Dr. Kouchner e o Sr. Hyde: o médico e o monstro? Parte 3 – A máfia do Kosovo, Por Ruben Rosenthal

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Manifestação em 2017 pelos desaparecidos na guerra do Kosovo  /  Foto AP

Durante a gestão de Bernard Kouchner na administração do Kosovo, o crime organizado assumiu o controle de posições-chave no controle político do enclave de maioria  da etnia albanesa, o que levou à situação atual de um Estado com governo e  exército comandados pela máfia.  

Este artigo, o terceiro e último da série “Dr. Kouchner e o sr. Hyde”, aborda o período em que Kouchner (“K”)  atuou como Chefe da Administração Interina do Kosovo. Foram levantadas contra ele, acusações de tolerância ou mesmo de conivência, com ações criminosas das milícias kosovares albanesas. Será também abordado a papel das lideranças do Ocidente na ascensão de lideranças kosovares associadas com a máfia albanesa.

Na sequência de seu período como Ministro da Saúde no governo francês, K atuou, de 1999 a 2001, como representante Especial das Nações Unidas e Chefe da Administração Interina da Missão da ONU (UNMIK) no Kosovo, com o afastamento da administração sérvia após os bombardeios da Iugoslávia pela OTAN. Segundo o jornalista Philip Hammond, K relembra este período como “o mais feliz de sua vida”.

No entanto, para a população kosovar que não pertencesse à etnia albanesa, estes foram anos de terror, pela ação do KLA, o Exército de Libertação do Kosovo, e depois, por seu substituto, a Corporação de Proteção do Kosovo, KPC (siglas em inglês).

Em setembro de 1999, a OTAN e o KLA alcançaram um acordo para transformar (a partir de janeiro de 2000) os rebeldes em um grupo de defesa civil, o KPC, após semanas de difíceis negociações. O KPC ficaria encarregado de prestar assistência humanitária e da remoção de minas terrestres. Na foto, após a assinatura do acordo, aparecem (a partir da esquerda) Hashim Thaçi, então líder do KLA, K, como representante da ONU, o tenente-general britânico Mike Jackson, Agim Ceku, chefe de gabinete do KLA, e o general Wesley Clark, comandante supremo da OTAN. 

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Assinatura do acordo  entre a OTAN e o KLA    /    Foto EPA

Restava, então, esperar para ver qual seria o comportamento do KPC, pois o KLA, além de ter sido uma organização terrorista que atacava indistintamente oficiais sérvios e a civis das outras etnias, que não a albanesa, estava também envolvido no tráfico de drogas, extorsão e outros crimes.

Em agosto de 2000, a seção belga de Médicos Sem Fronteira se retirou do protetorado, reclamando que os kosovares sérvios e outras minorias estavam sendo “aterrorizados por constantes atos de violência”, sem que a administração internacional impedisse. E, de forma irônica, MSF relembrou as palavras críticas que K, fundador da organização, anteriormente proferira contra a Cruz Vermelha Internacional, de que o “silêncio sobre atrocidades implicava em passividade cúmplice”.

Documento do Comitê Republicano do Senado norte-americano, datado de 24 de março de 1999, ou seja, de uma semana antes do início do bombardeio da Iugoslávia pelas tropas da OTAN, fez o questionamento: “a política de Clinton (então presidente do país) é apoiar um grupo com vinculação ao terror e às drogas? O KLA tem forte envolvimento com a rede criminosa da máfia albanesa, que se estende pela Europa e Estados Unidos, e de onde obtém a maior parte de seu financiamento”. 

Acrescenta que informações sobre vínculos do KLA com o cartel albanês foram objeto de relato da revista especializada Jane´s Intelligence Review, desde meados da década de 90. O documento do Comitê Republicano mencionava ainda, que a secretária de estado Madeleine Albright tratava com deferência a Hashim Thaci, o líder do KLA, então com 30 anos de idade. Futuramente, a secretária de estado Hillary Clinton também iria tratar com grande deferência, ao já grisalho Thaci.

O envolvimento do KLA com a máfia albanesa se tornou de amplo conhecimento no Ocidente, a partir das publicações que dominaram a mídia corporativa em março de 2000, poucas semanas após assinatura do acordo com a OTAN, chancelado por K.

No Sunday Times: “Apesar do KLA ser uma organização criminosa, recebia assistência militar da CIA, antes mesmo de começarem os bombardeios na Iugoslávia pela OTAN”. 

No Washington Post: “Relatório da ONU diz que os rebeldes do ex-KLA (atual KPC) ameaçavam, torturavam e matavam civis”. O artigo acrescenta que a ONU e OTAN falharam em supervisionar o KPC. 

No jornal inglês The Guardian, foi publicado o artigo intitulado “O reino de terror da unidade fundada pela ONU”. O relatório confidencial direcionado ao Secretário Kofi Annan, elaborado pelo próprio gabinete de Kouchner, salientou que o KPC, que já contava então com cerca de 5.000 membros, se comportava como estivesse acima da lei. Constava ainda no relatório divulgado pelo jornal inglês, que lojistas, empresários e empreiteiros sofriam extorsão para pagar por taxas de proteção. O KPC era então liderado pelo general Agim Ceku, que aparece na foto da cerimônia do acordo. 

Outro artigo no The Guardian foi publicado na mesma época com o título “Máfia de drogas no Kosovo fornece heroína para Europa”. Acrescenta que a “máfia do Kosovo é praticamente intocável, pois é estruturada com base na família ou em clãs fechados, tornando impossível plantar informantes”.

Portanto, K tinha pleno conhecimento do que se passava no Kosovo, enquanto ele usufruía “do período mais feliz de sua vida”. Dentre os outros crimes praticados então pelas milícias albanesas do Kosovo, deve-se ressaltar o macabro tráfico internacional de órgãos humanos, retirados de prisioneiros sérvios e de outras nacionalidades não-albanesas, após rapto e assassinato, ou mesmo, em alguns casos, de doadores (não espontâneos), que foram mantidos vivos. No entanto, estas informações só alcançaram a mídia 10 anos depois, mesmo que já fosse de conhecimento restrito.

O jornalista investigativo Michael Montgomery viajou com colegas ao Kosovo para investigar crimes cometidos por paramilitares sérvios durante a guerra (1998-1999). A partir daí, ele passou a investigar o desaparecimento de sérvios, que estranhamente estavam acontecendo, mesmo após o término da guerra no Kosovo. Ele relata a sua assustadora experiência em busca de explicações, através de uma animação gráfica.

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A polícia e representantes da ONU investigam a casa amarela    /      Extraído da animação gráfica / Vice News 

A investigação levou o grupo de jornalistas a uma “casa amarela” no interior da Albânia. Sentindo que sua vida estava em risco, Montgomery se fez passar por um engenheiro construtor de estradas, e, retornando à capital, Pristina, denunciou o caso aos representantes da ONU.

O jornalista pôde então, retornar em segurança à “casa amarela”, acompanhando a equipe da ONU e a polícia local. Na perícia realizada, foram recolhidas amostras de sangue, e coletadas seringas e outros ítens encontrados. As provas foram remetidas para o Tribunal Internacional Penal para a Ex-Iugoslávia, em Haia.

Em 2006, o capitão canadense Stu Kellock, chefe (de 2000-2001) da Unidade Regional da UNIMIK para Crimes Sérios de Pristina, afirmou que, desde janeiro de 2000, K ordenara à polícia que qualquer ação contra famílias importantes do Kosovo só poderia ser realizada se ele próprio desse a autorização.

Acrescentou ainda Kellock, que havia uma “relutância em processar ex-membros do KLA…. A OTAN e a UNMIK estavam no Kosovo para proteger os direitos humanos, principalmente dos albaneses. Portanto, submetê-los a processos judiciais por atos criminosos, não seria politicamente palatável”. Além disto, “temia-se que UNMIK e KFOR (a força militar da OTAN no Kosovo) pudessem sofrer retaliações, o que tornou estas instituições, reféns do KLA, e depois do KPC”.

Conforme relato da escritora Diana Johnstone no Global Research, a ex-procuradora do Tribunal Internacional Penal para a ex-Iugoslávia, em Haia, Carla del Ponte, revelou em suas memórias de 2008, que fora impedida de conduzir uma investigação plena sobre os relatos de extração e tráfico de órgãos de prisioneiros, conduzidos pelo KLA na vizinha Albânia. Acrescentou a procuradora, que tais denúncias foram então ignoradas pelas autoridades judiciais dos interventores externos, inicialmente a OTAN, e, em seguida, a ONU.

Inicialmente, K tentou negar que tivesse ocorrido seqüestro de pessoas, para alimentar tráfico de órgãos humanos, durante sua gestão no Kosovo. Quando no cargo de Ministro do Exterior do governo de direita de Nicolas Sarkozy, K foi questionado, em março de 2010, sobre o tráfico de órgãos no Kosovo. A reação imediata às perguntas feitas pelo jornalista Budimir Nicic, foi uma sonora gargalhada. O vídeo da resposta de K pode ser assistido em francês.

Segue-se a tradução da resposta dada por K ao jornalista, após a gargalhada: “mas você está doente não está? Você é insano, não fique dizendo absurdos como este. Não posso acreditar que alguém faça uma pergunta tão absurda como esta”. E continuando: “o que é a casa amarela? Por que amarela? Você deveria consultar (um médico psiquiatra). Não havia casa amarela, não havia comércio de órgãos. As pessoas que falam coisas assim são lixo ou assassinos”.

Seguindo-se à publicação das memórias de del Ponte em 2008, a Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa, PACE, solicitou ao representante suíço, senador Dick Marty, uma investigação sobre as denúncias de tráfico de órgãos no Kosovo, e a elaboração de um relatório oficial. Com a divulgação do Relatório Marty em dezembro de 2010, as chocantes revelações sobre tráfico de órgãos humanos passaram a ser amplamente conhecidas. Assim, ainda em dezembro, o periódico britânico Daily Mail pôde estampar a notícia: “Primeiro ministro do Kosovo era um chefe da máfia que roubava órgãos humanos de prisioneiros sérvios para lucrar com a venda”. 

As investigações conduzidas por Marty haviam sido dificultadas pelas ameaças à integridade de testemunhas e suas famílias, e pela não colaboração por parte da Albânia. Na ocasião da publicação do relatório, cerca de 2.000 pessoas de todas as nacionalidades continuavam desaparecidas no Kosovo, não apenas pela ação das milícias albanesas, mas também por paramilitares sérvios durante a guerra. A foto que é apresentada na abertura deste artigo se refere, em particular, a um protesto relacionado ao desaparecimento de kosovares albaneses praticado por sérvios.

O relatório elaborado por Marty, e aprovado pelo PACE em janeiro de 2011, mostrou que a investigação conseguira reunir amplas provas, de que o KLA havia de fato operado uma rede de casas seguras em território albanês, durante e após a guerra da OTAN. Estas casas foram usadas para interrogar, torturar e, por vezes, assassinar prisioneiros, cujos órgãos eram removidos para alimentar o tráfico. Consta no parágrafo 156 do Relatório: “os cativos que foram vítimas do crime organizado incluíam pessoas levadas para a Albânia Central, para serem mortos, imediatamente antes de terem seus rins removidos em uma clínica”.

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Locais na Albânia para detenção pelo KLA, durante e após a guerra, e a rota dos cativos kosovares para a clínica de extração de órgãos /  Relatório Marty

Em dezembro de 2010, Stu Kellock  declarou à rede de televisão RTS, de Belgrado: “não posso atestar que Kouchner soubesse do tráfico de órgãos, mas não existe qualquer possibilidade de que ele não tivesse informação sobre o crime organizado no Kosovo”. Kellock também relatou que durante seu período de atuação, “havia rumores de tráfico de órgãos, mas as prioridades eram muitas, e pouco pessoal para se poder conduzir uma investigação com base apenas em rumores”.

De acordo com documentos secretos da OTAN publicados pelo The Guardian em  janeiro de 2011, os EUA e países do Ocidente tinham pleno conhecimento das atividades criminosas praticadas pelo governo do Kosovo, e que Thaci era “o peixe grande” do crime organizado em seu país. 

O Conselho da Europa deliberou que as autoridades do Kosovo e da Albania deveriam investigar as alegações de tráfico de órgãos, bem como, que a missão da UE no Kosovo (Eulex) deveria se envolver com as investigações. Mas, em novembro de 2014, Eulex foi acusada de diversas vezes encerrar, indevidamente, investigações contra líderes kosovares, e de corrupção interna de seus próprios membros. 

Assim, apesar da ampla repercussão que o Relatório Marty alcançara na mídia, não foram tomadas medidas efetivas para punir as lideranças responsáveis pela rede criminosa, e expor seus apoiadores na elite política do Ocidente. E Thaçi, que fora conhecido como “a serpente”, quando no comando do KLA, pôde, então, chegar à presidência do Kosovo, em 2016.

Em março de 2016, o diário francês Le Figaro relatou que K poderia ser chamado para depor sobre os crimes cometidos pelo KLA/KPC. O periódico observou que K “sempre negou ter fechado os olhos para os crimes do KLA para assegurar impunidade para os líderes da guerrilha da etnia albanesa”. Le Figaro acrescentou ainda, que uma corte especial poderia indiciar o presidente Hashim Thaçi, para responder por sérias alegações de maus tratos a prisioneiros sérvios e ciganos.

Em entrevista de janeiro de 2019, Dick Marty foi perguntado se o judiciário podia ser confiável na elucidação das responsabilidades sobre os desaparecimentos no Kosovo, tendo em vista que Geoffrey Nice assumira como um dos principais defensores dos líderes de Kosovo. Nice anteriormente atuara como promotor no Tribunal Internacional Penal para a Iugoslávia, em Haia, e era suspeito de ter ocultado evidências sobre a “casa amarela” (coletadas quando da investigação do jornalista Montgomery). Sua atuação na acusação contra Slobodan Milosevic, em Haia, já foi amplamente descrita em artigo do blogue. Para o blogue, fazendo um trocadilho, o comportamento de Nice não foi nada “nice” (decente). 

Para Marty, é totalmente incompreensível que Nice, como sub-promotor chefe em Haia, assumisse como advogado de defesa dos suspeitos do Kosovo. “É no mínimo bizarro para mim. Sob o ponto de vista legal é possível, mas do ponto de vista ético, considero suspeito”, acrescenta ele. E prosseguindo: “sei que existiam evidências. O jornalista Anthony Montgomery (já mencionado neste artigo) estava presente quando investigadores do Tribunal de Haia estiveram na ‘casa amarela’ coletando evidências, por sinal de forma extremamente amadora. Não analisaram as amostras de sangue. Eles encontraram drogas, seringas e muito mais, e tudo isto foi trancafiado no tribunal”.

Marty declarou ainda ao entrevistador: “Você está naturalmente familiarizado com o caso de Ramush Haradinaj, ex-comandante do KLA, perante a Corte Internacional de Justiça. As testemunhas desapareciam todas as vezes. Ocorreram mortes misteriosas. Posso entender que elas tenham medo. Eu mesmo presenciei que as pessoas estão aterrorizadas. Temem por suas vidas e de seus familiares”.

Em julho de 2019, Ramush Haradinaj, já como primeiro-ministro do Kosovo, foi novamente convocado a depor perante a Corte Internacional, em Haia. A convocação está relacionada com crimes comuns cometidos pelo KLA/KPC. Será que desta vez haverá testemunhas contra ele?

O que se espera agora, se a busca da verdade for realmente primordial, é que o Relatório Marty seja plenamente resgatado, e que os indiciamentos levem ao julgamento e à condenação dos responsáveis pelos crimes cometidos, inclusive de autoridades e políticos do Ocidente que tenham sido coniventes com os crimes cometidos. Diana Johnstone acredita que K é dos que mais temem que o Relatório Marty volte a ficar em evidência.

Dentre os políticos do Ocidente que estiveram altamente comprometidos no apoio a Thaci e ao KLA, se incluem o ex-primeiro-ministro inglês Tony Blair, e as ex-secretárias de estado norte-americanas, Madeleine Albright (administração Clinton) e Hillary Clinton (administração Obama). Mas as autoridades norte-americanas já estão acostumadas a agir impunemente, e não devem estar minimamente preocupadas com a possibilidade de serem responsabilizadas.

Em artigo de agosto de 2019, o jornalista Grey Carter publicou que os assassinatos em massa de sérvios para a retirada de órgãos não teriam começado no Kosovo, e sim na Krajina, enclave sérvio na Croácia, após 1995, com a ocupação pela Croácia. Crimes desta natureza também teriam ocorrido na Bósnia e Herzegovina, após a separação da Federação Iugoslava.

Para o jornalista, K está totalmente comprometido com os crimes no Kosovo. Carter considera ainda, que a investigação conduzida por Eulex, a missão da UE no Kosovo, teria sido propositadamente deturpada, para levar a um julgamento que atendesse aos interesses dos EUA e UE, enganando assim a opinião pública, de que algo estava sendo feito para apurar do caso. No indiciamento, o crime mencionado foi de compra de rins de pessoas que precisavam desesperadamente de dinheiro, uma completa deturpação do Relatório Marty.

Finalizando, o Parlamento do Kosovo decidiu, recentemente, transformar a Força de Segurança em Exército Nacional, consistindo de 5.000 militares na ativa e 3.000 na reserva. A Alemanha esteve apoiando ativamente a criação do Exército do Kosovo e sua integração à OTAN. O Kosovo não foi ainda aceito na União Européia e na ONU. Caso seja, será o primeiro caso de um Estado da Máfia com reconhecimento internacional pleno. K, o grande médico humanitarista deu importante contribuição para isto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dr. Kouchner e o Sr. Hyde: o médico e o monstro? Parte 2 – As intervenções militares humanitárias

Por Ruben Rosenthal

Kouchner e Hillary
Dr. Kouchner e seu alter ego feminino, a sra. Clinton     /   Foto David Karp / AP

Foi com os bombardeios da ex-Iugoslávia pela OTAN em 1999, em violação ao direito internacional, que Bernard Kouchner pôde ver coroada sua ideologia, em que a soberania dos Estados não representasse obstáculo ao “direito de intervenção humanitária”. Uma nova forma de colonialismo passou a se impor?

A primeira parte do artigo focou na atuação de Kouchner ( “K) como médico humanitarista, no período até o final da década de 80. Inicialmente com Médicos Sem Fronteiras (MSF), e depois com Médicos do Mundo (MDM), ele e seus colegas prestaram atendimento às populações necessitadas, em regiões de conflito bélico ou de ocorrência de catástrofes naturais.

K e os outros médicos franceses fundadores de MSF eram altamente críticos da completa neutralidade das agências tradicionais de ajuda, como a Cruz Vermelha Internacional, por estas respeitarem as convenções internacionais, o que por vezes dificultava o atendimento em regiões de conflito. K defendia que os agentes de saúde deveriam quebrar regras e cruzar fronteiras de países, mesmo que ilegalmente, para prestar socorro às vítimas. Conforme sua declaração, “agentes de saúde que cruzam fronteiras não se comportam como colonialistas, porque chegam a pedido, ….para proteger os mais fracos e necessitados”. K soube fazer uso da mídia para chamar atenção para as causas que defendia, ao ponto de se incompatibilizar com MSF, e decidir deixar a organização que ajudara a fundar, para formar MDM, em 1980.

K aproveitou seu cargo, como Ministro da Saúde e Ação Humanitária no governo Mitterrand, para promover sua doutrina de “intervenção militar humanitária”, conseguindo fazer com que ela fosse introduzida em diversas resoluções da ONU, e colocada em prática por tropas do Ocidente no Curdistão iraquiano, na Somália e em Ruanda, no começo dos anos 90. No final da década, a doutrina serviu de pretexto para o bombardeio da Iugoslávia, e, já nos anos 2000, nas intervenções no Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria. No entanto, falsos argumentos já foram várias vezes utilizados, para mobilizar a mídia e a opinião pública a favor das intervenções externas.

As bolas da vez agora, são a Venezuela e o Irã. E quem sabe, o Brasil, em um futuro não muito distante, caso os povos indígenas continuem a ser submetidos à políticas governamentais que efetivamente tem ameaçado suas vidas e seus meios de subsistência, e que podem muito bem ser consideradas como ações de extermínio ou de “limpeza étnica”. Ou mesmo, que questões de preservação ambiental, como na Amazônia, possam oferecer o pretexto para a intervenção.  

O direito à intervenção humanitária foi introduzido oficialmente, como novo “conceito estratégico da OTAN”, no aniversário de 50 anos da organização, em abril de 1999, em meio à guerra nos Bálcãs.  O bombardeio da Iugoslávia é até hoje saudado como um triunfo para “a justiça internacional” sobre o direito tradicional de soberania dos Estados. Entretanto, os ataques se deram em flagrante violação da lei internacional, pois os mesmos foram realizados sem autorização prévia do Conselho de Segurança da ONU. As decisões da OTAN passaram a não se subordinar a qualquer órgão internacional.

Esta nova “ideologia” representou, praticamente, um retorno às condições que prevaleceram com a Paz de Vestfália, de 1648, quando houve o reconhecimento formal do princípio de soberania territorial, contra as ingerências do Papado, segundo David Chandler, em artigo no New Left Review. O sistema Vestfaliano, no entanto, nunca consistiu em impedimento para o uso da força contra os Estados mais fracos. Mesmo séculos depois, com o advento da Carta da ONU de 1945, o pleno direito de soberania não foi alcançado na prática, pois, apesar da igualdade de voto dos Estados membros na Assembléia Geral, as decisões do Conselho de Segurança são mandatórias.

A seguir, vamos acompanhar a carreira política de K, através da qual ele pôde melhor contribuir para que sua ideologia intervencionista ganhasse reconhecimento, e se tornasse consenso no Ocidente.

Em 1988, K se tornou Secretário de Estado para Ação Humanitária, no governo socialista do presidente François Mitterrand. Em 1988, ele foi co-autor da resolução 43/131, aprovada na ONU, estabelecendo o direito de intervenção externa em um país, no caso de desastres naturais ou emergência. Em 1990, K conseguiu aprovar outra resolução, que estabelecia “corredores humanitários” de ajuda às vítimas, se sobrepondo à soberania dos Estados. 

Em 1991, K apoiou a primeira Guerra do Golfo, atacando os pacifistas na imprensa, apesar da impopularidade desta guerra na França. O fato dos bombardeios da coalizão ocidental no Iraque terem causado uma catástrofe humanitária, foi para ele irrelevante. Como, mesmo com a vitória da coalizão no golfo, o “novo Hitler” Sadam manteve-se no poder, K foi co-autor de uma resolução direcionada ao Conselho de Segurança da ONU, autorizando a continuidade das ações militares para ajudar os curdos. Foram também estabelecidas “zonas de restrição aérea” e regiões de “refúgio seguro”. Desta forma, os bombardeios anglo-americanos no Iraque prosseguiram durante os anos 90.

De 1992 a 1993, K atuou como Ministro da Saúde e Ação Humanitária, ainda sob a presidência de Miterrand. Em dezembro de 1992, quando a Somália atravessava um “genocídio pela fome”, K organizou uma campanha de coleta de arroz nas escolas da França, e, pouco depois, ele aparecia, de forma midiática, carregando sacos de arroz nas costas, em uma praia da Somália. Rony Brauman, então presidente do MSF, considerou a foto indecente. No mesmo dia do evento na praia, os marines norte-americanos desembarcavam para uma operação militar no país, gerando uma onda de saques e atos de vandalismo. Uma ampla descrição dos eventos ocorridos na Somália pode ser vista na publicação do MSF Somalia 1991-1993: Civil War, Famine Alert and a UN ‘Military-Humanitarian’  Intervention 1992-1993”.

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Kouchner e a campanha do arroz para a Somália  /   Foto Eric Feferberg / Getty Images

Alain Destexhe, secretário geral do MSF declarou: “para Kouchner e outros, a intervenção americana (na Somália) confirma o ‘direito de intervir’ com uma motivação humanitária. No MSF, concordamos todos, que não se tratava de uma intervenção humanitária, mas nossa posição não apareceu nas manchetes. Estávamos contra a maré”.

Em 1993, MDM, a organização fundada por K quando deixou MSF, realizou uma intensa campanha demonizando os sérvios e Slobodan Milosevic, então presidente da Iugoslávia, conforme já descrito detalhadamente em artigo anterior do blogue. As comparações de Milosevic a Hitler e os milhares de cartazes, comparando os campos dos prisioneiros bósnios muçulmanos (bosniaks) a campos nazistas de extermínio, serviram para predispor a opinião pública do Ocidente, inclusive vários setores da esquerda, para os futuros bombardeios pela OTAN, em 1995, contra alvos sérvios na Bósnia, e, em 1999, contra a Iugoslávia,  quando a situação no Kosovo se agravou.

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Campanha de Médicos do Mundo, 1993  /  Foto Georges Merillon/Gamma-Rapho

De 1994 a 1997, K atuou no parlamento europeu, onde, dentre outras atribuições, participou no sub-comitê de direitos humanos.

Em 1994, as posições de K quanto ao genocídio em Ruanda trouxeram a ele muitos desafetos na França. O veterano jornalista Pierre Péan, escreveu o livro “Le Monde Selon K” (O mundo segundo K), em que denuncia que as mortes em Ruanda não foram apenas cometidas por Hutus contra Tutsis, mas que o reverso também ocorreu de forma generalizada. Em particular, Péan cita o caso de uma vila, onde K afirmara que Tutsis haviam sido massacrados, e, na verdade, os Tutsis haviam sido os criminosos. K havia invertido vítima e criminoso.

Em outubro de 1995, a OTAN realizou ataques contra alvos sérvios na Bósnia, seguindo-se à já mencionada campanha de MDM na mídia. K sabia muito bem que as alegações de campos de “purificação étnica” eram falsas, porque ele mesmo visitara os campos de prisioneiros geridos pelos sérvios da Bósnia, em agosto de 1992. Só em 2004, K reconheceu que os campos de prisioneiros não eram de extermínio, em seu livro “Les guerriers de la paix” (Os guerreiros da paz).

De 1997 a 1999, K atuou pela segunda vez como Ministro da Saúde em um governo do PS. Em maio de 1999, sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, tropas da OTAN bombardearam Belgrado por 77 dias. A OTAN defendeu a destruição da televisão estatal em Belgrado, por ser um “alvo legítimo e um centro de mentiras”. Segundo a BBC News, a Corte Européia de Direitos Humanos chegou a deliberar se a OTAN deveria ir a julgamento pela ação que levou à morte de 16 pessoas. 

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Televisão estatal iugoslava bombardeada pela OTAN em 1999    / Foto BBC News

Em 1999, MSF ganhou o Prêmio Nobel da Paz, como uma forma de se homenagear K, o fundador da organização, e mentor intelectual do “direito à intervenção”, mesmo que MSF não mais compartilhasse dos mesmos ideais de K. Em julho de 1999, como recompensa por seus esforços ideológicos, K foi indicado pelo Secretário Geral da ONU, Kofi Annan,  para Representante Especial da ONU no Kosovo, e Chefe da Administração Interina da ONU no Kosovo (UNMIK), permanecendo até 2001, por um total de 18 meses. Este período de K no Kosovo será o assunto da terceira e última parte desta série. Em outubro do mesmo ano, K reiterou o direito à intervenção militar humanitária, em entrevista ao Los Angeles Times

K foi novamente Ministro da Saúde no governo do PS, entre 2001 a 2002. Em 2003, ocorreu a invasão do Iraque. Já fora do governo, K deu apoio moral à invasão do Iraque, alegando que “as vozes do povo iraquiano tinham que ser ouvidas”. Conforme expresso em seu livro Les guerriers de la paix, K interpretou a situação de forma diferente do governo francês e dos intelectuais europeus, enfatizando que o Iraque atendia a dois critérios que justificavam o direito de intervenção: o povo iraquiano queria ser resgatado e libertado, e Saddam era um líder indigno do respeito da comunidade internacional”, e que (supostamente) teria matado 500.000 pessoas de seu próprio povo, de acordo com Saïd K. Aburish, em seu livro “Le vrai Saddam Hussein” (O verdadeiro Saddam Hussein).

Embora tenha expressado seu apoio à deposição de Saddam, K se opunha à estratégia da Administração Bush, conforme artigo no Le Monde, intitulado “Ni la guerre ni Sadam” (Nem a guerra nem Sadam). Ele culpou a Bush por ter ido à guerra sem antes ter forjado uma real aliança na ONU, como também por conduzir mal o pós-guerra.

Uma das consequências da identificação da causa humanitária com os interesses das potências ocidentais, foi trazer  risco aos agentes humanitários e da ONU, como evidenciado pelo bombardeio da Missão da ONU em Bagdá, em agosto de 2003, quando morreram 23 pessoas, inclusive o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, Representante Especial da ONU no Iraque. Em outubro do mesmo ano foi atacada a sede da Cruz Vermelha Internacional em Bagdá.

Em 2005, a Assembléia Geral da ONU endossou um novo conceito humanitário, a Responsabilidade de Proteger (R2P), consistindo de uma série de princípios, com base na ideia de que a soberania não é um privilégio, e sim, uma responsabilidade. Se um Estado não proteger seus cidadãos de atrocidades, a comunidade internacional tem a responsabilidade de agir, mesmo usando da força, se o Conselho de Segurança assim decidir. Respeitada a condição de ratificação prévia pelo Conselho da ONU, R2P não difere do “direito à intervenção humanitária”, defendido por K. 

Em 2005, K foi candidato ao Alto Comissariado da ONU para Refugiados, perdendo a indicação para Antonio Guterres, atual Secretário Geral da Organização. Em 2006, K foi candidato a diretor-geral da OMS, não se elegendo.

De 2007 a 2010, K atuou como Ministro das Relações Exteriores do Governo de direita de Nicolas Sarkozy, sendo, por este motivo, expulso do PS. Em sua atuação como ministro, em pronunciamento de setembro de 2007 sobre a questão nuclear no Irã, K declarou que “devemos nos preparar para o pior… a guerra com o Irã”, gerando uma reação enérgica do porta-voz iraniano. No intuito de reduzir as tensões, o próprio ministro francês, François Fillon se pronunciou, bem como Mohamed El Baradei, então diretor geral da Agência Internacional de Energia Atômica, segundo artigo no Deutsche Welle. Coube, então, ao escritor Philip Hammond, perguntar no título de seu artigo, se referindo a K: “é este o homem mais perigoso da Europa?”.

A resposta à indagação de Hammond ficou bastante evidente alguns anos depois. Em março de 2011, uma coalizão de países da OTAN iniciou uma intervenção militar na Líbia, para implementar a resolução 1973  do Conselho de Segurança, que fora aprovada por 10 votos a favor, nenhum contra, e 5 abstenções – da Alemanha, Brasil, China, Índia e Rússia. Mesmo autorizando o uso da força, a resolução sublinhava a necessidade de intensificarem-se esforços que levassem às reformas políticas necessárias, para uma solução pacífica e sustentável.

A intenção do voto fora a de obter “um imediato cessar fogo na Líbia”, mas a intervenção foi bem mais além, levando à morte de Kadhafi e à completa desestabilização do país, abrindo um vácuo de poder que possibilitou a entrada do ISIS. A Líbia, que tinha padrões de desenvolvimento relativamente avançados, regrediu dezenas de anos, com a destruição que se seguiu. Em artigo publicado no The Guardian, K defendeu a moralidade da intervenção: “poderíamos continuar a ver em nossas televisões as imagens das mortes das vítimas de Kadhafi?”

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Tropas do ISIS na Líbia    /   Foto El País

Entretanto, segundo artigo recente publicado no Global Research, mensagens por e.mail de Hillary Clinton, então Secretária de Estado de Obama, e que vieram à luz posteriormente, revelaram o real motivo da intervenção. O objetivo seria o de bloquear o plano de Kadhafi de usar o Fundo Soberano*, derivado dos recursos provenientes do petróleo, para criar órgãos financeiros autônomos pela União Africana, além de uma moeda africana, como alternativa ao dólar e ao franco francês. A sra. Clinton, alter ego feminino de K, convenceu Obama a autorizar operações clandestinas na Líbia, e a fornecer armas aos rebeldes.

Mesmo estando fora de cargos oficiais de governo desde 2010, K pôde contemplar que a sua doutrina,  já então plenamente estabelecida através da resolução RP2 da ONU, não mais dependia de suas ações diretas. Mesmo que o Conselho de Segurança não concedesse a autorização requerida para a intervenção, a OTAN já considerava  que esta era desnecessária, desde o seu aniversário de 50 anos em 1999.  

Nos últimos anos, a Síria foi alvo de repetidos ataques aéreos por parte dos Estados Unidos e da OTAN. O argumento utilizado  tem sido, principalmente, o uso de armas químicas pelo governo de Bashar al Assad.  Em 2013, a acusação, pela oposição síria e seus aliados no mundo árabe e no Ocidente, foi do uso de gás sarin em civis em Goutha, o que foi rechaçado pelo governo Sírio, que argumentou que o ataque fora conduzido pelos rebeldes.

A intervenção militar externa só foi evitada com a concordância do governo, na destruição de todo o estoque de armas químicas, e em assinar a Convenção de Armas Químicas. Entretanto, novas suspeitas surgiram do uso de gás sarin e de cloro contra populações civis.  Em abril de 2017, já no governo Trump, a retaliação norte-americana foi através do lançamento de 59 mísseis Tomahawk. Em abril de 2018, Estados Unidos, França e Reino Unido conduziram uma série de ataques por mísseis contra vários alvos do governo sírio, em resposta ao suposto uso de agentes químicos em Douma. 

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Mísseis Cruise lançados de fragata francesa / Foto AFP / ECPAD

Nos dois casos citados, o governo Sírio alega que as acusações eram falsas, e que os ataques se deram  em violação à lei internacional, pois ocorreram sem aprovação do Conselho de Segurança da ONU. Em artigo anterior deste blogue, foi denunciado que o relatório final da OPAQ, a Organização para Proibição de Armas Químicas, havia sido manipulado com o intuito de tentar comprovar o envolvimento do governo de Assad no uso de armas químicas em Douma. A manobra fora exposta com o vazamento recente de um relatório interno, elaborado pelo grupo técnico de engenheiros da OPAQ. Embora esta revelação não garanta um “atestado de boa conduta” ao governo sírio, neste e nos outros casos citados, é no entanto um forte indício que existe um grau de deturpação nas informações veiculadas na mídia.

Em reportagem de junho de 2019, o jornalista Max Blumenthal denuncia que o grupo “Rede Síria de Direitos Humanos”, baseado no Catar, e que monitora ações do governo de Hassad, é financiado por governos estrangeiros. A Rede tem feito lobby pela “imediata intervenção” militar na Síria de uma coalizão internacional, citando como exemplo, o bombardeio da Iugoslávia pela OTAN em 1999, que ocorrera sem aprovação do Conselho de Segurança da ONU. Os principais jornais norte-americanos, as organizações internacionais de direitos humanos, e mesmo governos, têm repercutido os relatórios dúbios da Rede, sem nunca terem questionado qual a sua relação com a oposição armada na Síria e a origem dos recursos de financiamento, acrescentou Blumenthal. 

Atualmente, mesmo sem cargo no governo francês, K continua a insuflar o belicismo, desta vez contra o Irã, como em seu discurso na Albânia (vídeo em inglês), em julho de 2019, pela mudança do sistema político iraniano: “Os mulás (religiosos) são assassinos. Eles são a origem de todos os ataques terroristas, e estamos prontos para livrar este povo (iraniano) deste terrível sistema religioso”. Tratava-se de evento anual promovido pelo MEK, uma organização associada aos Mujahideen, que lutaram na revolução dos anos 70, contra o regime do Xá do Irã, Mohammad Reza Pahlavi, déspota  então apoiado pelos EUA.

A organização posteriormente rompeu com o regime dos Aiatolás, e se associou ao Iraque e aos norte-americanos, na guerra de 8 anos contra seu próprio país. MEK deixou de ser considerada uma organização terrorista e passou a aliada dos Estados Unidos, pela ação de Dick Cheney, o controverso vice-presidente de Bush, e é, atualmente, aliada de Trump contra o Irã, conforme análise no The Guardian.

K continua desempregado, mas permanece ativo na defesa do intervencionismo militar humanitário, para o bem e para o mal.

* Qualquer associação com o que aconteceu no Brasil, por ingerência norte-americana, em seguida à criação de um Fundo Soberano do petróleo pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, e à formação do banco dos BRICS, no governo de Dilma Rousseff, pode ser mais do que mera coincidência.

No próximo e último artigo da série, será abordado o período em que K atuou como como representante da ONU no Kosovo, de 1999 a 2001. Alguns fantasmas daquela época podem voltar agora para assombrar K, e  talvez ele venha a ser acusado de conivência com uma organização criminosa, envolvida inclusive com o tráfico de órgãos humanos. Aí poderemos ver se a Corte Internacional de Justiça, em Haia, será imparcial ao julgar uma (ou mais) das lideranças do Ocidente.

 

 

Dr. Kouchner e o Sr. Hyde: o médico e o monstro? Parte 1 – o médico humanitarista

Por Ruben Rosenthal

Bernard Kouchner, co-fundador da organização Médicos Sem Fronteiras, em seu alter ego amoral, se tornou o mentor intelectual de intervenções militares criminosas pela OTAN, com consequências devastadores para muitos países.

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No livro do escocês Robert Louis Stevenson, publicado originalmente em 1886, e tendo como cenário a nevoenta Londres, o respeitado médico, Dr. Jekyll, passa por uma metamorfose física e moral, que o transforma em um assassino contumaz, o senhor Hyde. Na França do final do século 20 e início do 21, Kouchner, refinado médico e humanitarista,  co-fundador das organizações Médicos Sem Fronteiras e Médicos do Mundo, em seu alter ego amoral (ou imoral?), se tornou o mentor intelectual de intervenções militares criminosas pela OTAN, com consequências devastadores para muitos países. Além disto, o francês teve o seu nome associado ao tráfico internacional de órgãos em Kosovo, e poderá ver ainda, em vida, sua responsabilidade comprovada. 

Este primeiro artigo  foi baseado principalmente no texto de Philip Hammond, escritor e professor  britânico, intitulado “Bernard Kouchner é o homem mais perigoso da Europa?”. Será analisado o começo da trajetória de Kouchner, indo até o final dos anos 80, período em que sua atuação foi essencialmente como médico humanitarista, embora o viés político e midiático já estivesse presente. No restante do atual artigo, Kouchner será referido apenas como “K”. 

O início. Conforme consta no relato de Hammond, K orgulha-se ainda de ter sido um dos jovens rebeldes que estiveram na linha de frente da revolta estudantil de maio de 68, na França. Ele contava então com 29 anos, e era um pouco mais velho que alguns dos líderes, e com uma origem mais convencional na esquerda, por ter se envolvido com o PCF, do qual fora expulso por planejar um golpe interno. Mas poucos destes jovens radicais de 68 tinham sérias expectativas de encontrar “em casa”, uma causa impactante, como a da geração dos resistentes à ocupação nazista. A culpa recaía sobre o consumismo do boom econômico pós-guerra mundial, visto como o aburguesamento da classe operária ocidental.

Sem a proximidade de uma revolução, estes jovens olharam para as lutas de libertação colonial no Terceiro Mundo, como as da África, Indochina e outras. Dentro deste espírito, K se apresentou à embaixada cubana em Paris, em 1960, para ir em defesa de Fidel Castro e Che Guevara. A oferta foi recusada, e, ainda em 68, menos de 6 meses após os eventos de maio, K foi como médico voluntário  para a guerra civil na Nigéria, onde Biafra havia declarado sua independência no ano anterior. A França apoiava Biafra, enquanto que a Inglaterra defendia a manutenção da integridade territorial da Nigéria, sua ex-colônia.

O governo nigeriano impusera um bloqueio aos separatistas, que resultou em fome generalizada. K ficou chocado que a Cruz Vermelha respeitasse a soberania nigeriana, e a estrita aderência ao princípio na neutralidade humanitária, o que o proibia, e a seus colegas médicos, de se pronunciarem contra “o genocídio pela fome”. Parecia a ele, uma repetição do silêncio mantido pela organização em relação aos campos nazistas. K considerava que, ao se manterem em silêncio, “os médicos estariam sendo cúmplices do massacre sistemático da população Ibo”. 

De volta a França, ele estabeleceu o Comitê Contra o Genocídio em Biafra, que deu origem, em 1971, à organização Médicos Sem Fronteira, da qual foi co-fundador. MSF seria diferente da Cruz Vermelha, pois seus agentes não deixariam de agir, e não ficariam em silêncio, face à constatação de atrocidades sendo cometidas.

Mas a verdade sobre a história de Biafra é um pouco diferente da que fora denunciada por K. Ocorria, certamente, grande sofrimento da população Ibo, mas não havia genocídio ou perseguições em áreas controladas pelo governo central. É o que relata Fiona Terry, ex-diretora de pesquisa de MSF e, atualmente, chefe do centro de pesquisa operacional do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (ICRC). K e seus colegas simplesmente não consideraram que estavam no meio de uma guerra civil.

Pouco tempo depois, em 1980, K deixou MSF, para fundar uma ONG menor, Médicos do Mundo, juntamente com 15 médicos franceses. MDM surgiu a partir da campanha de K, “um barco para o Vietnam”, que visava recolher refugiados vietnamitas no mar da China, que fugiam do governo comunista. Seus colegas do MSF consideraram que a ação era essencialmente midiática, e não aderiram à causa.  

K justificava a relevância de se chamar a atenção da mídia, como forma de compelir Estados a aderirem à ações humanitárias. Em 1979, ele partiu em sua “ambulância marítima”, Ile de Lumière (Ilha da Luz), para o Mar da China. Um vídeo de cerca de 2 minutos, falado em francês, e mostrando a operação de recolhimento de refugiados no mar e algumas entrevistas, pode ser acessado aqui

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Kouchner recolhe refugiados vietnamitas no mar da China       Foto Jacques Pavlovsky/Sygma/Getty Images

O então presidente Jimmy Carter ficou tão impressionado com a visão do barco de K, que enviou a marinha norte-americana para ajudar no resgate do “boat people”. Isto possibilitou que os militares dos EUA aparecessem como salvadores de vietnamitas, poucos anos após as inomináveis atrocidades cometidas pelas tropas norte-americanas, no próprio Vietnam.

Nos anos 80, já através de MDM, sua nova organização, K participou de atendimentos médicos em diversas regiões do mundo que passavam por crises humanitárias. De 1983 a 1985, em meio a uma situação de conflitos internos, a Etiópia atravessou uma crise generalizada de fome, com todas as consequências que decorrem em casos de desnutrição aguda.  E lá estava K, conforme mostrado na  foto de Sebastião Salgado.

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Kouchner presta atendimento na Etiópia    Foto Sebastião Salgado/Amazonas Imagens

No final da década, com a queda do muro de Berlim, o “direito à intervenção” ganhou força. Para a elite ocidental, privada de seu inimigo da “guerra fria”, o humanitarismo ofereceu um novo sentido de missão. O mundo estava pronto para K, e K estava pronto para brilhar no mundo. Na nova era, que se iniciou essencialmente na década de 90, a soberania nacional de países fora do Ocidente deixou de ser respeitada, diversas vezes com base  em falsas alegações de limpeza étnica, genocídios e perseguições. As consequências das intervenções foram devastadoras, em vários casos.  Para muitos críticos, uma nova forma de colonialismo se iniciou, com o advento da intervenção humanitária. 

No próximo artigo da série, será mostrada a atuação direta de K na política, inicialmente no Parlamento Europeu, e depois em posições ministeriais no governo francês, tanto em governos de esquerda como de direita. Uma vez dentro do círculo de poder, ele pôde melhor implementar sua ideologia intervencionista. 

 

 

 

 

 

Campos de Prisioneiros ou de Extermínio na Bósnia?  Contratar um bom RP faz a diferença.

Por Ruben Rosenthal

O ex-presidente muçulmano da Bósnia, Alija Izetbegovic, pouco antes de sua morte, declarou que mentira, em 1992, ao confirmar a existência de campos de extermínio controlados pelos sérvios bósnios, com o objetivo da OTAN bombardear os sérvios. A empresa de relações públicas contratada completou o serviço, ao comparar estes campos com os nazistas.

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Campo de Manjaca: prisioneiros em estábulo / Foto Geilert – Ag. Caro

O atual artigo é o terceiro da série Revisitando os Conflitos e a Fragmentação da Iugoslávia. O primeiro, abordou o massacre em Srebrenica, e o segundo, o julgamento de Slobodan Milosevic, que havia sido presidente da Sérvia, e, posteriormente, da Iugoslávia.

Na República da Bósnia e Herzegovina, antes dos conflitos do início da década de 90, viviam em relativa harmonia, 4 milhões e 377 mil habitantes, de acordo com a seguinte demografia  (percentual da população), muçulmanos (44%), sérvios (32%) e croatas (17%). Com a exacerbação dos nacionalismos, os conflitos armados se disseminaram. Os relatos a seguir são de Edward Herman,  um forte crítico das ações do Ocidente e da OTAN, que levaram à fragmentação da Iugoslávia.

Os campos de prisioneiros controlados por sérvios foram denominados pela mídia de “campos de concentração”, comparando-os aos campos de extermínio nazistas, como Auschwitz. Alegações desta natureza partiram de jornalistas, que por vezes basearam seus artigos apenas em informações fornecidas por croatas e muçulmanos. Estas acusações contribuíram para a formação do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, em 1993, por determinação dos países da OTAN.

No entanto, anos depois (em 2004) ocorreu o seguinte diálogo entre o ex-presidente muçulmano da Bósnia, Alija Izetbegovic, já próximo da morte, e o médico e político Bernard Kouchner, relatadas no livro de Kouchner, “Les guerriers de la paix” (Os guerreiros da paz).

-Kouchner: “aqueles locais eram horríveis, mas não eram de consistente extermínio. Você sabia disto?”.                                                                             -Izetbegovic: “Sim. Era falsa a acusação. Não existiam campos de extermínio, mesmo sendo horríveis aqueles locais. Eu considerei que a minha denúncia iria apressar os bombardeios (da OTAN)”.

Kouchner, que fora ministro da saúde e ação humanitária no governo do presidente socialista Mitterrand, e das relações exteriores, na presidência do direitista Sakorzy, reafirma este diálogo em uma entrevista (em francês), que pode ser assistida em vídeoUma questão que pode ser levantada, é que Kouchner já teria conhecimento, desde 1992, que as acusações eram falsas, quando a organização humanitária, Médicins du Monde, por ele liderada, fez uma campanha (em 1993), com acusações de que os sérvios controlavam campos de extermínio. Esta entidade foi formada em 1980, a partir de um racha, comandado por Kouchner, na organização Médicos sem Fronteiras (Médicins sans Frontiers). 

Como ministro de Mitterrand, Kouchner teve a oportunidade de visitar diversos campos de prisioneiros na Bósnia, não apenas aqueles controlados por sérvios-bósnios. Em agosto de 1992, ele aceitou o convite recebido dos presidentes da República da Bósnia-Herzegovina e da Srpska, a República Sérvia da Bósnia, para vistoriar os campos de prisioneiros. No início de 1992, a Bósnia declarara sua independência da Iugoslávia, levando a que as províncias de maioria sérvia decidissem formar sua própria república.

Dos campos de prisioneiros geridos pelos sérvios, Koucher visitou a Manjaca, Omarska e Trnopolje, atendendo a sugestão do presidente muçulmano da Bósnia.  Segue-se um relato  das impressões de Kouchner sobre os locais visitados.

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Campo de Manjaca: alerta de minas no cartaz da cerca / Foto Patrick Robert /Sygma/Corbis

De Manjaca, a impressão foi ruim. A região no entorno do campo estava minada, para inibir as tentativas de fuga. Os prisioneiros em geral eram bastante magros, e na enfermaria do campo, cerca de 20 prisioneiros estavam em uma esteira. Kouchner relatou que alguns prisioneiros denunciaram a ocorrência de 6 mortes por disparos na semana anterior.

Em Omarska, que tinha a fama de ser também um campo de concentração, cerca de 200 prisioneiros estavam acomodados em prédios administrativos, mas a aparência geral era boa. Ali era um campo de transição, fosse para a liberdade ou para ir para Manjaca. Nenhum dos prisioneiros relatou tortura.

Trnopolje era um campo aberto, em que os prisioneiros podiam ir até a cidade comprar alimentos, desde que fosse com seu próprio dinheiro. A comida fornecida no campo era de boa qualidade, mas parca. Kouchner considerou ainda que campo poderia ficar inóspito no inverno. Foi neste campo que os jornalistas fotografaram Fikret Alic, e a foto percorreu o mundo, como será comentado mais adiante.

Na república da Bósnia e Herzegovina, Kouchner visitou a prisão central, onde estavam sérvios e muçulmanos. O tratamento dado aos prisioneiros pareceu razoável a ele. Entretanto, quando da visita à prisão militar de “Viktor Bubanj”, constatou que os prisioneiros sérvios pareciam esqueletos, se comparados aos muçulmanos em Manjaca, além de vários apresentarem marcas de espancamento. As celas de quatro metros quadrados acomodavam a 12 prisioneiros (homens). As mulheres, velhas e jovens, incluindo uma grávida, estavam acomodadas em outro piso. Kouchner planejava ir também ao campo de Bradina, controlado pelos Bósnios, mas conflitos na região impediram a inspeção.

A constatação das terríveis condições a que os sérvios estavam submetidos na prisão de “Viktor Bubanj” não alcançou a devida repercussão na mídia, revelando que a cobertura estava sendo tendenciosa. Em março de 2012, ex-guardas da prisão foram a julgamento em Saravejo, Bósnia, pelos abusos cometidos anteriormente contra prisioneiros sérvios.

Na Croácia, Kouchner deu uma entrevista aos jornalistas, ainda no aeroporto, quando disse que  não ter presenciado campos de concentração como o de Bergen-Belzen, da época em que os nazistas invadiram e ocuparam a Yugoslávia. Entretanto, disse ter presenciado “campos de ódio, vingança e vergonha”. No entanto, isto não impediu que a campanha de Médicins du Monde focasse apenas nos sérvios sua virulenta campanha, como será visto no decorrer do artigo.

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Uma das principais peças da campanha difamatória contra os sérvios foram as imagens tomadas em agosto de 1992, no campo de Trnopolje, por jornalistas britânicos da ITN e do The Guardian. Fotos mostrando o prisioneiro Fikret Alic, emaciado ao extremo devido à tuberculose, atrás de uma cerca de arame farpado no campo de Trnopolje, percorreram o mundo, em manchetes nos principais jornais e revistas. Vinte anos após a publicação da famosa foto, Fikret relatou, em entrevista ao London Times, que a reportagem e entrevistas trouxeram retaliações para os internos do campo: “precisei fugir, porque os guardas queriam me matar”, afirmou.


Os relatos que se seguem estão no livro de Diana Johnstone, “Fool’s Crusade: Yugoslavia, Nato and Western Delusions”. Em janeiro de 1993, a organização Médicins du Monde, usou as fotos de Fikret Alic no campo de Trnopolje em uma montagem, sugerindo que havia semelhança com um campo nazista. Os dizeres eram: “um campo onde eles purificam grupos étnicos não faz você lembrar de nada?”. Dezenas de milhares de cartazes foram espalhados pelas principais cidades da França. A entidade também financiou, durante 3 semanas, anúncios nos canais de TV, inclusive com a participação de artistas conhecidos, como Jane Birkin e Michel Piccoli, denunciando crimes sérvios contra a humanidade. Tudo ao custo de 2 milhões de dólares.

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Campanha de Médicos do Mundo  /  Foto Georges Merillon/Gamma-Rapho

Em 1993, os jornalistas Roy Gutman, no New York Newsday, e John Burns, do New york Times, ganharam o prêmio Pulitzer por suas reportagens sobre as supostas atrocidades cometidas por sérvios. Gutman entrevistou em Zagreb, capital da Croácia, a refugiados muçulmanos que relataram que os sérvios estavam conduzindo “campos de extermínio”. Burns entrevistara, em um filme financiado por George Soros, a Boris Herak, um sérvio bósnio (insano, segundo Johnstone), prisioneiro em Saravejo, que confessou atrocidades cometidas, algumas imaginárias, nos campos controlados pelos sérvios. Anos depois ele revelou que havia sido coagido e forçado a memorizar as declarações que deveria fazer.

Aproveitando a campanha de Médicins du Monde e os artigos iniciais que estavam saindo na mídia, empresas de relações públicas  contratadas por muçulmanos e croatas conseguiram colocar os sérvios como os únicos vilões da história, e responsáveis por crimes terríveis. A campanha na mídia culminou com a OTAN realizando ataques contra alvos sérvios na Bósnia, em novembro de 1995, levando ao Acordo de Paz de Dayton. Em 1999, a OTAN voltaria a fazer novos bombardeios, desta vez incluindo Belgrado, a capital da Iugoslávia.

No livro “Liar’s Poker: the great powers, Yugoslavia and the wars of the future”, o jornalista Michel Collon, examina e associa os eventos na Iuguslávia ao interesse da Alemanha e EUA em controlar as rotas do petróleo e áreas estratégicas, bem como analisa a campanha de desinformação da mídia. Na parte do livro em que trata dos campos de prisioneiros, cita que o jornalista alemão, Thomas Deichman, foi examinar o campo de Trnopolje, e verificou que ele nunca foi cercado por arame farpado. A cerca seria usada apenas para delimitar a área permitida aos fotógrafos. O jornalista analisou todo o material filmado pela ITN, e concluiu que as pessoas que estavam no campo não se encontravam detidas, sendo que muitos delas seriam refugiados que haviam pedido proteção contra milícias locais.

Analisando a reportagem que concedeu o Pulitzer a Gutman, Collon detectou várias inconsistências. Na reportagem publicada no New York Newsday, Gutman relatara que a informação que “Manjaca abrigava um campo de extermínio”, vinha do pessoal da embaixada americana. Collon considerou um contra-senso este relato, lembrando que foram as autoridades sérvias que sugeriram a Gutman que ele visitasse Manjaca, acompanhado da Cruz Vermelha.

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Campo de Manjaca:  flagrante da vida no campo / Foto Isabel Ellsen

Quanto aos campos de Omarska e Trnolpoje, Gutman só os visitou em setembro de 1992, após ter escrito seus artigos, com base em duas (supostas) testemunhas, acrescentou Collon. Sobre a reportagem da ITN no campo de Trnopolje, Collon salientou que a jornalista que usou a expressão “campo de concentração” explicou depois, que o termo foi usado porque, tecnicamente, prisioneiros estavam lá concentrados, e não como alusão aos campos de extermínio nazistas.  

Outro jornalista a questionar as notícias sobre campos de extermínio controlados pelos sérvios bósnios, e algumas das supostas atrocidades cometidas por sérvios, foi Jacques Merlino, do canal de TV França 2. Merlino descreve em seu livro  “Les verites yougoslaves ne sont pas toutes bonnes a dire” (Nem todas as verdades da Iugoslávia são boas de serem ditas), uma entrevista de abril de 1993, com  James Harff, chefe da empresa de relações públicas Ruder Finn Global Public Affairs, com sede em Washington.

A agência representou a república da Croácia, entre agosto de 1991 e junho de 1992, e os governos muçulmano e croata da República da  Bósnia e Herzegovina, de maio de 1992 a dezembro de 1992. A firma também começou a representar os líderes albaneses de Kosovo, em outubro de 1992.

Harff revelou que se orgulhava de ter colocado a opinião pública judaica ao lado de seus representados. A tarefa não havia sido fácil, pelos escritos de natureza antissemita da parte do Presidente Tudjman (da Croácia).  E também, porque do lado bósnio, o Presidente Izetbegovic era um fervoroso defensor de um estado islâmico fundamentalista. Além disto, o passado da Croácia e da Bósnia fora marcado por um antissemitismo cruel, sendo que dezenas de milhares de judeus morreram em campos croatas.

Assim, havia todos os motivos para os intelectuais e organizações judaicas serem hostis a croatas e muçulmanos bósnios. Harff relata que, com uma jogada de mestre, conseguiu reverter esta tendência, e trazer os judeus para o lado dos muçulmanos. “Quando o New York Newsday publicou , em agosto de 1992, a história de Gutman sobre os campos de concentração sérvios, aproveitamos o caso e convencemos três grandes organizações judaicas (norte-americanas) a publicar um anúncio no New York Times, e a organizar protestos em frente ao prédio da ONU”.

Desta forma, a opinião pública (norte-americana) passou a identificar os sérvios como nazistas. Harff acrescentou ainda, que poucas pessoas realmente sabiam, nos Estados Unidos, o que estava ocorrendo na Iugoslávia, ou mesmo, “em que região da África” a Bósnia estava situada. Na imprensa a linguagem mudou nitidamente, passando a aparecer expressões como “limpeza étnica”, “campos de concentração”, etc, com associação às câmaras de gás e a Auschwitz. Ninguém ousava emitir uma opinião contrária, tal o clima emocional reinante, declarou na entrevista o chefe da empresa de relações públicas, que não considerou amoral suas ações como RP.

É interessante relatar, em aparente paradoxo a estas revelações de Merlino, que existem denúncias que foram abafadas, com “evidências concretas que Israel exportou para as tropas sérvias, durante o período dos conflitos na Bósnia, incluindo treinamento (militar), munição e rifles”. Isto ocorreu no período em que estava em vigor uma restrição da ONU, de vendas de armas para as partes em conflito na Iugoslávia. A Suprema Corte de Israel determinou, em dezembro de 2016, que “expor o envolvimento de Israel em genocídio, iria causar danos às relações externas do país, de tal monta que ultrapassaria o interesse público em conhecer tal informação, e o possível processo judicial dos envolvidos”.

Em outubro de 1999, meses após os bombardeios pela OTAN da Iugoslávia, inclusive da capital, Belgrado, Bernard Kouchner, em entrevista ao Los Angeles Times defendeu o direito da intervenção militar humanitária, contra o que ele chamou de “abusos da soberania nacional” pelo cometimento de opressão contra os direitos humanos. Estas justificativas seriam usadas posteriormente pelos Estados Unidos e OTAN para atacar o Iraque, Líbia e Síria, e ameaçam, atualmente, a Venezuela.