia, e para tanto, fazem uso de teorias da conspiração.

O que provocou o meu envolvimento direto foi que a Ana Kasparian já havia ameaçado o Jimmy de trazer a questão do assédio sexual, quando ele fez críticas pesadas aos Jovens Turcos. Uma acusação de assédio sexual não pode ser explorada como uma ferramenta contra o inimigo político.

– Agenda Mundo: O Cenk Uygur, que tem origem turca, escolheu para o seu programa dito progressista, o mesmo nome do grupo de jovens oficiais que assumiram o poder na Turquia através de um golpe, em 1913. E que são considerados responsáveis pelo genocídio de centenas de milhares de armênios. Você poderia comentar, Glenn?

– Glenn: É realmente bem estranho, mais do que uma coincidência, como eles alegam. É como se fosse criado um programa no Youtube com o nome de Juventude de Hitler, mas alegar que não tem nada a ver com nazismo.

– Agenda Mundo: Mudando um pouco o foco, o Facebook passou a considerar jornalistas como “figuras públicas involuntárias”, desta forma blindando eles contra críticas. Glenn, esta proteção se aplicaria apenas a quem trabalha na mídia tradicional?

– Glenn: Muitos jornalistas corporativos, como do The New York Times e de O Globo defendem que os jornalistas não possam ser criticados, para que não se perca a confiança na mídia. O Facebook foi muito pressionado pela grande mídia para adotar esta política. Para mim isso é uma loucura. É necessário que as grandes corporações de mídia possam ser criticadas, pois elas têm grande influência na nossa sociedade.

– Agenda Mundo: Aproveitando que estamos tratando do Facebook, você recebeu críticas por ter se colocado contra qualquer censura on line. Este tema se tornou especialmente sensível aqui no Brasil, após a declaração do Bolsonaro, associando vacina contra Covid-19 e AIDS. Que mecanismos você defende, em uma situação como essa?

– Glenn: Qualquer pessoa decente sabe que o vídeo que o Bolsonaro fez é uma maldade. Para mim, a questão é quem vai controlar o que podemos ou não falar. Quem vai definir o que falso, o que é discurso de ódio?

A pergunta crucial é em quais instituições você confia para decidir o que é verdade ou falso? Google e Facebook podem controlar o nosso discurso político? O governo do Bolsonaro? Eu não confio em qualquer instituição humana controlando o discurso político.

– Agenda Mundo: Concluindo então a nossa entrevista. Como você vê a possibilidade da extrema direita Republicana vencer as eleições de 2022 para o Congresso, e retomar a Casa Branca em 2024? Você vê Donald Trump passando o bastão para algum extremista mais competente que ele?

– Glenn: Os EUA têm muita estabilidade. São muitas facções poderosas, que sempre vão proteger o capitalismo, o militarismo e o corporativismo. Não acredito que Trump, ou qualquer outro candidato republicano possa derrubar o sistema democrático.

O risco não é zero, mas está sendo muito exagerado pelo Partido Democrata, porque eles não têm um programa para melhorar a vida das pessoas. Então eles estão usando a tática de infligir o medo de que Trump possa acabar com a democracia.

– Agenda Mundo: Glenn, a nossa audiência deve ter aproveitado bastante as suas análises. Agradecemos a sua presença, e esperamos recebê-lo novamente no programa.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Mídia dos EUA ataca Biden em defesa das guerras do Pentágono

Por Ruben Rosenthal

A mídia procurou encobrir a forma desastrosa como os militares conduziram a guerra do Afeganistão desde o início.

People climb atop a plane at Kabul airport on Aug. 16. Thousands of people mobbed the airport trying to flee as Afghanistan fell to the Taliban. WAKIL KOHSAR/AFP VIA GETTY IMAGES
Milhares de afegãos invadem a pista do aeroporto de Cabul para fugir do talibã; algumas pessoas sobem no topo do avião,16 de agosto \ Foto: Wakil Kohsar/AFP via Getty Images

 

O presidente Biden ficou sob fogo cerrado da mídia dos EUA e do Ocidente por ter retirado as tropas do Afeganistão. Os pretextos para a avalanche de críticas foram as cenas no aeroporto de Cabul e a impossibilidade da retirada de todos os afegãos que se sentem ameaçados pelos talibãs, principalmente aqueles que  trabalharam com as forças de ocupação.

Mas por de trás deste pretenso interesse humanitário está um total alinhamento com teses militaristas. New York Times, Washington Post e tantos outros veículos de mídia se tornaram verdadeiros porta-vozes do Pentágono. Em parte, esta cooptação se deu através de think tanks financiados pelo complexo bélico.

Biden e as guerras sem fim

Joe Biden prometera em 2019 que, se chegasse à Casa Branca, daria fim às “guerras sem fim” no Afeganistão e Oriente Médio, e terminaria o envolvimento na guerra civil do Iêmen. Eleito presidente, ele pretende retomar a política de Obama de mudar o foco estratégico dos EUA para a região Ásia-Pacífico, para contenção da China e da Rússia.

Mas talvez ele só venha a cumprir parte do compromisso que assumira de remover todas as tropas envolvidas diretamente em combates.

Iraque. As 2.500 tropas de combate norte-americanas deixarão o país até o final do ano. Os Estados Unidos passarão a fornecer “suporte em treinamento e aconselhamento”, assim como apoio aéreo e capacitação de vigilância e inteligência na luta contra o Estado Islâmico. O número de militares poderá ser mantido.

Síria. Biden não pretende retirar a totalidade das tropas estacionadas na Síria. Deverão permanecer cerca de 900 combatentes, incluindo os Green Berets — forças especiais do exército, especializadas em guerras não-convencionais. A presença das tropas dos EUA impede que o governo sírio possa ter acesso aos campos de petróleo e a recursos de agricultura no nordeste do país.

No entanto, o Irã não deverá aliviar a pressão nas tropas estrangeiras que permanecerem no Iraque e Síria. Em apenas uma semana, no começo de julho, ocorreram seis ataques com morteiros e drones contra tropas e diplomatas dos EUA nos dois países. Os ataques teriam partido de milícias apoiadas pelo Irã.

Soldados norte-americanos da infantaria atendem colega ferido
Cena que não deverá se repetir no Afeganistão: soldados norte-americanos prestam assistência à colega ferido, setembro 2010, Kondoz, norte do país \ Foto: Damon Winter/ NYT

Afeganistão. Biden não cumpriu o exíguo prazo que herdara do acordo que Trump fizera com o Talibã, de remoção de todas as tropas  da OTAN até 1 de maio de 2021. Ao invés, a retirada foi iniciada em 1 de maio, com a conclusão sendo então anunciada para 11 de setembro. Os eventos que se seguiram já fazem parte da História.

As cenas caóticas no aeroporto internacional de Cabul trouxeram ecos da retirada norte-americana do Vietnã, em 1975. O atentado suicida junto ao portão do aeroporto — quando morreram 182 pessoas, incluindo 13 militares norte-americanos ­— só fez aumentar as críticas ao governo Biden na mídia.

Fabricando o consenso da mídia contra a retirada de tropas

No passado. Em novembro de 2010, durante o governo de Obama, o jornalista Mark Katz escrevia para o Middle East Policy Council sobre as implicações da saída das tropas norte-americanas do Iraque — que já havia se iniciado — e do Afeganistão.

Para Katz, caso os Estados Unidos saíssem do Iraque e do Afeganistão, seria gerada a percepção de que o poder e a influência norte-americana no Oriente Médio entrariam em declínio. Os aliados regionais poderiam buscar esquemas de segurança alternativos, e com isso reduzir ainda mais influência dos EUA. Os adversários globais ficariam então incentivados a tentar obter a saída das tropas norte-americanas de outros países.

No presente. Artigo de Eric Levitz no New York Magazine, em 25 de agosto, considera que a mídia fabricou o consenso que atribuiu a Biden a maior parte da responsabilidade por uma situação que ele herdara das políticas de seus antecessores. Levitz argumenta que é impossível saber se uma retirada mais lenta das tropas teria evitado o clima caótico que ocorreu no aeroporto de Cabul.

Para o premiado jornalista Gareth Porter, os recentes ataques da mídia norte-americana ao presidente Biden  demonstram que ela é porta-voz do Pentágono e da liderança militar. Ao atribuir a Biden toda a responsabilidade pelas falhas que ocorreram na evacuação de afegãos, a mídia procurou encobrir a forma desastrosa como os militares conduziram a guerra do Afeganistão desde o início, avalia Porter.

A cooptação de jornalistas que atuam em política externa e segurança nacional envolve muitas vezes uma triangulação com think tanks (institutos de análise política) financiados pelo complexo bélico, sendo o principal destes o CNAS, Center for a New American Security (ver artigo no blogue Chacoalhando).

Assim como Levitz, Gareth Porter questiona a premissa que a operação de resgatar dezenas de milhares de afegãos que haviam colaborado com as forças de ocupação poderia ter sido conduzida de forma eficiente, sem gerar pânico.

A campanha de lobby do Pentágono contra a política de Biden se iniciou em abril, quando o presidente recusou-se a manter tropas de forma permanente no Afeganistão, rejeitando o ponto de vista dos generais.  A partir daí, entrou em cena a aliança entre complexo bélico, think tanks e mídia cooptada.

O jornalista David Sanger, do The New York Times, foi bolsista em 2008 do programa de residência do CNAS para escritores. Ele costuma difundir desinformação em seus artigos, em temas como o desenvolvimento de armas atômicas pelo Irã, ataques cibernéticos pela Rússia, como também sobre o vírus Sars-CoV-2 ter se originado no laboratório chinês de Wuhan.

As vésperas da tomada de Cabul pelo Talibã, Sanger e sua colega Helene Cooper retomaram a notícia que em abril o general Mark A. Milley, Chefe do Estado-Maior Conjunto, tentara convencer Biden a manter um efetivo de 3.000 a 4.500 combatentes no país.

Os jornalistas citaram “previsões da inteligência de que em 2 ou 3 anos a Al-Qaeda teria novamente uma base no Afeganistão”. No entanto, a política do Talibã sempre foi de se opor a que a Al-Qaeda fizesse uso do território afegão para planejar ataques terroristas. Os atentados do 11 de setembro foram planejados na Alemanha, lembra Porter.

A dupla Sanger e Cooper também buscou declarações do general aposentado David Petraeus, ex-comandante no Afeganistão no período 2010-2011. Desde então ele vinha liderando um grupo de ex-comandantes e diplomatas que faziam lobby pela manutenção de tropas no país.

Petraeus asseverou que Biden falhou ao não reconhecer a necessidade de garantir a manutenção dos vôos da força aérea afegã. O mesmo ponto de vista foi expresso por Richard Fontaine, CEO do CNAS. Porter contesta este posicionamento, salientando que sem um número suficiente de tropas dos EUA e OTAN no solo seria impossível manter a segurança dos empreiteiros da força aérea.

Talibãs posam junto a avião Super Tucano capturado
Talibãs posam junto a um avião A-29 Super Tucano capturado. A força aérea afegã dispunha de 26 destes aviões comprados pelos EUA. A maioria foi parar no Uzbequistão (Reprodução).

O massacre midiático sofrido Biden não poderia ter deixado de incluir as declarações de Michèlle Flournoy, co-fundadora do CNAS. Flournoy atuou como vice-secretária de Defesa de Políticas no governo Obama, dando suporte aos comandantes em campo do Pentágono.

Quando Biden assumiu a presidência, Flournoy esperava ser indicada secretária de Defesa, cargo máximo do Departamento de Defesa. Conforme relatado no site Mother Jones, alguns setores progressistas do Partido Democrata se opuseram fortemente a esta indicação.

A rejeição foi por Flournoy ter contribuído para o aumento do envolvimento militar norte-americano no Afeganistão, e pelo apoio à intervenção da OTAN na Líbia, em 2011. Ao final, ela foi preterida em favor da indicação do general Lloyd Austin, ex-comandante das tropas norte-americanas no Iraque.

Em entrevista a Greg Jaffe, do Washington Post (outro jornalista que recebeu bolsa de residência do CNAS), Flournoy atribuiu o fracasso dos EUA no Afeganistão ao empenho excessivo em se tentar introduzir “ideais democráticos, quando a realidade do país é outra”.

Para Gareth Porter, Flournoy omitiu o fato crucial que, desde o começo, a intervenção se baseou em uma aliança dos EUA com facções de milicianos corruptos e assassinos. As milícias foram contratadas para atuar como polícias nas províncias, fornecendo segurança para os comboios que acessavam as bases militares dos EUA e da OTAN.

No entanto, os líderes das milícias (“warlords”) não estavam submetidos ao governo civil de Cabul. Eles e seus comandados agiam como bandidos, roubando e extorquindo a população, sequestrando e estuprando mulheres, moças e meninos — o que foi constatado pela Anistia Internacional desde 2003. Apesar das diversas denúncias encaminhadas, os militares norte-americanos nada fizeram a respeito.

O periódico on-line Foreign Policy também mantém uma posição favorável a intervenções militares pelos EUA. Em relação à saída das tropas do Afeganistão, FP relatou que vários atuais e ex-diplomatas expressaram anonimamente “imensa raiva, choque e amargura pelo colapso do governo que eles passaram décadas apoiando”.

Robin Wright, do New Yorker, expressou frustração pelo “fim desonrável, que enfraquece a posição dos EUA perante o mundo, talvez de forma irreparável…. O Talibã ganhou uma batalha-chave contra a democracia no Afeganistão”….O país certamente se tornará um paraíso para membros da Al-Qaeda”.

Assim, em coro uníssono, os veículos da mídia corporativa e mesmo independente responsabilizaram Biden por tudo o que já ocorreu ou venha a ocorrer como decorrência da retirada das tropas.

Resta ver se, em substituição ao engajamento direto de tropas norte-americanas em combates, Biden optará por terceirizar as guerras, empregando tropas de outros países, mercenários ou mesmo facções terroristas. O que não seria novidade.

Crise Humanitária no Afeganistão

Os preços de alimentos e de combustíveis dispararam no Afeganistão, que atravessa um período de seca, fazendo com que o país precise de ajuda humanitária, segundo a ONU.

Displaced Afghans who have fled the advancing Taliban reach out for aid at a camp in Kabul, Afghanistan. Photograph: Paula Bronstein/Getty Images
Afegãos pedem ajuda humanitária em um campo de Cabul, Afeganistão, agosto 2021 \ Foto: Paula Bronstein/Getty Images

Como forma de usar o sofrimento do povo afegão para pressionar o governo Talibã, o governo Biden não pretende liberar cerca de 10 bilhões de dólares em ouro, investimentos e reservas que estão custodiados nos Estados Unidos. A falta de liquidez financeira pode levar ao colapso da economia afegã.

O Departamento do Tesouro norte-americano declarou à agência Reuters que não irá aliviar as sanções sobre o governo Talibã, ou as restrições que impedem o acesso ao Fundo Monetário Internacional. Assim, mais um povo fica refém do controle que os Estados Unidos exerce no sistema financeiro.

Segundo relato no The Guardian, na conferência realizada em 13 de setembro pela ONU em Genebra para tratar da crise humanitária, o governo Talibã assegurou que as agências de ajuda poderão operar de forma independente, em segurança, e contratar mulheres.

Concluindo. A saída dos Estados Unidos do Afeganistão gerou um vácuo de poder que abre caminho para um possível aumento da influência do Paquistão, China, Irã e Rússia. No Oriente Médio, novos alinhamentos dos atores regionais também irão alterar a geopolítica pelos próximos anos.

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Indústria bélica influencia a política externa do governo Biden

Por Ruben Rosenthal

Os gastos com armamentos apenas fortalecem a continuidade de guerras e novas intervenções militares. Uma aliança profana une think tanks, complexo bélico e imprensa.  

Soldados norte-americanos em avião de transporte chegam a Mazar-i-Sharif, Afeganistão, abril 2010
Biden dará fim às guerras infindáveis? Chegada de tropas ao Afeganistão, 2010 \ Foto: Damon Winter/The New York Times

Nos Estados Unidos é recorrente o envolvimento promíscuo dos institutos de análise política, conhecidos como think tanks, com a indústria bélica, órgãos do governo, jornalistas e governos estrangeiros.

Vários indicados por Biden para posições relevantes na administração tiveram ligações estreitas com o think tank CNAS, Centro para uma Nova Segurança Americana, que tem um histórico de apoiar as políticas belicistas do Pentágono.

Embora Biden tivesse prometido em 2019 que se chegasse à Casa Branca daria fim às “guerras infindáveis”, as novas escolhas de integrantes para os cargos de política externa e de segurança parecem sugerir o contrário. A retirada das tropas do Afeganistão pode ter sido uma exceção, que talvez ele não pretenda repetir no Iraque e na Síria.

Ou então, ao invés do engajamento direto de tropas norte-americanas, talvez Biden venha a terceirizar as guerras dos Estados Unidos, empregando tropas de outros países ou de facções terroristas (proxy wars). O que não seria novidade.

A volta da bolha assassina

O filme de 1958 “The blob”, que recebeu no Brasil o título de “A bolha assassina”, foi estrelado por Steve McQueen, então com 28 anos. No filme, uma entidade alienígena amorfa e gelatinosa chegou ao planeta Terra presa em um meteorito.

The revenge of the blob
A volta da bolha assassina \ cartaz do filme The Blob, 1958, Paramount

O setor tradicionalista do establishment de relações exteriores foi apelidado de “blob” pelo assessor de Barack Obama, Ben Rhodes, em 2016. Para Rhodes, Hillary Clinton (então secretária de Estado), bem como outros belicistas de ambos os partidos que apoiavam a guerra no Iraque e no Afeganistão faziam parte da bolha.

Tanto Barack Obama como Donald Trump procuraram manter uma certa distância dos tradicionalistas, o que não impediu a forte influência de Hillary Clinton no governo Obama, e de John Bolton na administração Trump.

Quando o candidato vitorioso Joe Biden começou a formar, em dezembro de 2020, a equipe sênior que assumiria posições-chave na política externa e na segurança, ele privilegiou a elite linha-dura do establishment, os chamados falcões da política. Para o  site Vox, foi a “vingança da bolha”.

Para o cargo de conselheiro de segurança nacional, Biden chamou Jake Sullivan, que já fora seu conselheiro de segurança, quando vice-presidente na gestão de Obama. Sullivan atuou como membro (fellow) sênior junto ao Carnegie Endowment for International Peace.

Os doadores do Carnegie incluem as empresas bélicas Boeing e Northrop Grumman, a Marinha, a Força Aérea e a agência de inteligência da defesa, segundo relatório de outubro de 2020 do Centro para Política Internacional (CIP, na sigla em inglês).

Para o Departamento de Estado, o presidente convocou Antony Blinken, que o acompanha desde 2002. No segundo governo Obama, Blinken passara a ser o número 2 no Departamento de Estado.

Segundo o site Politico, em 2017 o atual secretário de estado formou com Michèle Flournoy, Avril Haines e outros membros da administração Obama, a empresa de consultoria WestExec Advisors.

Muitos dos funcionários da empresa são membros do Partido Democrata que ocuparam posições na segurança nacional e política externa.  A WestExec Advisors tem em seu portfólio de clientes corporações do setor bélico, como a Boeing e a firma israelense Windward, de tecnologia militar.

Think tanks e a indústria bélica

Com frequência, os think tanks não são transparentes sobre a origem dos fundos que recebem. Desta forma, relatórios favoráveis aos interesses dos doadores são produzidos pelos pesquisadores dos institutos, sem que seja mencionada a existência de possíveis conflitos de interesses nos pareceres.

O relatório produzido pelo CIP analisou o financiamento pelo governo norte-americano e por fornecedores da defesa aos 50 maiores think tanks dos EUA. Os principais recipientes destes financiamentos foram a Corporação RAND, CNAS, e New America. Os setores do governo que mais contribuíram foram a Secretaria de Defesa, a Força Aérea, o Exército, o Departamento de Segurança Interna, e o Departamento de Estado. As empresas fornecedoras da Defesa que fizeram as maiores doações foram a Northrop Grumman, Raytheon, Boeing, Lockheed Martin e Airbus.

Outros institutos também receberam seu quinhão. O Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, na sigla em inglês) construiu sua sede de 1.400 metros quadrados em Washington com fundos recebidos de empresas do setor bélico, como a Lockheed, Boeing, Rayheon, de gigantes do setor farmacêutico, como a Procter & Gamble, de petrolíferas como a Chevron, e do Sultão de Omã.

Lockheed Martin’s latest Indago tethered variant is ready for intelligence at the battlefield
Drone Indago 3, para vigilância e inteligência \ cortesia Lockheed Martin

Conflitos de interesses na administração Biden

O relatório do “projeto porta-giratória” (revolving door project), do Centro para Pesquisa Econômica e Política (CEPR, na sigla em inglês), revelou que pelo menos 16 dos especialistas indicados por Biden para cargos relevantes nas áreas de segurança nacional e de relações exteriores, já exerceram funções na estrutura do think tank CNAS.

Para a Diretoria Nacional de Inteligência, a qual se subordinam 17 agências de inteligência, foi indicada Avril Haines. Haines já atuara como a número 2 da CIA na administração Obama, quando o programa de assassinatos por drones causou a morte de centenas de civis. Haines também teria acobertado os envolvidos no programa de torturas que decorreu do 11 de setembro.

Outra indicação de um integrante com vínculos ao CNAS foi a de Victoria Nuland para a sub-Secretaria de Assuntos Políticos, o terceiro cargo em importância do Departamento de Estado. Com seu forte posicionamento anti-Rússia, Nuland defendera anteriormente a presença de bases permanentes da OTAN próximas à fronteira oriental do Tratado.

Os setores progressistas conseguiram  evitar a indicação de Michèle Flournoy para o Departamento de Defesa, por seu apoio anterior à guerra do Afeganistão e à intervenção na Líbia. Flournoy foi co-fundadora do CNAS em 2007. Ao final, o cargo máximo da Defesa ficou para o general Lloyd Austin, que chegou a comandar as tropas norte-americanas no Iraque.

Outros indicados para posições relevantes na administração Biden, que tinham vínculos com o CNAS, foram David Cohen, que assumiu como vice-diretor da CIA, Colin Kahl, que ficou como sub-secretário de Defesa, e Susan Rice, como diretora do Conselho de Política Doméstica.

Doadores do CNAS

No site do CNAS estão indicadas as doações recebidas no período outubro 2019-setembro 2020. As maiores contribuições são provenientes do setor de defesa, aí se incluindo a Northrop Grumman Corporation, o Departamento de Estado e o de Defesa.

Elevadas contribuições foram também recebidas do Bank of America; de empresas do setor de informática, como a Google e Microsoft; e de instituições ligadas a governos de outros países, como Japão, Coréia, Taiwan e Canadá.

O relatório do “revolving door project apresentou o estudo de cinco casos em que o CNAS promoveu os interesses de seus doadores, sem a devida transparência: apoio a fornecedores de material bélico para as Forças Armadas;  apoio a estratégias no Afeganistão defendidas por oficiais das FAs com vínculos ao CNAS; apoio à embaixada dos Emirados Árabes Unidos, aliviando regras de exportação de drones de uso militar; recomendação de políticas para as relações EUA-China que beneficiassem doadores do think tank; defesa da compra de jatos de guerra da Northrop Grumman.

New B-21 stealth bomber aircraft, Northrop Grumman
Novo bombardeiro B-21 Raider, invisível ao radar / Arte gráfica: cortesia Northrop Grumman

Em relação ao quinto item, consta no relatório que, em 2018, o CNAS enalteceu o bombardeiro invisível B-21 Raider (dados técnicos) produzido pela  Northrop Grumman, defendendo a aquisição de 50 a 75 unidades, em adição as 100 que já haviam sido adquiridas. Coincidentemente, pouco tempo depois, a empresa bélica doou ao CNAS uma quantia de valor não inferior a 500 mil dólares (site do CNAS).

O relatório do revolving door project também ressaltou que diversos doadores –  indivíduos ou corporações – se encontram representados no quadro de conselheiros do CNAS, chegando a compor 70% dos assentos. Várias destes doadores têm vínculos diretos com empresas do setor de defesa. Embora o conselho não exerça governança, os conselheiros podem encontrar formas de defender seus interesses particulares junto à diretoria do think tank.

A promiscuidade entre think tanks e governos estrangeiros

Denúncias envolvendo ligações suspeitas entre think tanks e governos estrangeiros não constituem novidade. Em 2014, artigo no The New York Times já alertara que potências estrangeiras compravam influência através de think tanks. Segundo o artigo, mais de 12 institutos de análises políticas em Washington haviam recebido doações de governos estrangeiros.

Alguns acadêmicos destes institutos chegaram a relatar que sofreram pressões internas para produzirem relatórios que favorecessem os financiadores das pesquisas, de forma a induzir autoridades norte-americanas a adotar determinadas políticas sugeridas.

Para o CEPR é preciso não esquecer que os governos estrangeiros que financiam think tanks norte-americanos são aliados dos Estados Unidos. Portanto, muitas vezes os interesses desses países não são necessariamente considerados antagônicos aos dos EUA.

Mas não é sempre assim. Donald Trump vetou o acordo de livre comércio da Parceria Trans-Pacífico (TPP, na sigla em inglês) no primeiro dia de seu governo. Conforme citado no artigo do NYT, durante a gestão de Barack Obama, o Japão concedera fundos ao CSIS para promover o TPP.

A promiscuidade entre think tanks e jornalistas

O jornalista Dan Cohen alerta em artigo no The Grayzone que jornalistas dos principais veículos da mídia norte-americana, que atuam em política externa e segurança nacional, têm ligações com o CNAS. Estes jornalistas provavelmente recebem benesses através dos financiamentos que abastecem o CNAS.

Cohen lembra que o envolvimento indevido entre jornalistas e o governo dos EUA é anterior à fundação do CNAS em 2007. As reportagens do jornalista David Sanger – atual correspondente-chefe em Washington do NYT – sobre a existência de armas de destruição de massa no Iraque ocorreram ainda no governo do presidente George W Bush.

Em 2008, Sanger fez parte do programa de residência do CNAS. O jornalista prosseguiu difundindo desinformação com seus artigos, em temas como o desenvolvimento de armas atômicas pelo Irã, ataques cibernéticos pela Rússia, como também sobre o vírus Sars-CoV-2 ter se originado no laboratório chinês de Wuhan.

No site do CNAS são citados como participantes programa de residência, quatro jornalistas do NYT, quatro do Washington Post, além de um jornalista do site Foreign Policy (Política Externa). Dan Cohen dá alguns exemplos da desinformação que estes jornalistas contribuíram para propagar.

Eric Schmitt, do NYT, difundiu estórias de hacking pela Rússia; Michael Gordon (ex-NYT e agora no Wall Street Journal) insistiu durante meses em propagar notícias sobre a origem do coronavírus no laboratório de Wuhan; Greg Jaffe, do Washington Post, escreveu sobre a retirada de tropas do Afeganistão; Thomas Ricks, também do Washington Post, comparou Putin a Bin Laden. Além das histórias de Sanger, é claro.

Concluindo. Os gastos com armamentos apenas fortalecem a continuidade de guerras e novas intervenções militares. Uma aliança profana une think tanks, complexo bélico e imprensa.  Enquanto isso,  a população norte-americana anseia por um sistema universal de saúde.

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.