Guerra OTAN-Rússia na Ucrânia caminha para conflito nuclear?

Por Ruben Rosenthal

A escalada do confronto entre OTAN e Rússia parece ter entrado em modo automático e irreversível, com consequências impossíveis de serem previstas.  

Doomsday clock at 100 seconds to midnight
O Relógio do Juízo Final ou do Apocalipse marca 100 segundos para a meia-noite

Os recentes ganhos de território pelas tropas ucranianas usando armamento avançado da OTAN, e os atos de sabotagem contra os gasodutos Nord Stream e possivelmente contra a ponte que conecta Rússia e Crimeia podem requerer uma resposta enérgica de Vladimir Putin. Moscou sabe, no entanto, que do ponto de vista político, o uso de armas nucleares táticas seria contraprodutivo no momento, e deverá reservar o seu uso como último recurso para não perder a guerra contra os Estados Unidos e seus aliados da OTAN.

Como os EUA não estão minimamente interessados em que Rússia e Ucrânia cheguem a um acordo de paz que não seja humilhante para a Rússia, o conflito nuclear se coloca como mais que uma remota possibilidade, 60 anos após a crise dos mísseis em Cuba, que deixou o mundo à beira do Armagedon.

Em retrospecto, na sequência da entrada de tropas russas para a Ucrânia em fevereiro, o Ocidente ampliou o boicote à economia russa com foco na energia, ao mesmo tempo em que promoveu o envio maciço de armamento sofisticado da OTAN para ser usado pelos ucranianos na frente de batalha.

Da mesma forma que já haviam bloqueado há anos a implementação dos acordos de Minsk, que concederiam certo grau de autonomia para as províncias ucranianas de Donetsk e Luhansk, os EUA e seus aliados sabotaram as negociações de paz entre Rússia e Ucrânia, quando estas começavam a avançar. O presidente Zelensky foi instado pelo então primeiro-ministro britânico Boris Johnson a não prosseguir com as negociações, quando se reuniram em Kiev, em abril.

A política de Washington e de seus aliados é perfeitamente coerente com estratégia de sobrecarregar a economia da Rússia, preconizada há anos no relatório da Rand Corporation, think tank financiado pelas forças armadas norte-americanas. Uma das formas propostas seria exatamente forçando o engajamento de tropas russas no exterior. Outra forma é comprometendo as receitas que a Rússia obtém através da venda de hidrocarbonetos.

No campo da energia, os gasodutos Nord Stream 1 e 2, construídos para abastecer a Europa com gás russo, foram sabotados em 26 de setembro, data em que foram registradas poderosas explosões por sismógrafos na Dinamarca e Suécia. O Nord Stream 2 já estava concluído, mas ainda não entrara em operação, por retaliação da Alemanha pela invasão russa, enquanto que o outro gasoduto encontrava-se em manutenção. Seguiram-se trocas de acusações entre a Rússia e países da OTAN sobre a responsabilidade pelo atentado.

No cenário da guerra, embora a campanha de desinformação esteja sendo usada em larga escala nos meios de comunicação do Ocidente, as indicações são de que os ucranianos estão conseguindo sustar o avanço das tropas russas, e mesmo expulsá-las de algumas regiões que já haviam conquistado. A reação de Putin foi de convocar 300 mil reservistas e ameaçar o uso tático de armas nucleares.

A anexação formal pela Rússia, em 30 de setembro, das quatro províncias parcialmente ocupadas – Donetsk, Luhansk (que constituem o Donbass), Kherson e Zaporíjia – após um referendo confirmatório, abriria o caminho para o uso de armas nucleares em defesa da integridade dos territórios incorporados à pátria Rússia.

Para o economista norte-americano Jeffrey Sachs professor da Universidade de Columbia, o atual conflito na Ucrânia corresponde, em essência, a uma Segunda Guerra da Criméia. Desta vez, uma aliança militar liderada pelos EUA procura expandir a OTAN até a Ucrânia e Geórgia, ampliando a presença da Organização no estratégico Mar Negro.

A escalada do confronto entre OTAN e Rússia parece ter entrado em modo automático e irreversível, com consequências impossíveis de serem previstas.

O boicote à exportação da energia russa

Em artigo de 22 de setembro no think tank russo Valdai Club, o acadêmico e especialista em energia Vitaly Yermakov analisou em detalhes, como as medidas dos EUA e da União Européia (UE) para boicotar as receitas da Rússia com a venda de combustíveis estavam fadadas ao fracasso.

A guerra na Ucrânia fez com que a UE procurasse apressar o até então gradual processo de independência em relação aos combustíveis fósseis exportados pela Rússia. O boicote começou com o carvão (desde 11 de agosto de 2022), e deverá incluir também o petróleo bruto (a vigorar em 5 de dezembro de 2022) e produtos refinados (a partir de 1º de fevereiro de 2023). A UE também anunciou planos de eliminar completamente suas importações de gás russo até 2027.

Até agora, a Rússia tem sido resiliente, e conseguiu introduzir contramedidas eficazes, como redirecionar suas exportações de carvão e petróleo para a Ásia. Além disso, passou a oferecer suas commodities de energia com descontos significativos, evitando assim a necessidade de reduzir drasticamente a produção. Com as tensões geopolíticas em 2022, os preços globais do petróleo aumentaram significativamente, reforçando as receitas de exportação da Rússia, mesmo após os descontos.

Com o conflito na Ucrânia ainda está se arrastando, e a proximidade do inverno europeu, a UE passou a enfrentar um dilema: colocar em prática o embargo petrolífero em dezembro, arriscando nova disparada nos preços do petróleo, o que poderia trazer insatisfação da população em seus países, ou então deixar de lado a implementação do embargo e perder credibilidade.

Como alternativa, foi então concebida a ideia de impor limites de preços sobre os combustíveis exportados pela Rússia, negando a este país receitas extras que até então vinham preservando a economia russa de ser afetada pelas amplas sanções econômicas. Para o plano funcionar seria criado um cartel de compradores, que determinaria o limite de preço para o petróleo russo.

Para induzir compradores e transportadores a cooperar com o plano, seria negado o seguro marítimo internacional – majoritariamente controlado pela empresa Lloyds de Londres – a qualquer carga russa que não estivesse cumprindo os limites de preços. Ideias semelhantes começaram surgir na UE sobre fixar os preços do gás russo.

No entanto, sem a anuência de países como China e índia, tal plano nasceu já fadado ao fracasso. O presidente Vladimir Putin, falando no Fórum Econômico Oriental em Vladivostok, em 7 de setembro, alertou que a Rússia cortaria todo o fornecimento de energia para países que tentassem impor limites de preços às exportações russas.

A sabotagem dos gasodutos Nord Stream

O relato das explosões que danificaram os gasodutos Nord Stream 1 e 2 no noticiário da mídia corporativa do Ocidente revela como ela está alinhada com o esforço de guerra da OTAN.  No britânico The Guardian: Rússia é suspeita de ter executado as explosões para colocar pressão no fornecimento de energia.  No The New York Times: A CIA havia alertado os governos europeus de um possível ataque aos gasodutos. Na CNN: oficiais europeus de segurança haviam observado navios e submarinos russos em locais não distantes de onde ocorreram os vazamentos.

Gas leakage from Nord Stream 2
Gás emanando do vazamento do gasoduto Nord Stream 2 \ Foto: Airbus DS2022/AFP via Getty Images

No entanto, a versão de que a Rússia teria sido responsável pelas explosões não se sustenta, pois o dano aos gasodutos também significa que ela perde um elemento de pressão que ainda tinha sobre a Europa. Por outro lado, não é difícil identificar os beneficiários da interrupção do fornecimento do gás russo. O secretário de estado norte-americano Antony Blinken celebrou o que chamou de “tremenda oportunidade de remover a dependência (da Europa) no gás russo” (ver vídeo).

A Ucrânia sempre se opôs a entrada em operação do Nord Stream 2 , pois representaria a perda das vultosas receitas provenientes dos gasodutos russos subterrâneos que atravessam seu território, construídos durante o período da União Soviética. Não apenas Kiev, mas também a Polônia e os Países Bálticos haviam se aliado aos EUA para impedir a implementação do Nord Stream 2. Os norte-americanos chegaram a impor sanções às empresas russas e alemãs envolvidas na construção do gasoduto

O ex-ministro polonês das relações exteriores, Radosław Sikorski, atualmente no Parlamento Europeu, gerou forte controvérsia ao postar um tuíte que inclui uma foto do vazamento de gás no gasoduto danificado, acompanhada das palavras: “Obrigado, EUA”.  O agradecimento indica que Biden teria cumprido a promessa que fizera semanas antes da entrada das tropas russas na Ucrânia, caso a Rússia invadisse o país vizinho: “o gasoduto Nord Stream 2 deixará de existir; vamos acabar com ele”.

“Coincidentemente”, estava prevista para a primeira semana de outubro a entrada em operação do Baltic Pipe, o gasoduto construído pela Polônia com apoio da UE. O gasoduto irá levar gás natural da Noruega para a Europa Central através da costa da Polônia, podendo alcançar por terra outros países da região.

Em entrevista no canal de TV a cabo Bloomberg, o professor Jeffrey Sachs declarou “apostar que (a explosão) foi uma operação dos EUA, talvez EUA e Polônia”. Segundo ele, a motivação seria prejudicar ainda mais a economia russa. A entrevista foi rapidamente interrompida pelo apresentador do programa, após o professor emitir sua opinião.

Deve-se ainda levar em consideração que, com os dois gasodutos impossibilitados de operar não haveria como os governos da UE ceder aos protestos de suas populações, que já começam a ocorrer. No entanto, uma das quatro linhas do Nord Stream 2 não foi danificada, e poderia fornecer gás para a Europa. Resta ver se o governo alemão autorizaria a utilização no abastecimento do país, ou se vai continuar submetido à pressão dos EUA, prejudicando assim sua própria população.

A extrema-direita alemã já está capitalizando a insatisfação da população com o aumento do custo de vida resultante da escassez energética. Apoiadores do partido Alternativa para a Alemanha (AfD) se reuniram em frente ao prédio do Reichstag em Berlim, em 8 de outubro, para protestar contra o aumento dos preços na Alemanha (ver vídeo). O co-líder do partido acusou o governo de travar uma guerra contra seu próprio povo, ao impor sanções à Rússia.

Um país que colocou em primeiro lugar seus próprios interesses foi a Arábia Saudita. Uma coalizão de nações produtoras de petróleo liderada pela Rússia e Arábia Saudita anunciou em 5 de outubro uma redução na produção de petróleo em 2 milhões de barris por dia, o que deverá levar ao aumento dos preços do gás em todo o mundo e reforçar a economia Rússia em seu esforço de guerra.

Referendo Fake de anexação?

Para o ex-embaixador britânico Craig Murray, defensor da independência da Escócia e forte crítico da expansão da OTAN, o referendo de anexação pela Rússia promovido nas regiões ocupadas pelas tropas russas foi irregular.

Além de questionar se foram seguidas as regras básicas para a realização de um referendo internacional, Murray considera que o resultado que foi divulgado, em que mais de 90% de votos nas quatro regiões ocupadas foram favoráveis à anexação, estaria longe de refletir a real proporção da população de origem russa nestas regiões.

Regions anexed by Russia after the 2022 referendum
O mapa mostra as regiões anexadas à Rússia após o referendo de 2022 \ Fonte: Instituto para o Estudo da Guerra/BBC

Murray apresenta os resultados do último censo realizado na Ucrânia, em 2001. Em Donetsk, os russos representavam 38,2% e os ucranianos, 56,9%. Em Luhansk: russos-39,0%, ucranianos-58,0. Em Kherson: russos-14,1, ucranianos-82,0. Em Zaporíjia- russos-24,7, ucranianos-70,8. Já na Criméia, os russos representavam de fato a maioria da população, com 58,3%, enquanto os ucranianos constituíam 24,3% e os tártaros 12,0%.

Assim, para o ex-embaixador, se constituiria em falácia a propalada versão de que as províncias de Donetsk e Luhansk, que constituem o Donbass, seriam constituídas majoritariamente de habitantes de origem russa, mesmo levando em conta o percentual de ucranianos que adotaram o russo como língua principal.

Por outro lado, Murray não leva em conta a possibilidade de que, nas regiões anexadas, parte da população de origem ucraniana – majoritariamente rural ­– pode ter abandonado suas casas desde o início dos conflitos em 2014, após o golpe que afastou o presidente eleito de origem russa, Victor Yanukovych. De qualquer forma, a discrepância é bem significativa, e levanta questionamentos sobre a lisura do processo de consulta.

O ex-embaixador considera ainda que Putin está caindo no jogo estratégico dos Estados Unidos de sangrar a Rússia, em uma guerra na qual a tecnologia militar do Ocidente é imensamente superior. Para Murray, os 300 mil reservistas que Putin enviará para a guerra serão abatidos à distância, sem nem mesmo ver o inimigo.

Para Scott Ritter, ex-oficial de inteligência do Corpo de Marines dos EUA, a decisão de Putin de simultaneamente mobilizar os reservistas russos, enquanto absorve o território do sul e leste da Ucrânia para a Federação Russa, coloca a OTAN em novo dilema: continuar a fornecer apoio material e financeiro maciço à Ucrânia, tornando-se parte direta do conflito, algo que ninguém no bloco quer, ou então recuar do apoio bélico à Ucrânia.

Explosão danifica a ponte Rússia-Crimeia

No sábado, 8 de outubro, foi parcialmente destruída a ponte que liga Rússia e Crimeia, que havia sido inaugurada por Putin em 2018. As suposições iniciais eram de ela poderia ter sido alvo de um míssil ucraniano ou da explosão de um caminhão-bomba, ocasionando ainda incêndios em vagões de trem contendo combustível. O presidente russo já acusou a Ucrânia pelo incidente. Um alto oficial do Segurança nacional ucraniana postou um vídeo do incêndio, acompanhado da canção “Feliz Aniversário, Sr. Presidente” (cantada por Marilyn Monroe), se referindo ao aniversário de Vladimir Putin na véspera.

A retaliação da Rússia veio na segunda-feira, 10 de outubro, através de bombardeios maciços em várias cidades. Segundo o Ministério da Defesa da Ucrânia, a Rússia disparou ao menos 83 mísseis contra Kiev, Lviv e Zaporíjia. A capital ucraniana não era bombardeada desde que o foco da guerra mudara para a conquista da região leste da Ucrânia após as primeiras semanas do início do conflito.

O Relógio do Juízo Final ainda permanece em 100 segundos para a meia-noite. Até quando?

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

 

 

Judeus na Palestina: de Napoleão à Nakba

Por Ruben Rosenthal

Nas manifestações do Dia da Nakba, os palestinos brandem as chaves das casas que foram obrigados a deixar, e para as quais ainda têm a esperança de voltar um dia.  expulsão de palestinos

Palestinos expulsos de suas casas \ Foto: domínio público

A limpeza étnica de palestinos promovida pelos judeus começou efetivamente no início do século 20, com a implantação dos primeiros assentamentos judaicos em terras da Palestina; ocorreu de forma massiva em 1948; e prossegue desde então.

A geopolítica internacional continua a favorecer Israel. Até quando as potências Ocidentais continuarão a se omitir em relação à ocupação de terras palestinas e à violência desmedida contra a população? A aprovação da Lei dos Estado-Nação em 2018 reforçou as críticas, tanto internamente, como vindas de judeus da diáspora, de que Israel se tornou um regime de apartheid.

A matéria que se segue apresenta extratos do artigo “Uma breve história do conflito Israel-palestinos”, publicado pelo jornal britânico The Independent. Inclui também alguns trechos de matéria publicada pela BBC News. Os subtítulos e os textos entre parênteses foram acrescentados por este autor.

Um enclave europeu no Oriente Médio 

A ideia do estabelecimento de uma pátria judaica na Palestina remonta a 1799, vinda de Napoleão Bonaparte, após o comandante francês promover cerco a Acre (Akka, em árabe), como parte  de sua campanha contra o Império Otomano.

Napoleão acabou sendo derrotado nessa conquista, mas a tentativa de estabelecer uma fortaleza europeia no Oriente Médio foi revivida 41 anos depois pelos britânicos. O secretário de Relações Exteriores, Lord Palmerston, escreveu a seu embaixador em Istambul, instando-o a pressionar o sultão otomano para abrir a Palestina aos imigrantes judeus, como meio de conter a influência do governador egípcio Mohammed Ali. Naquela época, havia apenas cerca de 3.000 judeus vivendo na Palestina.

Alguns benfeitores ricos, como o aristocrata francês Barão Edmond de Rothschild, começaram a patrocinar a ida de judeus da Europa para a Palestina. Na ocasião, os maiores contingentes vieram da Europa Oriental. Foram estabelecidos assentamentos, o mais notável sendo Rishon Le Zion, fundado em 1882.

Surge o Sionismo

O escritor austríaco Nathan Birnbaum cunhou o termo “sionismo” em 1885. Uma década depois, o jornalista austro-húngaro Theodor Herzl publicou o livro “O Estado Judeu”, pregando o estabelecimento de uma entidade judaica.

Dois rabinos foram então enviados à Palestina pelo amigo de Herzl, Max Nordau, para investigar a viabilidade da ideia, mas relataram: “A noiva é linda, mas é casada com outro homem”.

No entanto, Birnbaum, Herzl e Nordau não ficaram demovidos de seus objetivos, e em 1897 organizaram o Primeiro Congresso Sionista, em Basel, Suíça. Na ocasião puderam discutir planos de fazer lobby junto às potências europeias, para a concretização do sonho de uma nação judaica independente.

Em 1907, a Grã-Bretanha estava considerando a necessidade de estabelecer um “estado-tampão” no Oriente Médio, para reforçar seu domínio.

Começa a limpeza étnica

O líder sionista britânico Chaim Weizmann chegaria a Jerusalém nessa época, para formar uma empresa voltada para a aquisição de terras perto de Jaffa. Em três anos, cerca de 10.000 acres de terra foram adquiridos na região de Marj Bin Amer, no norte da Palestina.

Cerca de 60.000 agricultores locais foram forçados a sair de suas terras para acomodar judeus que chegavam da Europa e do Iêmen. Foi estabelecida a milícia Hashomer para proteger o número crescente de assentamentos de judeus.

Fim do Império Otomano: Declaração Balfour e o futuro da Palestina  

Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a Grã-Bretanha, desconfiada dos maometanos, intensificou seu interesse em desenvolver uma presença aliada na Palestina, também como forma de fortalecer o domínio sobre o Canal de Suez.

Em janeiro de 1915, o político do Partido Liberal, Herbert Samuel, esboçou em segredo o memorando “O Futuro da Palestina”. Samuel defendeu a anexação da Palestina e a gradativa formação de um Estado Judeu autônomo, sob a proteção do Império Britânico.

No ano seguinte foram demarcadas as regiões que ficariam sob as esferas de influência britânica e francesa, no caso de um colapso do domínio otomano.

Em novembro de 1917, em carta do secretário de relações exteriores britânico, Arthur Balfour, ao líder da comunidade judaica britânica, Barão Walter Rothschild, foi declarado formalmente o  apoio ao estabelecimento de um “lar nacional para o povo judeu” na Palestina.

Com a  Declaração Balfour, o governo britânico assumiu que era proprietário das terras e que tinha o direito de doá-las, algo bastante questionável. Em 11 de dezembro de 1917, o general Edmund Allenby capturou a cidade sagrada de Jerusalém.

Com o fim da Primeira Grande Guerra, o presidente dos EUA, Woodrow Wilson, encomendou um relatório sobre as regiões não turcas do derrotado Império Otomano. Naquela ocasião, quase 90 por cento dos não-judeus da população da Palestina se manifestaram “enfaticamente” contra o projeto sionista.

Os autores do relatório alertaram sobre a intensidade da rejeição, e argumentaram que a imigração judaica deveria ser limitada, no interesse da paz. No entanto, as conclusões foram suprimidas até 1922.

Na Conferência de Paz de Paris de 1919, o tenente-coronel britânico Thomas Edward Lawrence – mitificado como Lawrence da Arábia – mediou a assinatura de um acordo entre Weizmann, líder da delegação sionista, e seu homólogo árabe, Príncipe Faisal bin Hussein. Ficou acordado, em princípio, a fundação de uma pátria judaica na Palestina e de uma nação árabe independente no Oriente Médio. 

O Mandato Britânico na Palestina

Em 1922, a Liga das Nações (precursora da ONU) reconheceu o Mandato Britânico para governar a Palestina, sob a jurisdição de Herbert Samuel, como alto comissário. Foram promulgadas dezenas de iniciativas legais para estabelecer uma presença judaica, incluindo o reconhecimento do hebraico como língua oficial e a permissão de um exército judeu.

Conforme a década avançava, protestos em massa começaram a eclodir em oposição à imigração judaica. O movimento palestino tentava em vão contra-atacar e resistir ao que seus membros consideravam uma usurpação apoiada pelo poder militar e diplomático da Grã-Bretanha imperial.

Quase 250 judeus e árabes foram mortos em agosto de 1929 no Muro das Lamentações, em uma tragédia que ficou conhecida como Revolta de Buraq (ou os Massacres de 1929). Com a intenção de dissuadir as agitações, três muçulmanos foram condenados à morte por Sir John Chancellor, que sucedera a Herbert Samuel no alto comissariado.

Aumento da imigração judaica

Os protestos continuaram à medida que mais imigrantes judeus chegavam. O influxo acelerou de 4.000, em 1931 para 62.000, em 1935. Neste mesmo ano, o líder revolucionário muçulmano Sheikh Izz ad-Din al-Qassam foi morto a tiros por soldados britânicos nas colinas acima de Jenin.

Em 1936, eclodiu uma greve geral que, surpreendentemente, durou seis meses. Em represália, casas de muçulmanos foram demolidas.

A Segunda Guerra Mundial e o Holocausto

Em 1939 eclodiu a segunda guerra mundial, que opôs tropas aliadas e as do eixo – Alemanha, Itália e Japão. O Terceiro Reich foi depois considerado responsável pela execução de seis milhões de judeus em campos de concentração.

Em 1942, ano seguinte à entrada dos EUA no conflito, as relações americano-sionistas seriam cimentadas com uma conferência em Nova York.

Após as vitórias dos Aliados na Europa e no Pacífico em 1945, as potências mundiais voltaram sua atenção para o fim da violência na Palestina. hotel King David

Hotel King David após atentado terrorista do Irgun, Jerusalém, 1946 \ Foto: domínio público

O terrorismo judaico

Uma força paramilitar sionista armada, conhecida como Irgun (criada em 1931), estava atacando árabes (e britânicos, inclusive civis) na Palestina. O Irgun foi responsável pelo bombardeio do Hotel King David, em Jerusalém, em  julho de 1946, no qual morreram 91 pessoas de várias nacionalidades. No local funcionavam os escritórios centrais das autoridades britânicas.

(O atentado foi organizado por Menahen Begin, que viria a ser primeiro-ministro do Estado de Israel em 1977, como líder do Partido Likud. Trata-se do mesmo partido de Benjamin Netanyahu, atual primeiro-ministro.)

O Irgun esteve também envolvido, em abril de 1948, com o Massacre de Deir Yassin, com 107 mortes, realizado em colaboração com outra organização terrorista, conhecida como a Gangue Stern. No mesmo ano, Stern assassinaria o Conde Bernadotte, diplomata sueco enviado pelas Nações Unidas para mediar a disputa.

A criação do Estado de Israel e a Nakba

Uma proposta para o território em disputa  surgiu em 1947, quando a Assembleia Geral da ONU apresentou a Resolução 181, que propunha criar dois estados na Palestina, um abrigando judeus, e o outro, os palestinos árabes. Combate entre  A Legião Árabe e Haganah

Soldados da Legião Árabe atiram contra os combatentes judeus da Haganah, a força de autodefesa da Agência Judaica, março de 1948

A resolução foi adotada após uma votação, supostamente como resultado de pressão diplomática dos Estados Unidos. Entretanto, os palestinos rejeitaram a Proposta de Partilha votada na ONU. A argumentação foi de que, à época, os residentes judeus não possuíam mais do que 5,5 por cento das terras e, portanto, não tinham o direito de ocupar 56 por cento da Palestina. Irrompeu a guerra civil.

Com o fim do mandato britânico, a fundação do Estado de Israel foi declarada unilateralmente por David Ben-Gurion, em 14 de maio de 1948. O reconhecimento dos EUA e da então União Soviética foi imediato, mas instigou a eclosão de uma ampla guerra árabe-Israelense, vencida por Israel.

Quando a guerra terminou com o cessar fogo no ano seguinte, Israel havia expandido sua presença militar em partes do território previsto para constituir o Estado Palestino, pelo plano original da ONU. Jerusalém ficou dividida entre os israelenses e a Jordânia, que (durante os conflitos) ocupara as terras a oeste do Rio Jordão, que formaram a chamada Cisjordânia.

nakba
Nakba: direito de retorno, 2015 \ Arte: Ashraf Ghrayeb, Concurso Badil de Posters

Cerca de 700.000 civis palestinos precisaram fugir da região dos combates (com medo de serem massacrados ou foram expulsos de suas casas pelos judeus), buscando refúgio na Jordânia, Líbano, Síria, Cisjordânia e em Gaza. Muitas das vezes não conseguiram cidadania nestes países, onde permaneceram como refugiados.

O deslocamento do povo palestino (forçado a sair de suas vilas e cidades) ainda é lembrado todos os anos no “Dia da Nakba”, nome em árabe para “catástrofe”. Nas manifestações do Dia da Nakba, os palestinos brandem as chaves das casas que foram obrigados a deixar, e para as quais ainda têm a esperança de voltar um dia.

Notas adicionais: O artigo do The Independent menciona também os massacres ocorridos, após a Nakba: em 1956, nas vilas de Qalqilya, Kafr Qasim, Khan Yunis, e em 1966, em as-Samu. (Em relação a as-Samu, Israel foi censurado “por violar a Carta das Nações Unidas e o Acordo Geral de Armistício”, segundo a Resolução 228 do Conselho de Segurança da ONU.)

O autor é professor aposentado da UENF, e responsável pelo blogue Chacolhando.

Farsa: TPI isenta britânicos de Crimes de Guerra no Iraque

Por Ruben Rosenthal

A Procuradoria do Tribunal Penal Internacional desconsiderou que as  autoridades britânicas obstruíram as investigações, apesar de diversas denúncias neste sentido constarem do relatório. 

Tropas britânicas no Iraque são acusadas de crimes de guerra
Tropas britânicas atuam em operações militares no Iraque desde 2003 \ Foto: Picture Alliance/PA

O Tribunal Penal Internacional encerrou em dezembro de 2020, o inquérito preliminar que conduzia contra militares britânicos por acusações de crimes de guerra no Iraque. O parecer da procuradora-chefe do TPI, a gambiana Fatou Bensouda, apesar de reconhecer que crimes de guerra foram de fato cometidos, desconsiderou que autoridades do Reino Unido obstruíram as investigações e acobertaram provas que incriminavam os militares.

O Estatuto de Roma, que rege o TPI, estabelece a inadmissibilidade da abertura de indiciamentos pela Corte de Haia quando um país promove os inquéritos internos de forma apropriada. Esta foi a justificativa usada por Bensouda para sustar o processo e que mostrou o caminho para que no futuro, crimes de guerra cometidos pelas grandes potências não sejam punidos.

Só que os procedimentos investigativos conduzidos no Reino Unido consistiram de um simulacro de justiça, uma completa farsa. Coincidentemente, o parecer da procuradora foi proferido no momento em que o governo de Sua Majestade está empenhado na aprovação da Overseas Operations Bill, legislação que protegeria seus militares de serem processados por quaisquer crimes cometidos há mais de cinco anos, incluindo crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

A Procuradoria perdeu a oportunidade de desmentir a narrativa que se consolida cada vez mais, de que o TPI é uma corte de justiça que condena apenas os adversários das potências ocidentais, como líderes e militares africanos. O mesmo ocorreu também com Slobodan Milosevic, ex-presidente da Sérvia, que só foi absolvido anos após sua morte no cárcere.

As acusações de crimes de guerra

As tropas britânicas fizeram parte da coalizão de países do Ocidente que em março de 2003 invadiram e ocuparam o Iraque, na sequência das acusações de que o regime de Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa. Entretanto, a existência de tais armas jamais foi comprovada, indicando que a acusação se tratara apenas de um pretexto para a deposição de Saddam e a exploração do petróleo país.

A própria invasão do Iraque poderia ser enquadrada como um crime de guerra que, entretanto, o TPI anteriormente optara por ignorar, sob a alegação de que na ocasião do conflito as guerras de agressão ilegais – sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, não estavam incluídas no Estatuto de Roma como crimes de guerra.

O ex-embaixador britânico e ativista de direitos humanos Craig Murray avalia, no entanto, que “guerras de agressão ilegais” já estavam então bem estabelecidas na lei internacional, tanto que formaram a base do julgamento de Nüremberg em 1945/46.  Assim, não seria necessária a menção específica no Estatuto, para a Corte de Haia abrir procedimentos jurídicos contra os invasores do Iraque. Para Murray, o ex-primeiro-ministro britânico deveria estar preso pela invasão do Iraque. 

Manifestantes com faixa pedem o julgamento de Tony Blair por crimes de guerra no Iraque e Afeganistão
Manifestantes pedem o julgamento de Tony Blair por crimes de guerra, residência de Blair, Londres, 2017 \ Foto: picture-alliance/PA Wire/J.Brady

O Centro Europeu para Direitos Humanos e Constitucionais (ECCHR, na sigla em inglês) submeteu a partir de 2014, vários dossiês com evidências de abusos sistemáticos praticados contra prisioneiros no Iraque pelas forças de ocupação britânicas. Finalmente, em dezembro 2017, a Procuradoria do TPI confirmou em parecer que havia uma base razoável para se acreditar que crimes de guerra haviam sido cometidos no Iraque, incluindo assassinatos, tortura, tratamento cruel e desumano, atentados à dignidade pessoal, estupros e outras formas de violência sexual. O inquérito teria então prosseguimento.

Falta de provas ou acobertamento?

Em julho de 2019 o ECCHR fez nova submissão de documentação, focando nas falhas do Reino Unido em levar adiante processos judiciais internos dos casos de tortura e de outros abusos cometidos por suas tropas. Em novembro de 2019, conforme relatado pela BBC-Brasil, uma investigação conduzida pelo programa Panorama, da BBC, e pelo jornal britânico Sunday Times revelou fortes evidências do envolvimento de tropas britânicas em crimes de guerra no Iraque e no Afeganistão.

As evidências apresentadas vieram do Time de Alegações Históricas do Iraque (IHAT, na sigla em inglês), grupo criado pelo próprio governo britânico para investigar as alegações de torturas e abusos cometidos por suas tropas. O já extinto IHAT era composto por investigadores e ex-investigadores da polícia, polícia militar e da marinha, e se deparou com tentativas de acobertamento de provas pelas autoridades militares e governo.

Em junho de 2020, o diretor do Service Prosecuting Authority (SPA, na sigla em inglês), órgão correspondente ao Ministério Público, comunicou à emissora BBC que apenas um único caso ainda permanecia sob investigação interna, sendo que as demais acusações haviam sido descartadas por falta de provas e pelo “baixo nível das infrações supostamente cometidas pelos militares britânicos”. O SPA é um órgão ligado ao Ministério da Defesa (MoD, na sigla em inglês), e principal autoridade de acusação na justiça britânica para o pessoal em serviço militar. 

O parecer tendencioso do TPI

Em 9 de dezembro de 2020 foram divulgadas as conclusões do inquérito promovido pelo TPI. O relatório de 184 páginas confirmou que centenas de prisioneiros iraquianos, muitos dos quais civis, foram submetidos a abusos de diversas naturezas por soldados britânicos, no período entre 2003 e 2008. Entretanto, segundo Fatou Bensouda, “A Procuradoria não pode concluir que os procedimentos não foram conduzidos pelas autoridades britânicas de forma independente e imparcial….e que as investigações tenham sido inconsistentes com a intenção de trazer os responsáveis à justiça”. Esta foi a justificativa apresentada pelo TPI para não indiciar militares britânicos.

O ex-embaixador Craig Murray, com o seu amplo conhecimento das artimanhas do MoD, percebeu que relatório do TPI fora escrito com a ótica das forças de ocupação. Os iraquianos que resistiram aos invasores são referidos como “insurgentes” no documento da Procuradoria. Murray alerta que em nenhum momento foi apresentado qualquer testemunho feito por vítimas iraquianas. O TPI baseou seu relatório inteiramente em entrevistas realizadas com autoridades britânicas. Nenhuma das 776 notas de pé de página se referem a documentos de origem árabe.

Apesar destas limitações evidentes, o inquérito concluiu que as tropas britânicas foram responsáveis por crimes de guerra em larga escala, tipificados no parágrafo 71 do relatório. No entanto, Murray salienta que nenhum dos crimes para os quais existem boas evidências, em função do trabalho realizado pelo IHAT, resultou em indiciamentos de militares na justiça britânica. As recusas se deram principalmente pela ação do SPA, ao qual o IHAT devia se reportar.

Murray salienta que ocorreram duas exceções, que apenas comprovaram a regra geral de que as autoridades britânicas procuraram a todo custo evitar a condenação de seus militares envolvidos em abusos de direitos humanos. Em uma das circunstâncias, como forma de obter “troféus” de guerra, um soldado fotografou seus colegas cometendo torturas e abusos sexuais contra prisioneiros. Os filmes foram enviados para revelação em uma loja, o que levou o atendente a fazer uma denúncia junto à polícia civil. O outro caso se tratou de uma confissão espontânea feita por um militar que estava com a consciência pesada (parágrafo 250 do relatório), mas seus colegas foram absolvidos.

Estas foram as únicas condenações pela justiça do Reino Unido por crimes de guerra cometidos no Iraque. O ex-embaixador Craig Murray avalia que, ao usar estas exceções como evidências de que o Reino Unido conduzira as investigações de forma apropriada, o TPI agiu de forma tendenciosa. A Procuradoria do Tribunal Penal Internacional desconsiderou que as  autoridades britânicas obstruíram as investigações, apesar de diversas denúncias neste sentido constarem do relatório. 

Obstrução das investigações

No relatório final da Procuradoria consta (parágrafos 380 a 385) que, para os investigadores do IHAT, as investigações não estavam passando para o estágio de formalização de acusações devido a obstruções, que só poderiam resultar de ações das chefias do próprio IHAT e do SPA. O SPA, sendo vinculado ao Ministério da Defesa, não poderia ser realmente imparcial em relação às forças armadas, segundo avaliação da equipe de campo do IHAT.

Diversos relatos vindos do IHAT mencionaram as dificuldades de obter evidências de posse do MoD e da Polícia Militar Real, que obstruíam o acesso aos arquivos. Caixas contendo evidências chegaram a ter a rotulagem trocada para dificultar a localização do material procurado.

Algumas passagens no relatório incluem citações, até mesmo de juízes que presidiram alguns dos casos que chegaram a ser levados à corte marcial, da ausência de depoimentos de testemunhas militares que presenciaram torturas e mortes (parágrafos 217, 219, 228, 331). Prevaleceu o comportamento corporativo de cerrar fileiras em defesa dos companheiros de farda, conforme mencionado nestas citações.

Para o ex-embaixador Craig Murray, não se pode mais argumentar que o TPI seja uma corte de justiça imparcial: “a autoridade moral (do TPI) foi totalmente perdida”, acrescentou.

Em 12 de fevereiro de 2021 foi eleito um novo procurador-chefe do TPI, o advogado britânico Karim Khan. Na nova gestão serão conduzidos, dentre outros, os inquéritos sobre as acusações de cometimento de crimes de guerra no Afeganistão por tropas norte-americanas, militares afegãos e pelo Talibã; de crimes cometidos por Israel e Hamas nos territórios palestinos ocupados; e a investigação das denúncias levantadas contra o presidente Jair Bolsonaro, de ter cometido genocídio e crimes contra a humanidade em território brasileiro.

Resta ver se Karim Khan dará motivos para o ex-embaixador Craig Murray rever sua avaliação de que os pareceres do TPI são favoráveis apenas aos interesses das potências ocidentais. 

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Ivermectina no tratamento da Covid-19: sem eficácia ou droga milagrosa?

Por Ruben Rosenthal 

Atualizado em 28 de janeiro

Se a ivermectina pode trazer resultados positivos para o tratamento da Covid-19, então é melhor que a comunidade científica esteja à frente do processo de implementação de protocolos adequados. 

Foto por microscópio eletrônico de varredura mostrando o tecido celular infectado pelo Sars-CoV-2
Partículas do vírus Sars-CoV-2 infectam tecido celular \ Foto de microscópio eletrônico colorizada\NIAID, Maryland /AP

Com o número de mortes por Covid-19 já superando o patamar de 400 mil pessoas nos Estados Unidos e a demora na vacinação, o uso da ivermectina voltou a ser cogitado como forma de combater a pandemia. Até o final de 2020 a orientação da agência norte-americana de pesquisa médica National Institutes of Health (NIH) era contrária à recomendação da ivermectina para o tratamento da Covid-19. Em 14 de janeiro deste ano o Painel para Diretrizes de Tratamento da NIH removeu esta restrição, abrindo o caminho para que a droga passe a ser prescrita pelos médicos.

Embora não se trate ainda de uma recomendação favorável ao uso da droga, as autoridades sanitárias de vários países precisarão estar preparadas para as repercussões desta decisão da NIH. Aumentarão as pressões para que o uso da ivermectina seja incorporado aos protocolos de tratamentos nos hospitais, bem como poderá ocorrer uma corrida às farmácias para automedicação. A utilização da droga sem o devido acompanhamento médico pode resultar em sérios distúrbios gastro-intestinais, pelo desequilíbrio da flora intestinal. 

A ivermectina é uma droga antiparasitária utilizada em países tropicais de forma segura. Nos Estados Unidos, ela está aprovada para esta finalidade pela Food and Drug Administration (FDA), que exerce função equivalente à da Anvisa no Brasil. Em testes in vitro a ivermectina se mostrou efetiva contra os vírus causadores da dengue, Zika, HIV, febre amarela e da própria Covid-19. 

A ivermectina nos Estados Unidos 

Em abril de 2020 a FDA emitiu um aviso que a ivermectina não deveria ser usada em humanos para o tratamento da Covid-19, ou mesmo de outras infecções virais. Em parecer de agosto, a NIH alertou que embora a ivermectina tivesse inibido a replicação do Sars-CoV-2 em cultura in vitro, estudos farmacocinéticos e farmacodinânicos sugeriam que para se obter a mesma eficácia antiviral em humanos, as doses administradas precisariam ser 100 vezes superiores. 

Para alterar em janeiro de 2021 o parecer anterior, o Painel da NIH considerou que vários estudos haviam sido publicados desde então em revistas especializadas. Entretanto, os resultados foram bem diversos. Em alguns dos casos clínicos não foram observados quaisquer benefícios, tendo ocorrido inclusive o agravamento da condição do paciente. 

Já outros estudos relataram resultados positivos, incluindo: menos tempo para desaparecimento dos sintomas da doença, grande redução dos marcadores inflamatórios, redução do tempo para eliminação do vírus e menor taxa de mortalidade em pacientes que receberam a ivermectina em comparação com outras drogas ou placebo. 

No entanto, o relatório do Painel da NIH advertiu que a maioria dos estudos continha informações incompletas e limitações metodológicas. Dentre as limitações dos ensaios clínicos foram citadas: pequena amostragem de casos; uso de dosagens variadas de ivermectina; pacientes que receberam conjuntamente com a ivermectina outros medicamentos como hidroxicloroquina, azitromicina, zinco, corticosteroides, doxiclina, azitromicina e outros antibióticos; descrição falha do grau de severidade da Covid-19 nos pacientes que participaram dos estudos. 

Um dos maiores defensores nos EUA do uso da ivermectina é o médico Pierre Kory, presidente de uma associação denominada Front-Line Covid-19 Critical Care Alliance, FLCCC Alliance (Aliança de Frente para Tratamento Crítico da Covid-19), constituída por médicos de diversas especialidades. Junto com co-autores ele publicou um artigo em pré-impressão onde procura demonstrar a eficácia da ivermectina na profilaxia e tratamento da Covid-19.

Neste artigo é citado o caso das cidades brasileiras de Itajaí, Natal e Macapá onde as autoridades municipais distribuíram a ivermectina em larga escala. São apresentados os dados relativos aos meses de junho a agosto, com indicativos de redução de casos e de mortes em comparação com cidades e estados vizinhos. Mais adiante neste artigo será comentado o caso de Itajaí, SC, onde os relatos de casos da doença não são nada favoráveis.

Em 8 de dezembro de 2020 Kory apresentou testemunho perante o Comitê de Segurança Interna do Senado. Ele usou o termo “droga milagrosa” para se referir à ivermectina no uso contra a COVID-19. Para apoiar sua afirmativa ele fez um relato dos resultados de 21 estudos clínicos datados de novembro que teriam trazido resultados positivos, tanto em profilaxia como no tratamento de pacientes já apresentando sintomas da doença. Em seu testemunho, Kory mostrou também gráficos relativos ao Perú, México e Paraguai, onde teriam ocorrido benefícios consideráveis em todas as fases da doença com o uso da droga.

Ao final de seu relatório, Kory apresentou os protocolos recomendados pela Aliança para os casos de profilaxia e de pacientes em estágios iniciais da doença. Em ambos os casos os tratamentos incluem não apenas a ivermectina, mas também vitaminas, zinco, melatonina, quercetina e aspirina. Para casos avançados da doença o protocolo é apresentado no site da FLCCC. 

No começo de janeiro, Pierre Kory e outros membros da Aliança apresentaram seus dados perante o Painel do NIH. Poucos dias depois as diretrizes do NIH foram alteradas, com a remoção da recomendação contrária ao uso da ivermectina. No site da FLCCC aparece que “a ivermectina é agora uma opção de tratamento para os serviços de saúde”. É importante ressaltar que o Painel do NIH concluiu que os dados atuais disponíveis ainda são insuficientes para recomendar a favor do uso da  ivermectina, principalmente pela forma inadequada como a maioria das pesquisas foi conduzida. 

Covid-19 no Brasil: atraso na vacinação 

No Brasil, com o negacionismo da vacina promovido pelo governo Bolsonaro e os constantes desastres de logística – intencionais ou por incompetência do Ministério da Saúde, a imunidade coletiva levará um bom tempo para ser alcançada. Também a condução da política externa, causando atritos com países dos quais o Brasil depende para obter insumos para as vacinas, resultará em milhares de mortes a mais pela pandemia que poderiam ser evitadas. 

Neste contexto de imprevisibilidade de quando o calendário de vacinação será completado, o governo Bolsonaro volta a defender os “tratamentos precoces” com medicamentos de eficácia não comprovada e não autorizados pela Anvisa. A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Associação Médica Brasileira (AMB) emitiram um comunicado conjunto no dia 19 deste mês, para rechaçar o uso de medicamentos que não tenham comprovação científica contra para o coronavírus. 

Segundo o comunicado, “as melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no tratamento precoce da Covid-19 até o momento”. 

Esta declaração conjunta veio na sequência da ida do general Pazuello a Manaus, onde atuou com a logística de um bom caixeiro-viajante ao oferecer 120 mil doses de cloroquina para combater o agravamento da pandemia na capital amazonense. O aplicativo TrateCov do Ministério da Saúde receitava o “tratamento precoce” com cloroquina e outras drogas para as pessoas com sintomas de Covid. 

Quando ainda na presidência dos EUA, Donald Trump chegou a mencionar a ingestão de água sanitária para matar o vírus. Mas ao final de seu governo e já com 400 mil mortes no país, ele não defendia mais com tanto entusiasmo o uso da hidroxicloroquina. Infelizmente para os brasileiros, Jair Bolsonaro que sempre procurou se espelhar em Trump quanto ao negacionismo da ciência, se mantém irredutível na defesa da cloroquina, hidroxicloroquina e outras drogas. 

Esta negação da ciência pelo governo foi em grande parte possível porque no comando do Ministério da Ciência e Tecnologia está o ministro-astronauta, que por sua vez foi garoto-propaganda do uso do vermífugo Anitta no tratamento da Covid-19.  

Ivermectina no Brasil 

Apesar da cloroquina ser a “menina dos olhos” de Bolsonaro, o uso da ivermectina também foi incentivado por seu governo. Apenas no mês de junho de 2020 as vendas da ivermectina no país foram superiores ao total de 2019, segundo relatado pela Folha de São Paulo

Alguns médicos, não necessariamente bolsonaristas ou terraplanistas, já vêm há algum tempo receitando a ivermectina, em geral associada a outros medicamentos, principalmente na profilaxia ou em pacientes ainda na fase inicial da doença. Em relação ao munícipio de Itajaí, citado pelo Dr. Pierre Kory como um exemplo bem sucedido do uso da ivermectina, um artigo de 15 de janeiro relata que Itajaí tem a maior letalidade por Covid-19 entre as grandes cidades de Santa Catarina. Este caso, bem como os resultados provenientes de Natal e Macapá, também citados por Kory, precisam ser melhor avaliados.

A recente decisão do NIH poderá ocasionar o aumento das pressões para que o uso da ivermectina seja incorporado aos protocolos de tratamento da Covid-19 nos hospitais no Brasil, mesmo ainda sem a garantia de eficácia. Mas possibilidade de um desempenho positivo não deveria ser desconsiderada nos meios científicos.  

O atraso na vacinação requer que a comunidade científica não descarte de antemão que a ivermectina possa salvar vidas, mesmo que não seja uma droga milagrosa. O cronograma de vacinação poderá se arrastar por meses a fio, enquanto faltam leitos disponíveis nas UTIs e disparam os índices de mortalidade. 

O NIH está agora voltado para examinar os resultados mais recentes dos estudos clínicos em andamento. Melhor seria se os cientistas da saúde no Brasil olhassem sem preconceito político para esta questão, sem levar em conta o fiasco que a cloroquina e hidroxicloroquina representaram, bem como o uso político que delas foi feito. 

Os bolsonaristas estão agora investindo em peso na defesa da ivermectina, e promoveram um tuitaço em 21 de janeiro. A ivermectina também vai ser politizada ao extremo. Mas se existe alguma possibilidade de que ela traga resultados clínicos positivos, então esta bandeira não deveria ficar com o governo Bolsonaro.  

Um grupo de trabalho de médicos e cientistas totalmente independente em relação ao governo deverá ser capaz de avaliar o grau de seriedade com que o FLCCC tirou suas conclusões dos ensaios clínicos. Precisará também ficar bem determinado que os médicos da entidade não tenham qualquer conflito de interesse em relação a Merck, que é a empresa fabricante da ivermectina.

Um contato direto do grupo de trabalho brasileiro com o NIH também seria mais que propício neste momento em que está em questão o próximo passo em relação a ivermectina. O Painel poderá decidir em breve se avança no processo de liberação ou se retrocede e volta a instituir a recomendação contrária ao uso. 

É interessante se examinar as diretrizes atuais do NIH em relação à cloroquina e hidroxicloroquina (p. 106-107) para tratamento da Covid-19 em pacientes internados ou não. A recomendação é explícita contra o uso de ambas as drogas, sejam ou não aplicadas em conjunto com a azitromicina. 

O Painel de Diretrizes do NIH alertou para a toxidez associada ao aumento da dosagem tanto da cloroquina como da hidroxicloroquina, e para os efeitos adversos como arritmia cardíaca, hepatite, alucinações, psicoses e reações alérgicas, dentre outros.  Por estes motivos a FDA norte-americana só abriu exceção para os testes clínicos em hospitais. 

Finalizando. Se a ivermectina pode trazer resultados positivos para o tratamento da Covid-19, então é melhor que a comunidade científica esteja à frente do processo de implementação de protocolos adequados, e acompanhando de perto a evolução dos casos clínicos.  

A questão é muito importante para ficar a cargo do capitão do caos e sua trupe de alucinados. Os responsáveis pelas mortes desnecessárias de dezenas de milhares de brasileiros terão que responder por suas ações criminosas, cedo ou tarde. Quanto mais cedo, melhor para o país. 

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Moment of truth for the Democratic Party and its progressive members

By Ruben Rosenthal

If Democrats omit themselves on issues that are causing grievances and even despair to large sectors of the U.S. population, the path will be open to losing control of Congress in 2022. 

Homeless people receive blankets and rest inside Saint Boniface Church, San Francisco
Homeless people rest during the day inside Saint Boniface Church, San Francisco \ Photo: David Levene/The Guardian

The Democratic Party needs to leave behind the trauma of the Capitol’s takeover by the mob of Trump supporters and take steps to deal with the new political reality that prevails with the outcome of the 2020 elections. No more pretexts for not submitting bills, arguing they could be overturned by Republicans in the Senate or vetoed in the Executive.    

However, as most Democratic lawmakers tend to center or right of the political spectrum, it is most unlikely they will take the initiative to propose the social and economic measures that are so needed at the moment.   

On the other hand, parliamentarians who assume themselves as progressives are supposed to defend popular causes against the interests of large corporations.  But to what extent their left-wing Twitter stand will turn into effective action? Journalist Glenn Greenwald  tweeted that “one positive outcome of the Dems controlling the WH and both houses of Congress is it will provide a lot more clarity about who they really  are”.   

The Democratic left. Progressive House  Representative Alexandria Ocasio-Cortez (AOC)  is part of the so-called Squad, whose original members also included Congresswomen Ayanna Presley, Ilhan Omar and Rachida Tlaib, and now received some more additions with the 2020 elections. AOC made use of Twitter to suggest the main issues that could now be subject to pressure.  

She listed the retroactivity of Covid aid, climate justice, health care, voting rights, the end of the death penalty and the cancellation of student debts. But some voices in the progressive field have questioned the real commitment of AOC and other Squad members to popular causes.     

The Political Action Commitee Justice Democrats helped elect AOC in 2018, and is recruiting progressive candidates for the 2022 elections. They believe that it is more feasible to transform the Democratic Party from within rather than founding a competitive left-wing party.     

On the Committee’s  website, the first two proposals are the Green New Deal and Medicare for  All. The current article will focus on these two proposals, as well as on a fundamental issue neither AOC nor the Justice Democrats are prioritizing, at least not overtly: the need to neutralize the dominance of conservative judges in the country’s Supreme Court, achieved through hidden donations from billionaires and large corporations.    

 The Green New Deal. The ambitious proposal for a Green Economy was introduced in the House of Representatives by AOC through Resolution 109, and in the Senate (Resolution 59) by Edward J. Markey, also from the Democratic  Party.  

According to a report in The New York Times,  the expression Green New Deal came from the young activist group  Sunrise Movement, which promoted an occupation in front of Nancy Pelosi office. AOC joined the protesters in support of the proposals, which evolved into Resolution 109.   

The Green New Deal proposal advocates for sustainable development without environmental degradation, with a focus on global warming and clean fuels. Also included is the fight against economic inequality and racial injustice. As explained in Resolution 109, a society managed by the Green Economy would need to deal with the oppression of vulnerable communities, such as indigenous peoples, communities of color, immigrants, low-wage workers, women, the elderly, people with forms of disability and young people.   

With the Senate then under Republican control, Majority Leader Mitch McConnell put Resolution 59 to a vote without allowing proper time for discussions. Now the House and Senate could resume discussion on the proposal. However, during the electoral campaign, Joe Biden defended his own conception of a plan for a “Clean Energy Revolution and Environmental Justice”, that doesn’t seem to include the social commitments present in the Green New Deal.  

Now AOC is standing for what she calls “climate justice”. This seems a vague definition, which does not specify whether the social justice policies that were contemplated by the Green New Deal are also included. Maybe she should clarify that. 

Public medical care for all? The proposal for an universal health care program was forwarded to the Senate by Bernie Sanders, and to the House, by Congresswoman Pramila Jayapal, co-chair of the progressive caucus in Congress. A recent article in The New York Times argues that Democrats should limit themselves to a less ambitious health care plan that doesn’t bring deficit to the budget.  

It is well known that many Democratic parliamentarians defend the interests of large corporations and would not support an comprehensive public health care system. Leaked documents from lobbyists published by The Intercept revealed that the health industry interfered  to keep Medicare for All off the Democratic Party 2020 election platform. Joe Biden and Kamala Harris received substantial campaign donations from the private health sector.  

#ForceTheVote. In the final months of 2020, House Majority Leader Nancy Pelosi refused to put the Medicare for All resolution to a floor vote on the grounds that there would be no slight chance of approval. AOC agreed with Pelosi, arguing that it would be better to focus on the $15/hour minimum wage. The issue has been dividing the progressive camp, with strong criticism of the Squad coming from YouTuber Jimmy Dore  and Briahna J. Gray, former press secretary of Bernie Sanders.  

Alexandria Ocasio-Cortez was once a Medicare for All supporter, but now she tweets in favor of something generic as “health care”, without accountability to people on the grassroots movements that supported her election.  AOC and the Squad were not the only ones from the progressive camp to betray previous commitments to a single payer health system. The Democratic Socialists of America (DSA) leadership also boycotted the campaign #ForceTheVote, against the will of rank and file members, according to Counter Punch

In relation to the defense AOC makes the $15/hour minimum wage, she could well explain whether the same salary would also apply to prisoners, many of them subjected to forced labor in conditions of modern slavery, earning less than $1/hour on average.  

Unpacking the Supreme Court. A previous article of the blog have described how a carefully planned articulation that has been conducted for about 20 years, allowed conservative Justices to exercise full control of the U.S. Supreme Court for decades to come. 

As reported in an article by Democratic Senator Sheldon Whitehouse  in the Harvard Law Journal on Legislation (HLJL), over several years the  Federalist Society, the Judicial Crisis Network and a number of covert donors interfered in the appointment of judges favorable to large corporations and in the outcome of relevant trials.  Much of the funding came from the billionaire Mercer family. The Koch brothers also made use of dark money to back conservative causes.  

Justices John Roberts Jr. (current President of the Court), Samuel Alito, Neil Gorsuch and Brett Kavanaugh received support from anonymous donations to reach the Supreme Court. Conservative judges were also nominated to dozens of federal courts across the country.   

With the passing of progressive Justice Ruth Bader Ginsburg, the Republican Senate majority fastly confirmed conservative judge Amy Barret to fill the vacancy. Now conservatives hold a 6 to 3 majority.
Packing the Supreme Court \ Art: Signe Wilkinson/Philadelphia Inquirer

The current 6-3 conservative majority on the Supreme Court poses a threat to labor causes, minority rights and other important issues, such as Roe vs. Wade case on abortion. A strong movement is needed in favor of expanding the number of Court Justices as to allow Joe Biden to appoint liberal-tended judges, thus counterbalancing the effects of court-packing promoted by Republicans.   

However, Senator Whitehouse does not believe it is a good solution to add more seats to the Court or to limit the time in office for Supreme Court Justices, currently a lifetime appointment. For him, the best way would be to make the judiciary more transparent, exposing the big donors who seek to interfere in the trials. The effectiveness of such control should be a matter of concern for progressives.   

Recently, the Supreme Court has unanimously opposed Trump’s claims to reverse in some states, the result of the 2020 presidential election vote count. However, this impartial positioning should not be understood as a commitment to unrestricted exemption and integrity on the part of the conservative Justices.   

They may well have planned to keep a low profile not siding with Trump. For the big corporations that have packed the Court, it’s better to dismiss Trump now rather than risk losing decades of future influence in the Supreme Court.  After all, 2022 is not far away, and the right-wing Democrats will probably adopt policies that will make the party lose popular support before the midterm elections.  

Fight the good fight or form a new party? It remains to be seen whether the Justice Squad  and progressive Democrats will try hard to overcome the internal resistance of the party’s right-wingers, represented by Biden, Kamala Harris, Nancy Pelosi, Chuck Schumer, among others.    

Kyle Kulinsky, co-founder of Justice Democrats, has a position that is not shared by some of his progressive colleagues: “If you believe in something you fight for it & dot every i & cross every t. If you lose ok but the act of doing everything in your power to achieve it is the definition of morality”.  

The current bipartisanship that has prevailed in elections since the founding of the country may not last for too long. A scenario is taking shape for the formation of new parties that meet the demands of sectors to the left of Democrats and to the right of Republicans.   

With the disbelief of the base movements in the Democratic Party, support for the Movement for a People’s Party could grow, expecting that the new party will fight for programs that benefit vulnerable sectors of the population. In 2018 about 38.1 million Americans were living in poverty, a situation that got worse with the pandemic. On the other hand, with many Trumpists considering no longer lending their support to the Republican Party, a far-right party could be formed. 

It remains to be seen whether the internal divisions in the country could be healed in the short term or civil unrest of recent years will continue and even get worse. 

Ruben Rosenthal is a brazilian retired university lecturer from Rio. He presently writes articles of political analysis in his blog Chacoalhando (Portuguese for Shaking). 

Índice Geral (Contents)

 

Índice Geral (Contents)

2023
Laptop do filho de Biden: Blinken montou farsa contra Rússia?
Ucrânia: o desfecho da guerra está próximo
O Retorno do vírus Frankenstein
Alerta: Pfizer quer criar supervírus mutante da Covid-19?
Cenários para a guerra na Ucrânia em 2023
2022
Os curdos são o bode expiatório ideal para Turquia e Irã
Guerra OTAN-Rússia na Ucrânia caminha para conflito nuclear?
A Turquia move suas peças no xadrez da guerra OTAN-Rússia
Roger Waters na mesma lista de alvos que filha morta de Dugin
Zelensky liberta estupradores e torturadores para lutarem na frente de combate
EUA: Lobby pró-Israel investe milhões para controlar o Partido Democrata
Aborto nos EUA: a solução está no aumento de juízes da Suprema Corte?
Ucranianos morrem para os Democratas não perdem votos
Rússia-Ucrânia: a geopolítica do novo mundo
Agrotóxicos matam mais crianças no Brasil que a Covid-19
Crise na Ucrânia: quem pisca primeiro, Biden ou Putin?
Pfizer: Verdades e mentiras da vacinação infantil contra a Covid-19
2021
O sonho americano vira pesadelo
Glenn Greenwald no Agenda Mundo: As tretas na esquerda dos Estados Unidos
Mídia dos EUA ataca Biden em defesa das guerras do Pentágono
Indústria bélica influencia a política externa do governo Biden
Tretas dividem a esquerda “norte-americana”
Vacina do apartheid: produção da Johnson & Johnson na África vai para a Europa
Tio Sam financia rappers na guerra híbrida contra Cuba
Bielorrússia no xadrez da geopolítica: aumenta o cerco contra a Rússia
Israel e palestinos em luta decisiva à frente
Brasil participa de manobras navais contra a Rússia no Mar Negro
A longa marcha da China rumo à liderança econômica: O Império resiste
Como o Deus dos judeus me tornou tornou antissionista
Judeus na Palestina: de Napoleão à Nakba
Solidariedade na luta une Gaza, Cisjordânia, Jerusalém e diáspora palestina
Reino Unido: Condenado, defensor de direitos humanos poderá morrer na prisão
Privatizando a guerra no Afeganistão: saem as tropas regulares, ficam os mercenários
Presidente da Ucrânia aposta suas cartas em invasão russa?
Alba, novo partido reacende a chama pela independência da Escócia
Chocolate de Páscoa com recheio de trabalho infantil
Armas químicas na Síria: Bustani critica falta de transparência na OPAQ e ataques a inspetores
Covid-19: a ética de inocular o vírus em cobaias humanas
BBC e Reuters na guerra híbrida contra a Rússia
Farsa: TPI isenta britânicos de crimes de guerra no Iraque
Crise EUA-Irã: general norte-americano fomenta a tensão no Golfo Pérsico
Uma jornada de cem anos sem solidão
Ivermectina no tratamento da Covid-19: sem eficácia ou droga milagrosa
Moment of truth for the Democratic Party and its progressive members
EUA: Hora da verdade para o Partido Democrata e seus progressistas
Vitória de Assange, mas jornalismo independente está ameaçado
2020
Liberdade de Assange une esquerda radical e extrema-direita
EUA: Dilemas na luta pelo sistema público universal de saúde 
Will Trump defraud the Electoral College, face trial or flee the country
Eleição presidencial dos EUA: conspirações e conspiradores
Trump: contagem regressiva para o golpe, prisão ou fuga do país?
United States: Billionaires and large corporations captured the Supreme Court.
Estados Unidos: Bilionários e grandes corporações capturaram a Suprema Corte
Guerra híbrida: vítimas e vilões
Guerra híbrida: subversão e ingerência externa 2.0
Julgamento de Assange: censurado o depoimento  de testemunha torturada pela CIA
Julian Assange: panorama de uma farsa jurídica
O infame julgamento de extradição de Assange: audiência de 8 de setembro
O infame julgamento de extradição de Assange: audiência de 7 de setembro
Envenenamento de opositor de Putin faz parte da guerra híbrida contra a Rússia?
Eleições 2020: direito ao voto ou direito à vida?
A longa marcha da China rumo à liderança econômica: Nova Rota da Seda
A longa marcha da China rumo à hegemonia econômica: O plano Made in China 2025
Portland USA: Ensaio de um regime de exceção
Quem está por trás das ações do Facebook contra Bolsonaro
Canal de TV evangélico tenta converter judeus de Israel
Prisão de dois jornalistas escoceses causam repúdio internacional
Ameaça à liberdade de expressão no Reino Unido: Justiça indicia Craig Murray, ativista pela independência da Escócia
Hong Kong: Washington financia os protestos contra a China
A Etnia Uigur e Guerra Fria contra a China
COVID-19: Bolsonaro faz do Brasil um grande campo de extermínio
COVID-19: Quem tem medo de tomar a vacina
 COVID-19 e cloroquina: Didier Raoult, quando o passado condena
COVID-19: ANVISA autoriza reutilização de máscaras N-95 sem desinfecção prévia trazendo riscos para profissionais da saúde
 COVID-19: Acusados vão a julgamento por Crimes contra a humanidade
COVID-19: Desobediência civil agora contra Bolsonaro ou um tribunal para crimes contra a humanidade depois?
Luz ultravioleta na desinfecção de máscaras de proteção contra o coronavírus
Alerta: O Cesco pode causar mais mortes que o coronavírus e já chegou ao Brasil
Julian Assange é submetido a maus tratos para levá-lo à morte por suicídio real ou forjado
Dia 4 de um processo infame: uma descrição detalhada do julgamento para a extradição de Assange
Dia 3 de um processo infame: uma descrição detalhada do julgamento para a extradição de Assange
Dia 2 de um processo infame: uma descrição detalhada do julgamento para a extradição de Assange
Dia 1 de um processo infame: uma descrição detalhada do julgamento para a extradição de Assange
Aos Palestinos restou apenas uma opção: ficar e lutar contra a limpeza étnica
O ouro de Washington financia a Atlas Network e a subversão da democracia pela direita golpista no Brasil
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Decifrando o enigma Putin
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2019 

O sistema prisional norte-americano: reformar ou abolir? Argumentos pela abolição das prisões
O sistema prisional norte-americano: reformar ou abolir? Argumentos pela reforma das prisões
O sistema prisional norte-americano: retrato em branco e preto
Eleições podem levar à desagregação do Reino Unido
Angela Davis: por um novo partido com base nos movimentos radicais contra o capitalismo e o racismo
Angela Davis: Vidas negras importam
Angela Davis: o internacionalismo negro com foco na Palestina
Angela Davis: a tradição radical negra
Reino Unido: a falsa isenção da BBC
Reino Unido: Suprema Corte impede o golpe chancelado pela rainha
Reino Unido: a corrupção no sistema de doações de campanha
A campanha de desinformações contra a Síria
Os crimes contra os povos indígenas
Dr. Kouchner e o Sr. Hyde: o médico e o monstro? parte 3 – A máfia do Kosovo
Dr. Kouchner e o Sr. Hyde: o médico e o monstro? parte 2 – As intervenções militares humanitárias
Dr. Kouchner e o Sr. Hyde: o médico e o monstro? parte 1: o médico humanitarista
Kosovo 2019: a limpeza étnica consensual
Campos de prisioneiros ou de extermínio: na Bósnia, contratar um bom RP faz a diferença
Revisitando e questionando o genocídio de Srebrenica
O ex-presidente (Milosevik) foi vilipendiado pela mídia e encarcerado por uma justiça corrompida e pela pressão dos Estados Unidos sem culpa comprovada
Crise no Golfo Pérsico: a confrontação bélica é inevitável ou o círculo vicioso pode ser rompido
Plano de Netanyahu é fomentar antissemitismo para provocar êxodo de judeus para Israel e Palestina
Diretor do museu judaico de Berlim é forçado a renunciar por apoiar boicote a Israel
Vazamento e manipulação de relatório de armas químicas na Síria abala a credibilidade da OPAQ
Natanyahu não consegue mais pacificar Gaza com dinheiro do Catar e promessas vazias
Triunfo democrático para os separatistas catalães
Netanyahu, Trump e Putin: uma história de amor
Os riscos do lobby pró-Israel

2018

Brasil uber alles: heil mein capitão
Ser ou não ser antissionista: o dilema shakespeariano do partido trabalhista do Reino Unido
O golpe ronda o Supremo biônico (publicado no GGN)
O vice de Lula (publicado no GGN)

2017

Suicídio é Desistir. Greve de Fome é Resistir (publicado no GGN)
 

A campanha de desinformação sobre a Síria, por Ruben Rosenthal

A Rede Síria de Direitos Humanos, constantemente citada pela mídia ocidental, faz parte da oposição ao presidente Bashar Hafez al Hassad, manipulando informações sobre o conflito.

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Combatentes das Forças Democráticas Sírias, apoiadas pelos EUA, filmam em rua controlada por militantes do ISIS, Raqqa , 2017    /     Foto Hussein Malla  / AP

O jornalista Max Blumenthal* publicou no The Grayzone, que a Rede Síria de Direitos Humanos se trata, na verdade, de uma organização não confiável no monitoramento do trágico conflito. O atual artigo é uma tradução e adaptação com base na matéria de Blumenthal, complementada com  alguns comentários, e informações adicionais. 

A Rede retrata a si mesma como um “monitor” neutro da guerra na Síria, mas uma investigação conduzida pelo The Grayzone, revelou que esta neutralidade se trata de uma completa ficção. Sediada no Catar, e financiada por governos estrangeiros, a organização se constitui em importante protagonista da oposição ao governo sírio. Em seu website, a Rede menciona que é financiada por Estados, mas sem especificá-los.

Governos estrangeiros e alguns bilionários investiram centenas de milhões de dólares na guerra de informação, no apoio a grupos civis ligados aos insurgentes, e na propaganda na mídia corporativa. Para Blumenthal, estes apoiadores devem ser provavelmente os mesmos que bancaram a insurgência islamita no país, que resultou na perda de milhares de vidas, e em uma gigantesca crise de refugiados.

Blumenthal salienta que, embora poucas sejam as dúvidas de que o governo sírio realmente possua e faça uso um aparato policial cruel, Hassad tem sido alvo de uma das mais caras e sofisticadas campanhas de desinformação na história recente. Importantes veículos de comunicação, além de governos, vêm divulgando, sem qualquer verificação, informações sobre a Síria provenientes de fontes questionáveis. A Rede se trata, provavelmente, da segunda fonte de referência mais citada pelo Departamento de Estado norte-americano.

Artigo da jornalista Anne Barnard, publicado em maio de 2019 no jornal The New York Times, relatou, com base em informações da Rede, que cerca de 128.000 pessoas “estão presumivelmente mortas ou ainda sob custódia nas prisões sírias”. O artigo detalhou “um sistema secreto de prisões arbitrárias e torturas em escala industrial”. Barnard  descreveu sua fonte de informações como “um grupo de monitoramento independente, que mantém o mais rigoroso registro dos casos”.

O artigo ganhou o endosso da ex-secretária de estado, Hillary Clinton, descrito em seu twitter,  como “uma notável peça jornalística”. O belicismo de Clinton, expresso nas intervenções militares com interesse geopolítico, mas com a fachada de pretexto humanitário, como no caso da Líbia, já foi objeto de artigo do Chacoalhando.

Anteriormente, em setembro de 2018, os jornalistas Murtaza Hussain   e Mariam Elba, do The Intercept,  também com base em dados fornecidos pela Rede, relataram que o número de desaparecidos no sistema prisional mantido pelo governo Hassad era de 82.000 pessoas, desde o início dos conflitos em 2011. O artigo acrescenta que o Centro de Documentação de Violações, outra entidade que monitora as baixas ocorridas no conflito na Síria, apresenta dados menos inflados, por fazer uso de critérios mais meticulosos.

Se fossem verídicas as informações publicadas no The Intercept e no The New York Times, ambas provenientes da mesma fonte, teria havido um surpreendente aumento de mais de 50% no número de casos, nos oito meses que separam os dois artigos. The Intercept cita a Rede como um “grupo de vigilância”, sem, no entanto, mencionar sua estreita relação com a oposição síria, e com países que apoiaram a insurgência islâmica. 

O britânico  The Guardian publicou artigo com base em matéria fornecida pela Reuters, em que Rede é citada como “uma organização que monitora as baixas humanas e informa várias agências da ONU”. No artigo foi relatada a morte de 544 civis em abril deste ano, na ação conjunta conduzida pelo Exército sírio e por bombardeios pela Rússia, em grande ofensiva contra regiões controladas pelos rebeldes nas províncias de Idlib e Hama. De acordo com Fadel Abdul Ghany, chairman do conselho  de diretores da Rede,  “foram deliberadamente atacados civis, e bombardeadas instalações médicas, em número recorde”. 

A diretora da Anistia Internacional no Reino Unido, Kate Allen, em artigo de opinião publicado em maio deste ano no  The Guardian,  expôs a hipocrisia de “direitos humanos” dos países do Ocidente, ao denunciar que os “bombardeios cirúrgicos” realizados em 2017 pela coalizão liderada pelos Estados Unidos, causaram a morte de 1.600 civis, apenas em Raqqa. As próprias forças norte-americanas se gabaram que mais artilharia foi despejada no centro de Raqqa, do que em qualquer outro conflito desde a guerra do Vietnam.  Kate Allen compara a devastação resultante, à ocorrida em Dresden na Segunda Guerra Mundial. 

Síria Raqqa
Centro de Raqqa após bombardeio      Foto Anistia Internacional / PAAllen

Mas, até mesmo a Anistia Internacional, ao denunciar as condições na prisão síria de Saydnaya, incluiu informações provenientes da Rede. O Relatório de 2017 da Anistia fez acusações de que Saydnaya era um “centro de execução em massa” onde “milhares eram enforcados após julgamentos sumários”. O relatório recebeu o título de “Matadouro Humano: enforcamentos em massa e extermínio na prisão de Saydnaya”.  Entretanto, em uma nota (de número 40), ao pé da página 17 do relatório, a Anistia mostra como foram feitos os “cálculos matemáticos hipotéticos”, em que a entidade se baseou para denunciar a execução sumária de 5.000 a 13.000 prisioneiros. Em seu artigo para o New York Times, Anne Barnard incluiu dados do relatório da Anistia Internacional.

Blumenthal considera que a Rede está longe de poder ser considerada como uma instituição neutra no conflito, atuando mais como um braço publicitário da oposição Síria operando a partir de Doha, Catar. O professor em Sociologia Política da Universidade de Sorbonne, Dr. Burhan Ghalioun, que faz parte do conselho de diretores da Rede, é também uma liderança importante do Conselho Nacional Sírio (SNC, sigla em inglês), espécie de governo no exílio, apoiado pelos países do Golfo Pérsico e pelos Estados Unidos.

Ghalioun procurou angariar apoio do Ocidente, para que ele e o conselho no exílio chegassem ao poder na Síria. Em troca, o novo governo romperia relações com a resistência Palestina e com o Irã. Na página da Rede na internet, não aparece qualquer menção de que Ghalioun faça parte da liderança do oposicionista SNC.

A Rede tem a reputação de manipular os números, por um lado, subdimencionando os crimes cometidos pelas milícias salafistas-jihadistas, includindo o ISIS e a afiliada local da Al-Qaeda, Jabhat al-Nusra. E, por outro, inflando o número de mortes causadas pelas forças do governo de Bashar al Hassad.

A estatística das mortes relatadas pela Rede contrastam fortemente as do Observatório Sírio de Direitos Humanos, que é também muito citado como fonte de dados sobre o conflito. Com sede em Coventry, Inglaterra, este grupo tem a liderança do oposicionista Rami Abdulrahman, e recebe fundos do Ministério do Exterior Britânico para monitorar as mortes na Síria.  Mas, ao contrário da Rede, o Observatório apresentou números equivalentes de mortes causados pelas ações dos dois lados que estão em confronto armado.

Segundo declaração de Joshua Landis, especialista da Universidade de  Oklahoma, “o Observatório seria mais confiável que a Rede”. Isto porque, apesar do Observatório estar também associado com a oposição síria, seus dirigentes são simpáticos à oposição Curda, tornando as posições do grupo mais equilibradas, em relação aos principais antagonistas no conflito. 

Blumenthal compara em seu artigo, os posicionamentos das duas organizações em relação a um mesmo acontecimento: em 27 de março, as forças sírias atacaram a província de Idlib,  base de um grupo afiliado a Al-Qaeda, apoiado pela Turquia. A Rede declarou que o governo sírio fez uso de um lançador de mísseis para disparar “gás venenoso” contra posições dos islamitas nos subúrbios de Latakia, e que o ataque causou dificuldades respiratórias.

O Observatório emitiu seu próprio relatório, relatando que o ataque com gás cloro fora realizado pelo Partido Islâmico do Turquestão, uma ramificação do grupo armado salafista-jihadista da etnia Uyghur, originária da região autônoma de Xinjiang, na China. O grupo é aliado da Al-Qaeda, a nível global. Cerca de 5.000 jihadistas chineses estariam lutando na Síria, segundo o site SOFREP, formado por jornalistas que foram todos veteranos de guerra norte americanos. A foto a seguir foi tomada por um ex-membro das forças especiais norte-americanas no Afeganistão.

jihadistas chineses

Os líderes dos Estados Unidos, França e a Grã-Bretanha optaram por aceitar as informações vindas da Rede, sem qualquer evidência concreta da veracidade das mesmas. E ameaçaram o regime sírio com uma “resposta decisiva, se armas químicas fossem usadas novamente”. 

Em 27 de maio de 2019, a Rede pediu em seu blogue, pela intervenção militar na Síria, com base em alegações de ataques com armas químicas em Lakatia, realizados poucos dias antes. O documento pedia pela imediata intervenção de uma coalizão internacional para proteger os civis, nos moldes da intervenção da OTAN no Kosovo. Abdul Ghani, o chairman da Rede, declarou em seu Facebook, também em 27 de maio, que a sociedade síria espera que os líderes do Ocidente cumpram as promessas feitas (de intervir diretamente no conflito). 

Coincidência ou não, esta ação da Rede se deu poucos dias após a revelação do “vazamento” de um documento, que expôs a ocorrência de  manipulação do relatório final da OPAQ, a Organização para o Controle de Armas Químicas, sobre uso de gás cloro na cidade de Douma, em abril de 2018, com a intenção de criar indícios de envolvimento criminoso do governo de Bashar al Assad. Naturalmente, a mídia corporativa tentou abafar a divulgação do “vazamento”.

Segundo uma comparação irônica de Blumenthal, citar a Rede Síria de Direitos Humanos como uma fonte independente e confiável, é o equivalente jornalístico de recorrer aos lobistas da indústria do tabaco para buscar informações relacionadas à conexão entre fumar e o câncer de pulmão. E, ainda assim, esta tem sido a prática da maioria dos jornalistas que cobrem o conflito na Síria. Já a ONU, desde 2014, optou por deixar de fornecer estatísticas das mortes no conflito sírio, pela dificuldade de conseguir números minimamente confiáveis.

Nota do Chacoalhando:  o atual artigo, de forma alguma procura justificar ou relativizar quaisquer atos desumanos, cometidos ou tolerados, pelo governo sírio. O que está em questão, é a desinformação promovida por grupos internos e externos, com o objetivo de tirar Hafez al Hassad do poder, mesmo ao custo das milhares de vidas que isto já trouxe e continuará a trazer. Os interesses geopolíticos são os mesmos que atuaram nas intervenções armadas na Iugoslávia, Líbia, Iraque (apenas para citar algumas), e que vem tentando intervir militarmente na Venezuela. Já no caso do Brasil, estes interesses foram alcançados, sem que fosse necessário o confronto generalizado.

*O premiado jornalista norte-americano, Max Blumenthal, foi o fundador, em 2015, do blogue The Grayzone, dedicado ao jornalismo investigativo.  

*Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacolhando.

 

 

Os crimes contra os povos indígenas, por Ruben Rosenthal

guerra dos manaus RUGENDAS 1835
Joahann Moritz Rugendas, Guerrilhas, 1835

É urgente a criação de uma Comissão Permanente de Defesa dos Povos Indígenas, em face do aumento dos crimes praticados contra estas comunidades, agravando os riscos da ocorrência de genocídio a curto prazo.

Com o governo Bolsonaro agravaram-se os riscos, já presentes no governo Temer, à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas. Este artigo defende a formação de uma Comissão Permanente de Defesa dos Povos Indígenas, que será detalhada mais adiante. O objetivo é o de fortalecer as denúncias junto aos órgãos internacionais competentes.

Ao longo dos séculos foram inúmeros os massacres, que, junto com a miscigenação e aculturação, com perda da identidade étnica, levaram à drástica redução da população indígena, de cerca de 2 milhões quando da chegada dos portugueses, a 303.000, 500 anos após o “descobrimento”, segundo dados de 1998 do IBGE.

Quando a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) foi criada em 1967, dois modelos opostos de política indigenista existiam no Brasil. Um deles, “radicalmente protecionista”, foi desenvolvido pelos irmãos Villas-Bôas no Parque Nacional do Xingu. Para os sertanistas, as tribos indígenas deveriam ficar protegidas em parques indígenas e reservas, para gradualmente serem preparadas para a integração na sociedade e na economia do país1.

O outro modelo foi desenvolvido pelo Serviço de Proteção ao Índio, instituição que antecedeu a FUNAI. Este modelo, desenvolvimentista, preconizava uma rápida integração dos índios na economia, e foi adotado pela FUNAI, quando de sua fundação no período da ditadura militar1.

Como conseqüência da adoção deste segundo modelo, seguiu-se um período de constantes violações dos direitos dos indígenas. Como exemplo nefasto desta política, a construção da BR-210 (Perimetral Norte), na década de 1970, levou ao óbito cerca de 40% dos indíos Yawaripë, em consequência de doenças contagiosas.

No contexto da Constituição de 1988, tendo como referência as críticas de sertanistas e especialistas à prática de “atração de índios isolados”, a FUNAI adotou como premissa, e institucionalizou, uma política de proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas isolados.

No entanto, 30 anos depois, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) deu o alerta, na sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU realizada na Suíça, em setembro de 2018, que em dois anos de governo Temer, políticas anti-indígenas trouxeram o risco de extinção das tribos isoladas, ou seja, aquelas situadas fora das reservas.

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Liderança da Aty Guasu, L. Rocha Guarani Nhandeva   /   Foto: Flávio V. Machado/CIMI 

Para demonstrar que o risco de ocorrer genocídio de diversos povos indígenas era real, o CIMI adotou a metodologia do Escritório de Prevenção de Genocídio, ligado a ONU, para denunciar que os povos Guarani e Kaiowá estavam sob ameaça de extinção. O estudo havia sido feito pela Aty Guasu, a Grande Assembléia dos Guarani e Kaiowá. Na denúncia encaminhada pelo CIMI, foi também solicitado que fossem tipificados os crimes de “etnocídio” e “ecocídio”, para incluir na metodologia, as especificidades da relação dos povos indígenas com o meio ambiente.

No entanto a situação iria se agravar ainda mais com Bolsonaro na presidência do país. Conforme artigo no Opera Mundi, ainda como candidato à presidência, Bolsonaro declarou que “não vai ter um centímetro de terra demarcada para reserva indígena ou para quilombola”. E em 30 de novembro de 2018, já eleito presidente: “por que no Brasil temos que mantê-los reclusos em reservas, como se fossem animais em zoológicos…..vamos juntos integrar estes cidadãos”.

Em janeiro de 2019, a ONG Survival Brasil relatou que a retirada, já no início do governo Bolsonaro, da competência da FUNAI na demarcação das terras indígenas, repassando-a ao Ministério da Agricultura, comandado pela ministra Tereza Cristina, uma liderança política do agronegócio no país, já revelava os riscos a que os povos indígenas ficariam submetidos durante o novo governo. O STF veio a decidir posteriormente pela manutenção da demarcação com a FUNAI.

Em 4 de março, em flagrante desrespeito à Constituição do país, o ministro das minas e energia, Almirante Bento Albuquerque, anunciou em evento do Canadá, a abertura de terras indígenas para a mineração, sem que os indígenas tivessem sido consultados previamente sobre decisões que afetam suas vidas.

No mês de abril deste ano, em encontro com Donald Trump, Bolsonaro propôs a abertura da exploração da região amazônica em parceria com os Estados Unidos. Ressaltou Bolsonaro, que “como está, vamos perder a Amazônia”, alegando que a ONU discute com indígenas a possibilidade de se criar novos países no Brasil. Criticou o que chamou de “indústria de demarcação de terras indígenas”, que inviabilizaria projetos de desenvolvimento da Amazônia, e, citando fazendeiros, declarou que “muitas demarcações foram feitas com laudos suspeitos”.

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Mineração na Amazônia     /   Foto: Felipe Werneck / Ibama

No entanto, a Constituição atribui ao Estado o dever de prosseguir na demarcação das terras indígenas, que são áreas destinadas à sustentabilidade dos povos nativos. Estas áreas, existentes em todos os estados brasileiros, ocupam cerca de 14% do território brasileiro, e sua exploração só pode ser conduzida por índios, exceto em casos excepcionais.

Em maio deste ano, o Cacique Raoni, que, mesmo aos 89 anos de idade permanece incansável na luta pelos direitos indígenas, viajou à Europa para denunciar os riscos que pairam sobre a Amazônia. O altivo líder Kaiapó teve encontros com Macron e o Papa Francisco. Dentre os objetivos, se incluía a arrecadação de um milhão de euros para proteger o Parque Nacional Indígena do Xingú, reserva onde vivem vários povos indígenas, da ação de madeireiros e do agro-negócio. 

As políticas oficiais e declarações de Bolsonaro e de membros de seu governo, revelaram que o risco de genocídio atingira o nível de alerta máximo. O Observatório da Imprensa, em 30 de julho deste ano, relatou que “o massacre dos povos indígenas já começou”, e assinalou que a indiferença do governo Bolsonaro estimulou a continuação do extermínio, o que levaria, no extremo, ao genocídio de vários destes povos.

Em 29 de agosto, Survival Brasil alertou para os riscos que tribos isoladas, como os Awá, correm com os incêndios florestais, que teriam sido provocados por madeireiros fortemente armados. O Diretor da Survival International, Stephen Corry, acusa diretamente a Bolsonaro de encorajar aos fazendeiros e madeireiros a colocar fogo na floresta. A COIAB, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, também alertou para os riscos trazidos pelos incêndios, de destruir os espaços vitais para a sobrevivência das tribos isoladas no Estado do Mato Grosso.

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 Em defesa da Amazônia: Cacique Raoni e o Papa Francisco   /     Foto: Instagram / Franciscus

No 9º Encontro dos Povos do Cerrado realizado em setembro, o Cacique Raoni pediu a união aos presentes no Encontro – quilombolas, indígenas, camponeses, populações extrativistas e ativistas ambientais – contra a política ambiental do governo, que está destruindo os meios de subsistência, com o incentivo à devastação das florestas.

Enquanto isto, avança na Câmara proposta que permite a exploração agrícola terras indígenas quando gerenciadas pelos próprios índios, um direito que eles já possuíam. A proposta original representava uma ameaça explícita da entrada do agronegócio nestas terras. O governo já estaria trabalhando também para finalizar proposta que autoriza a exploração mineral

Portanto, são vários os alertas de urgência que estão sendo levantados por lideranças indígenas, povos da floresta, organizações nacionais e internacionais. Diante deste quadro, torna-se prioritário estabelecer uma “central de resistência” a este avanço das forças criminosas, que não tem compromisso com a herança civilizatória e cultural, representada pelas culturas indígena e quilombola.

Um documento das Nações Unidas oferece um modelo de análise (framework), para crimes de atrocidade, de grande utilidade para uso por agentes locais e internacionais, na monitoração, avaliação e previsão, não apenas para o risco de genocídio, mas, também de crimes contra a humanidade, crimes de guerra e de limpeza étnica. Este modelo, que é baseado na identificação de “fatores e indicadores de riscos”, foi utilizado pelo CIMI quando encaminhou denúncias da ocorrência de genocídio de Povos Indígenas no Brasil, conforme já foi mencionado neste artigo.  Um outro documento relevante, do Escritório da ONU para a Prevenção de Genocídio e a Responsabilidade de Proteger,  pode ser também utilizado na análise deste crime.

O ideal, no entanto, é que as denúncias sejam respaldadas por um amplo conjunto de entidades e lideranças reconhecidas. A sugestão deste artigo é que seja formada uma Comissão Permanente de Defesa dos Povos Indígenas (ou Povos da Floresta), a partir de iniciativa da OAB Nacional, CIMI, lideranças e entidades indígenas, como a Coordenação das Organizações Indígenas das Amazônia Brasileira (COIAB), além de representantes das comunidades quilombolas e  extrativistas. Entidades internacionais poderiam atuar como observadoras junto à Comissão.

À comissão, caberia receber as denúncias, analisá-las, e elaborar um relatório, de acordo com a metodologia requerida pelo Escritório de Prevenção de Genocídio. Confirmada a robustez das denúncias, uma investigação poderá ser conduzida nas regiões de conflito, por uma Missão Internacional de Averiguação (Independent Internacional Fact Finding Mission). No caso de confirmação da gravidade das denúncias, o Tribunal Penal Internacional (ICC) procederá à convocação dos suspeitos para prestar declarações em Haia. O Tribunal intervém apenas quando os Estados não estiverem genuinamente comprometidos com as investigações e apurações das responsabilidades.

É importante que a Comissão Permanente tenha amplo reconhecimento nacional e internacional, para garantir que a situação não dê margem a algum tipo de intervenção externa, que comprometa a soberania nacional na Amazônia. Artigos anteriores publicados pelo blogue mostraram que países da OTAN souberam utilizar o mote do “genocídio”, por vezes com base em acusações sem comprovação ou mesmo falsas, para intervir militarmente em outros países. O pretexto da intervenção era humanitário, mas se tratava, na verdade, de interesses geopolíticos do Ocidente. Isto ocorreu diversas vezes nos últimos anos, como nos casos de Iugoslávia, Iraque, Líbia e Síria, onde os resultados da intervenção externa foram desastrosos.

1 DAVIS, Shelton. Vítimas do milagre de Nova York: Cambridge University Press, 1977.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense

 

 

 

 

 

Dr. Kouchner e o Sr. Hyde: o médico e o monstro? Parte 2 – As intervenções militares humanitárias

Por Ruben Rosenthal

Kouchner e Hillary
Dr. Kouchner e seu alter ego feminino, a sra. Clinton     /   Foto David Karp / AP

Foi com os bombardeios da ex-Iugoslávia pela OTAN em 1999, em violação ao direito internacional, que Bernard Kouchner pôde ver coroada sua ideologia, em que a soberania dos Estados não representasse obstáculo ao “direito de intervenção humanitária”. Uma nova forma de colonialismo passou a se impor?

A primeira parte do artigo focou na atuação de Kouchner ( “K) como médico humanitarista, no período até o final da década de 80. Inicialmente com Médicos Sem Fronteiras (MSF), e depois com Médicos do Mundo (MDM), ele e seus colegas prestaram atendimento às populações necessitadas, em regiões de conflito bélico ou de ocorrência de catástrofes naturais.

K e os outros médicos franceses fundadores de MSF eram altamente críticos da completa neutralidade das agências tradicionais de ajuda, como a Cruz Vermelha Internacional, por estas respeitarem as convenções internacionais, o que por vezes dificultava o atendimento em regiões de conflito. K defendia que os agentes de saúde deveriam quebrar regras e cruzar fronteiras de países, mesmo que ilegalmente, para prestar socorro às vítimas. Conforme sua declaração, “agentes de saúde que cruzam fronteiras não se comportam como colonialistas, porque chegam a pedido, ….para proteger os mais fracos e necessitados”. K soube fazer uso da mídia para chamar atenção para as causas que defendia, ao ponto de se incompatibilizar com MSF, e decidir deixar a organização que ajudara a fundar, para formar MDM, em 1980.

K aproveitou seu cargo, como Ministro da Saúde e Ação Humanitária no governo Mitterrand, para promover sua doutrina de “intervenção militar humanitária”, conseguindo fazer com que ela fosse introduzida em diversas resoluções da ONU, e colocada em prática por tropas do Ocidente no Curdistão iraquiano, na Somália e em Ruanda, no começo dos anos 90. No final da década, a doutrina serviu de pretexto para o bombardeio da Iugoslávia, e, já nos anos 2000, nas intervenções no Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria. No entanto, falsos argumentos já foram várias vezes utilizados, para mobilizar a mídia e a opinião pública a favor das intervenções externas.

As bolas da vez agora, são a Venezuela e o Irã. E quem sabe, o Brasil, em um futuro não muito distante, caso os povos indígenas continuem a ser submetidos à políticas governamentais que efetivamente tem ameaçado suas vidas e seus meios de subsistência, e que podem muito bem ser consideradas como ações de extermínio ou de “limpeza étnica”. Ou mesmo, que questões de preservação ambiental, como na Amazônia, possam oferecer o pretexto para a intervenção.  

O direito à intervenção humanitária foi introduzido oficialmente, como novo “conceito estratégico da OTAN”, no aniversário de 50 anos da organização, em abril de 1999, em meio à guerra nos Bálcãs.  O bombardeio da Iugoslávia é até hoje saudado como um triunfo para “a justiça internacional” sobre o direito tradicional de soberania dos Estados. Entretanto, os ataques se deram em flagrante violação da lei internacional, pois os mesmos foram realizados sem autorização prévia do Conselho de Segurança da ONU. As decisões da OTAN passaram a não se subordinar a qualquer órgão internacional.

Esta nova “ideologia” representou, praticamente, um retorno às condições que prevaleceram com a Paz de Vestfália, de 1648, quando houve o reconhecimento formal do princípio de soberania territorial, contra as ingerências do Papado, segundo David Chandler, em artigo no New Left Review. O sistema Vestfaliano, no entanto, nunca consistiu em impedimento para o uso da força contra os Estados mais fracos. Mesmo séculos depois, com o advento da Carta da ONU de 1945, o pleno direito de soberania não foi alcançado na prática, pois, apesar da igualdade de voto dos Estados membros na Assembléia Geral, as decisões do Conselho de Segurança são mandatórias.

A seguir, vamos acompanhar a carreira política de K, através da qual ele pôde melhor contribuir para que sua ideologia intervencionista ganhasse reconhecimento, e se tornasse consenso no Ocidente.

Em 1988, K se tornou Secretário de Estado para Ação Humanitária, no governo socialista do presidente François Mitterrand. Em 1988, ele foi co-autor da resolução 43/131, aprovada na ONU, estabelecendo o direito de intervenção externa em um país, no caso de desastres naturais ou emergência. Em 1990, K conseguiu aprovar outra resolução, que estabelecia “corredores humanitários” de ajuda às vítimas, se sobrepondo à soberania dos Estados. 

Em 1991, K apoiou a primeira Guerra do Golfo, atacando os pacifistas na imprensa, apesar da impopularidade desta guerra na França. O fato dos bombardeios da coalizão ocidental no Iraque terem causado uma catástrofe humanitária, foi para ele irrelevante. Como, mesmo com a vitória da coalizão no golfo, o “novo Hitler” Sadam manteve-se no poder, K foi co-autor de uma resolução direcionada ao Conselho de Segurança da ONU, autorizando a continuidade das ações militares para ajudar os curdos. Foram também estabelecidas “zonas de restrição aérea” e regiões de “refúgio seguro”. Desta forma, os bombardeios anglo-americanos no Iraque prosseguiram durante os anos 90.

De 1992 a 1993, K atuou como Ministro da Saúde e Ação Humanitária, ainda sob a presidência de Miterrand. Em dezembro de 1992, quando a Somália atravessava um “genocídio pela fome”, K organizou uma campanha de coleta de arroz nas escolas da França, e, pouco depois, ele aparecia, de forma midiática, carregando sacos de arroz nas costas, em uma praia da Somália. Rony Brauman, então presidente do MSF, considerou a foto indecente. No mesmo dia do evento na praia, os marines norte-americanos desembarcavam para uma operação militar no país, gerando uma onda de saques e atos de vandalismo. Uma ampla descrição dos eventos ocorridos na Somália pode ser vista na publicação do MSF Somalia 1991-1993: Civil War, Famine Alert and a UN ‘Military-Humanitarian’  Intervention 1992-1993”.

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Kouchner e a campanha do arroz para a Somália  /   Foto Eric Feferberg / Getty Images

Alain Destexhe, secretário geral do MSF declarou: “para Kouchner e outros, a intervenção americana (na Somália) confirma o ‘direito de intervir’ com uma motivação humanitária. No MSF, concordamos todos, que não se tratava de uma intervenção humanitária, mas nossa posição não apareceu nas manchetes. Estávamos contra a maré”.

Em 1993, MDM, a organização fundada por K quando deixou MSF, realizou uma intensa campanha demonizando os sérvios e Slobodan Milosevic, então presidente da Iugoslávia, conforme já descrito detalhadamente em artigo anterior do blogue. As comparações de Milosevic a Hitler e os milhares de cartazes, comparando os campos dos prisioneiros bósnios muçulmanos (bosniaks) a campos nazistas de extermínio, serviram para predispor a opinião pública do Ocidente, inclusive vários setores da esquerda, para os futuros bombardeios pela OTAN, em 1995, contra alvos sérvios na Bósnia, e, em 1999, contra a Iugoslávia,  quando a situação no Kosovo se agravou.

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Campanha de Médicos do Mundo, 1993  /  Foto Georges Merillon/Gamma-Rapho

De 1994 a 1997, K atuou no parlamento europeu, onde, dentre outras atribuições, participou no sub-comitê de direitos humanos.

Em 1994, as posições de K quanto ao genocídio em Ruanda trouxeram a ele muitos desafetos na França. O veterano jornalista Pierre Péan, escreveu o livro “Le Monde Selon K” (O mundo segundo K), em que denuncia que as mortes em Ruanda não foram apenas cometidas por Hutus contra Tutsis, mas que o reverso também ocorreu de forma generalizada. Em particular, Péan cita o caso de uma vila, onde K afirmara que Tutsis haviam sido massacrados, e, na verdade, os Tutsis haviam sido os criminosos. K havia invertido vítima e criminoso.

Em outubro de 1995, a OTAN realizou ataques contra alvos sérvios na Bósnia, seguindo-se à já mencionada campanha de MDM na mídia. K sabia muito bem que as alegações de campos de “purificação étnica” eram falsas, porque ele mesmo visitara os campos de prisioneiros geridos pelos sérvios da Bósnia, em agosto de 1992. Só em 2004, K reconheceu que os campos de prisioneiros não eram de extermínio, em seu livro “Les guerriers de la paix” (Os guerreiros da paz).

De 1997 a 1999, K atuou pela segunda vez como Ministro da Saúde em um governo do PS. Em maio de 1999, sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, tropas da OTAN bombardearam Belgrado por 77 dias. A OTAN defendeu a destruição da televisão estatal em Belgrado, por ser um “alvo legítimo e um centro de mentiras”. Segundo a BBC News, a Corte Européia de Direitos Humanos chegou a deliberar se a OTAN deveria ir a julgamento pela ação que levou à morte de 16 pessoas. 

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Televisão estatal iugoslava bombardeada pela OTAN em 1999    / Foto BBC News

Em 1999, MSF ganhou o Prêmio Nobel da Paz, como uma forma de se homenagear K, o fundador da organização, e mentor intelectual do “direito à intervenção”, mesmo que MSF não mais compartilhasse dos mesmos ideais de K. Em julho de 1999, como recompensa por seus esforços ideológicos, K foi indicado pelo Secretário Geral da ONU, Kofi Annan,  para Representante Especial da ONU no Kosovo, e Chefe da Administração Interina da ONU no Kosovo (UNMIK), permanecendo até 2001, por um total de 18 meses. Este período de K no Kosovo será o assunto da terceira e última parte desta série. Em outubro do mesmo ano, K reiterou o direito à intervenção militar humanitária, em entrevista ao Los Angeles Times

K foi novamente Ministro da Saúde no governo do PS, entre 2001 a 2002. Em 2003, ocorreu a invasão do Iraque. Já fora do governo, K deu apoio moral à invasão do Iraque, alegando que “as vozes do povo iraquiano tinham que ser ouvidas”. Conforme expresso em seu livro Les guerriers de la paix, K interpretou a situação de forma diferente do governo francês e dos intelectuais europeus, enfatizando que o Iraque atendia a dois critérios que justificavam o direito de intervenção: o povo iraquiano queria ser resgatado e libertado, e Saddam era um líder indigno do respeito da comunidade internacional”, e que (supostamente) teria matado 500.000 pessoas de seu próprio povo, de acordo com Saïd K. Aburish, em seu livro “Le vrai Saddam Hussein” (O verdadeiro Saddam Hussein).

Embora tenha expressado seu apoio à deposição de Saddam, K se opunha à estratégia da Administração Bush, conforme artigo no Le Monde, intitulado “Ni la guerre ni Sadam” (Nem a guerra nem Sadam). Ele culpou a Bush por ter ido à guerra sem antes ter forjado uma real aliança na ONU, como também por conduzir mal o pós-guerra.

Uma das consequências da identificação da causa humanitária com os interesses das potências ocidentais, foi trazer  risco aos agentes humanitários e da ONU, como evidenciado pelo bombardeio da Missão da ONU em Bagdá, em agosto de 2003, quando morreram 23 pessoas, inclusive o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, Representante Especial da ONU no Iraque. Em outubro do mesmo ano foi atacada a sede da Cruz Vermelha Internacional em Bagdá.

Em 2005, a Assembléia Geral da ONU endossou um novo conceito humanitário, a Responsabilidade de Proteger (R2P), consistindo de uma série de princípios, com base na ideia de que a soberania não é um privilégio, e sim, uma responsabilidade. Se um Estado não proteger seus cidadãos de atrocidades, a comunidade internacional tem a responsabilidade de agir, mesmo usando da força, se o Conselho de Segurança assim decidir. Respeitada a condição de ratificação prévia pelo Conselho da ONU, R2P não difere do “direito à intervenção humanitária”, defendido por K. 

Em 2005, K foi candidato ao Alto Comissariado da ONU para Refugiados, perdendo a indicação para Antonio Guterres, atual Secretário Geral da Organização. Em 2006, K foi candidato a diretor-geral da OMS, não se elegendo.

De 2007 a 2010, K atuou como Ministro das Relações Exteriores do Governo de direita de Nicolas Sarkozy, sendo, por este motivo, expulso do PS. Em sua atuação como ministro, em pronunciamento de setembro de 2007 sobre a questão nuclear no Irã, K declarou que “devemos nos preparar para o pior… a guerra com o Irã”, gerando uma reação enérgica do porta-voz iraniano. No intuito de reduzir as tensões, o próprio ministro francês, François Fillon se pronunciou, bem como Mohamed El Baradei, então diretor geral da Agência Internacional de Energia Atômica, segundo artigo no Deutsche Welle. Coube, então, ao escritor Philip Hammond, perguntar no título de seu artigo, se referindo a K: “é este o homem mais perigoso da Europa?”.

A resposta à indagação de Hammond ficou bastante evidente alguns anos depois. Em março de 2011, uma coalizão de países da OTAN iniciou uma intervenção militar na Líbia, para implementar a resolução 1973  do Conselho de Segurança, que fora aprovada por 10 votos a favor, nenhum contra, e 5 abstenções – da Alemanha, Brasil, China, Índia e Rússia. Mesmo autorizando o uso da força, a resolução sublinhava a necessidade de intensificarem-se esforços que levassem às reformas políticas necessárias, para uma solução pacífica e sustentável.

A intenção do voto fora a de obter “um imediato cessar fogo na Líbia”, mas a intervenção foi bem mais além, levando à morte de Kadhafi e à completa desestabilização do país, abrindo um vácuo de poder que possibilitou a entrada do ISIS. A Líbia, que tinha padrões de desenvolvimento relativamente avançados, regrediu dezenas de anos, com a destruição que se seguiu. Em artigo publicado no The Guardian, K defendeu a moralidade da intervenção: “poderíamos continuar a ver em nossas televisões as imagens das mortes das vítimas de Kadhafi?”

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Tropas do ISIS na Líbia    /   Foto El País

Entretanto, segundo artigo recente publicado no Global Research, mensagens por e.mail de Hillary Clinton, então Secretária de Estado de Obama, e que vieram à luz posteriormente, revelaram o real motivo da intervenção. O objetivo seria o de bloquear o plano de Kadhafi de usar o Fundo Soberano*, derivado dos recursos provenientes do petróleo, para criar órgãos financeiros autônomos pela União Africana, além de uma moeda africana, como alternativa ao dólar e ao franco francês. A sra. Clinton, alter ego feminino de K, convenceu Obama a autorizar operações clandestinas na Líbia, e a fornecer armas aos rebeldes.

Mesmo estando fora de cargos oficiais de governo desde 2010, K pôde contemplar que a sua doutrina,  já então plenamente estabelecida através da resolução RP2 da ONU, não mais dependia de suas ações diretas. Mesmo que o Conselho de Segurança não concedesse a autorização requerida para a intervenção, a OTAN já considerava  que esta era desnecessária, desde o seu aniversário de 50 anos em 1999.  

Nos últimos anos, a Síria foi alvo de repetidos ataques aéreos por parte dos Estados Unidos e da OTAN. O argumento utilizado  tem sido, principalmente, o uso de armas químicas pelo governo de Bashar al Assad.  Em 2013, a acusação, pela oposição síria e seus aliados no mundo árabe e no Ocidente, foi do uso de gás sarin em civis em Goutha, o que foi rechaçado pelo governo Sírio, que argumentou que o ataque fora conduzido pelos rebeldes.

A intervenção militar externa só foi evitada com a concordância do governo, na destruição de todo o estoque de armas químicas, e em assinar a Convenção de Armas Químicas. Entretanto, novas suspeitas surgiram do uso de gás sarin e de cloro contra populações civis.  Em abril de 2017, já no governo Trump, a retaliação norte-americana foi através do lançamento de 59 mísseis Tomahawk. Em abril de 2018, Estados Unidos, França e Reino Unido conduziram uma série de ataques por mísseis contra vários alvos do governo sírio, em resposta ao suposto uso de agentes químicos em Douma. 

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Mísseis Cruise lançados de fragata francesa / Foto AFP / ECPAD

Nos dois casos citados, o governo Sírio alega que as acusações eram falsas, e que os ataques se deram  em violação à lei internacional, pois ocorreram sem aprovação do Conselho de Segurança da ONU. Em artigo anterior deste blogue, foi denunciado que o relatório final da OPAQ, a Organização para Proibição de Armas Químicas, havia sido manipulado com o intuito de tentar comprovar o envolvimento do governo de Assad no uso de armas químicas em Douma. A manobra fora exposta com o vazamento recente de um relatório interno, elaborado pelo grupo técnico de engenheiros da OPAQ. Embora esta revelação não garanta um “atestado de boa conduta” ao governo sírio, neste e nos outros casos citados, é no entanto um forte indício que existe um grau de deturpação nas informações veiculadas na mídia.

Em reportagem de junho de 2019, o jornalista Max Blumenthal denuncia que o grupo “Rede Síria de Direitos Humanos”, baseado no Catar, e que monitora ações do governo de Hassad, é financiado por governos estrangeiros. A Rede tem feito lobby pela “imediata intervenção” militar na Síria de uma coalizão internacional, citando como exemplo, o bombardeio da Iugoslávia pela OTAN em 1999, que ocorrera sem aprovação do Conselho de Segurança da ONU. Os principais jornais norte-americanos, as organizações internacionais de direitos humanos, e mesmo governos, têm repercutido os relatórios dúbios da Rede, sem nunca terem questionado qual a sua relação com a oposição armada na Síria e a origem dos recursos de financiamento, acrescentou Blumenthal. 

Atualmente, mesmo sem cargo no governo francês, K continua a insuflar o belicismo, desta vez contra o Irã, como em seu discurso na Albânia (vídeo em inglês), em julho de 2019, pela mudança do sistema político iraniano: “Os mulás (religiosos) são assassinos. Eles são a origem de todos os ataques terroristas, e estamos prontos para livrar este povo (iraniano) deste terrível sistema religioso”. Tratava-se de evento anual promovido pelo MEK, uma organização associada aos Mujahideen, que lutaram na revolução dos anos 70, contra o regime do Xá do Irã, Mohammad Reza Pahlavi, déspota  então apoiado pelos EUA.

A organização posteriormente rompeu com o regime dos Aiatolás, e se associou ao Iraque e aos norte-americanos, na guerra de 8 anos contra seu próprio país. MEK deixou de ser considerada uma organização terrorista e passou a aliada dos Estados Unidos, pela ação de Dick Cheney, o controverso vice-presidente de Bush, e é, atualmente, aliada de Trump contra o Irã, conforme análise no The Guardian.

K continua desempregado, mas permanece ativo na defesa do intervencionismo militar humanitário, para o bem e para o mal.

* Qualquer associação com o que aconteceu no Brasil, por ingerência norte-americana, em seguida à criação de um Fundo Soberano do petróleo pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, e à formação do banco dos BRICS, no governo de Dilma Rousseff, pode ser mais do que mera coincidência.

No próximo e último artigo da série, será abordado o período em que K atuou como como representante da ONU no Kosovo, de 1999 a 2001. Alguns fantasmas daquela época podem voltar agora para assombrar K, e  talvez ele venha a ser acusado de conivência com uma organização criminosa, envolvida inclusive com o tráfico de órgãos humanos. Aí poderemos ver se a Corte Internacional de Justiça, em Haia, será imparcial ao julgar uma (ou mais) das lideranças do Ocidente.

 

 

Dr. Kouchner e o Sr. Hyde: o médico e o monstro? Parte 1 – o médico humanitarista

Por Ruben Rosenthal

Bernard Kouchner, co-fundador da organização Médicos Sem Fronteiras, em seu alter ego amoral, se tornou o mentor intelectual de intervenções militares criminosas pela OTAN, com consequências devastadores para muitos países.

o médico e o monstro 12

No livro do escocês Robert Louis Stevenson, publicado originalmente em 1886, e tendo como cenário a nevoenta Londres, o respeitado médico, Dr. Jekyll, passa por uma metamorfose física e moral, que o transforma em um assassino contumaz, o senhor Hyde. Na França do final do século 20 e início do 21, Kouchner, refinado médico e humanitarista,  co-fundador das organizações Médicos Sem Fronteiras e Médicos do Mundo, em seu alter ego amoral (ou imoral?), se tornou o mentor intelectual de intervenções militares criminosas pela OTAN, com consequências devastadores para muitos países. Além disto, o francês teve o seu nome associado ao tráfico internacional de órgãos em Kosovo, e poderá ver ainda, em vida, sua responsabilidade comprovada. 

Este primeiro artigo  foi baseado principalmente no texto de Philip Hammond, escritor e professor  britânico, intitulado “Bernard Kouchner é o homem mais perigoso da Europa?”. Será analisado o começo da trajetória de Kouchner, indo até o final dos anos 80, período em que sua atuação foi essencialmente como médico humanitarista, embora o viés político e midiático já estivesse presente. No restante do atual artigo, Kouchner será referido apenas como “K”. 

O início. Conforme consta no relato de Hammond, K orgulha-se ainda de ter sido um dos jovens rebeldes que estiveram na linha de frente da revolta estudantil de maio de 68, na França. Ele contava então com 29 anos, e era um pouco mais velho que alguns dos líderes, e com uma origem mais convencional na esquerda, por ter se envolvido com o PCF, do qual fora expulso por planejar um golpe interno. Mas poucos destes jovens radicais de 68 tinham sérias expectativas de encontrar “em casa”, uma causa impactante, como a da geração dos resistentes à ocupação nazista. A culpa recaía sobre o consumismo do boom econômico pós-guerra mundial, visto como o aburguesamento da classe operária ocidental.

Sem a proximidade de uma revolução, estes jovens olharam para as lutas de libertação colonial no Terceiro Mundo, como as da África, Indochina e outras. Dentro deste espírito, K se apresentou à embaixada cubana em Paris, em 1960, para ir em defesa de Fidel Castro e Che Guevara. A oferta foi recusada, e, ainda em 68, menos de 6 meses após os eventos de maio, K foi como médico voluntário  para a guerra civil na Nigéria, onde Biafra havia declarado sua independência no ano anterior. A França apoiava Biafra, enquanto que a Inglaterra defendia a manutenção da integridade territorial da Nigéria, sua ex-colônia.

O governo nigeriano impusera um bloqueio aos separatistas, que resultou em fome generalizada. K ficou chocado que a Cruz Vermelha respeitasse a soberania nigeriana, e a estrita aderência ao princípio na neutralidade humanitária, o que o proibia, e a seus colegas médicos, de se pronunciarem contra “o genocídio pela fome”. Parecia a ele, uma repetição do silêncio mantido pela organização em relação aos campos nazistas. K considerava que, ao se manterem em silêncio, “os médicos estariam sendo cúmplices do massacre sistemático da população Ibo”. 

De volta a França, ele estabeleceu o Comitê Contra o Genocídio em Biafra, que deu origem, em 1971, à organização Médicos Sem Fronteira, da qual foi co-fundador. MSF seria diferente da Cruz Vermelha, pois seus agentes não deixariam de agir, e não ficariam em silêncio, face à constatação de atrocidades sendo cometidas.

Mas a verdade sobre a história de Biafra é um pouco diferente da que fora denunciada por K. Ocorria, certamente, grande sofrimento da população Ibo, mas não havia genocídio ou perseguições em áreas controladas pelo governo central. É o que relata Fiona Terry, ex-diretora de pesquisa de MSF e, atualmente, chefe do centro de pesquisa operacional do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (ICRC). K e seus colegas simplesmente não consideraram que estavam no meio de uma guerra civil.

Pouco tempo depois, em 1980, K deixou MSF, para fundar uma ONG menor, Médicos do Mundo, juntamente com 15 médicos franceses. MDM surgiu a partir da campanha de K, “um barco para o Vietnam”, que visava recolher refugiados vietnamitas no mar da China, que fugiam do governo comunista. Seus colegas do MSF consideraram que a ação era essencialmente midiática, e não aderiram à causa.  

K justificava a relevância de se chamar a atenção da mídia, como forma de compelir Estados a aderirem à ações humanitárias. Em 1979, ele partiu em sua “ambulância marítima”, Ile de Lumière (Ilha da Luz), para o Mar da China. Um vídeo de cerca de 2 minutos, falado em francês, e mostrando a operação de recolhimento de refugiados no mar e algumas entrevistas, pode ser acessado aqui

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Kouchner recolhe refugiados vietnamitas no mar da China       Foto Jacques Pavlovsky/Sygma/Getty Images

O então presidente Jimmy Carter ficou tão impressionado com a visão do barco de K, que enviou a marinha norte-americana para ajudar no resgate do “boat people”. Isto possibilitou que os militares dos EUA aparecessem como salvadores de vietnamitas, poucos anos após as inomináveis atrocidades cometidas pelas tropas norte-americanas, no próprio Vietnam.

Nos anos 80, já através de MDM, sua nova organização, K participou de atendimentos médicos em diversas regiões do mundo que passavam por crises humanitárias. De 1983 a 1985, em meio a uma situação de conflitos internos, a Etiópia atravessou uma crise generalizada de fome, com todas as consequências que decorrem em casos de desnutrição aguda.  E lá estava K, conforme mostrado na  foto de Sebastião Salgado.

K na Etiópia 1985 Sebastião salgado
Kouchner presta atendimento na Etiópia    Foto Sebastião Salgado/Amazonas Imagens

No final da década, com a queda do muro de Berlim, o “direito à intervenção” ganhou força. Para a elite ocidental, privada de seu inimigo da “guerra fria”, o humanitarismo ofereceu um novo sentido de missão. O mundo estava pronto para K, e K estava pronto para brilhar no mundo. Na nova era, que se iniciou essencialmente na década de 90, a soberania nacional de países fora do Ocidente deixou de ser respeitada, diversas vezes com base  em falsas alegações de limpeza étnica, genocídios e perseguições. As consequências das intervenções foram devastadoras, em vários casos.  Para muitos críticos, uma nova forma de colonialismo se iniciou, com o advento da intervenção humanitária. 

No próximo artigo da série, será mostrada a atuação direta de K na política, inicialmente no Parlamento Europeu, e depois em posições ministeriais no governo francês, tanto em governos de esquerda como de direita. Uma vez dentro do círculo de poder, ele pôde melhor implementar sua ideologia intervencionista.