Os crimes contra os povos indígenas, por Ruben Rosenthal

guerra dos manaus RUGENDAS 1835
Joahann Moritz Rugendas, Guerrilhas, 1835

É urgente a criação de uma Comissão Permanente de Defesa dos Povos Indígenas, em face do aumento dos crimes praticados contra estas comunidades, agravando os riscos da ocorrência de genocídio a curto prazo.

Com o governo Bolsonaro agravaram-se os riscos, já presentes no governo Temer, à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas. Este artigo defende a formação de uma Comissão Permanente de Defesa dos Povos Indígenas, que será detalhada mais adiante. O objetivo é o de fortalecer as denúncias junto aos órgãos internacionais competentes.

Ao longo dos séculos foram inúmeros os massacres, que, junto com a miscigenação e aculturação, com perda da identidade étnica, levaram à drástica redução da população indígena, de cerca de 2 milhões quando da chegada dos portugueses, a 303.000, 500 anos após o “descobrimento”, segundo dados de 1998 do IBGE.

Quando a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) foi criada em 1967, dois modelos opostos de política indigenista existiam no Brasil. Um deles, “radicalmente protecionista”, foi desenvolvido pelos irmãos Villas-Bôas no Parque Nacional do Xingu. Para os sertanistas, as tribos indígenas deveriam ficar protegidas em parques indígenas e reservas, para gradualmente serem preparadas para a integração na sociedade e na economia do país1.

O outro modelo foi desenvolvido pelo Serviço de Proteção ao Índio, instituição que antecedeu a FUNAI. Este modelo, desenvolvimentista, preconizava uma rápida integração dos índios na economia, e foi adotado pela FUNAI, quando de sua fundação no período da ditadura militar1.

Como conseqüência da adoção deste segundo modelo, seguiu-se um período de constantes violações dos direitos dos indígenas. Como exemplo nefasto desta política, a construção da BR-210 (Perimetral Norte), na década de 1970, levou ao óbito cerca de 40% dos indíos Yawaripë, em consequência de doenças contagiosas.

No contexto da Constituição de 1988, tendo como referência as críticas de sertanistas e especialistas à prática de “atração de índios isolados”, a FUNAI adotou como premissa, e institucionalizou, uma política de proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas isolados.

No entanto, 30 anos depois, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) deu o alerta, na sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU realizada na Suíça, em setembro de 2018, que em dois anos de governo Temer, políticas anti-indígenas trouxeram o risco de extinção das tribos isoladas, ou seja, aquelas situadas fora das reservas.

evento_internacional onuCIMI
Liderança da Aty Guasu, L. Rocha Guarani Nhandeva   /   Foto: Flávio V. Machado/CIMI 

Para demonstrar que o risco de ocorrer genocídio de diversos povos indígenas era real, o CIMI adotou a metodologia do Escritório de Prevenção de Genocídio, ligado a ONU, para denunciar que os povos Guarani e Kaiowá estavam sob ameaça de extinção. O estudo havia sido feito pela Aty Guasu, a Grande Assembléia dos Guarani e Kaiowá. Na denúncia encaminhada pelo CIMI, foi também solicitado que fossem tipificados os crimes de “etnocídio” e “ecocídio”, para incluir na metodologia, as especificidades da relação dos povos indígenas com o meio ambiente.

No entanto a situação iria se agravar ainda mais com Bolsonaro na presidência do país. Conforme artigo no Opera Mundi, ainda como candidato à presidência, Bolsonaro declarou que “não vai ter um centímetro de terra demarcada para reserva indígena ou para quilombola”. E em 30 de novembro de 2018, já eleito presidente: “por que no Brasil temos que mantê-los reclusos em reservas, como se fossem animais em zoológicos…..vamos juntos integrar estes cidadãos”.

Em janeiro de 2019, a ONG Survival Brasil relatou que a retirada, já no início do governo Bolsonaro, da competência da FUNAI na demarcação das terras indígenas, repassando-a ao Ministério da Agricultura, comandado pela ministra Tereza Cristina, uma liderança política do agronegócio no país, já revelava os riscos a que os povos indígenas ficariam submetidos durante o novo governo. O STF veio a decidir posteriormente pela manutenção da demarcação com a FUNAI.

Em 4 de março, em flagrante desrespeito à Constituição do país, o ministro das minas e energia, Almirante Bento Albuquerque, anunciou em evento do Canadá, a abertura de terras indígenas para a mineração, sem que os indígenas tivessem sido consultados previamente sobre decisões que afetam suas vidas.

No mês de abril deste ano, em encontro com Donald Trump, Bolsonaro propôs a abertura da exploração da região amazônica em parceria com os Estados Unidos. Ressaltou Bolsonaro, que “como está, vamos perder a Amazônia”, alegando que a ONU discute com indígenas a possibilidade de se criar novos países no Brasil. Criticou o que chamou de “indústria de demarcação de terras indígenas”, que inviabilizaria projetos de desenvolvimento da Amazônia, e, citando fazendeiros, declarou que “muitas demarcações foram feitas com laudos suspeitos”.

mineração na amazonia 2
Mineração na Amazônia     /   Foto: Felipe Werneck / Ibama

No entanto, a Constituição atribui ao Estado o dever de prosseguir na demarcação das terras indígenas, que são áreas destinadas à sustentabilidade dos povos nativos. Estas áreas, existentes em todos os estados brasileiros, ocupam cerca de 14% do território brasileiro, e sua exploração só pode ser conduzida por índios, exceto em casos excepcionais.

Em maio deste ano, o Cacique Raoni, que, mesmo aos 89 anos de idade permanece incansável na luta pelos direitos indígenas, viajou à Europa para denunciar os riscos que pairam sobre a Amazônia. O altivo líder Kaiapó teve encontros com Macron e o Papa Francisco. Dentre os objetivos, se incluía a arrecadação de um milhão de euros para proteger o Parque Nacional Indígena do Xingú, reserva onde vivem vários povos indígenas, da ação de madeireiros e do agro-negócio. 

As políticas oficiais e declarações de Bolsonaro e de membros de seu governo, revelaram que o risco de genocídio atingira o nível de alerta máximo. O Observatório da Imprensa, em 30 de julho deste ano, relatou que “o massacre dos povos indígenas já começou”, e assinalou que a indiferença do governo Bolsonaro estimulou a continuação do extermínio, o que levaria, no extremo, ao genocídio de vários destes povos.

Em 29 de agosto, Survival Brasil alertou para os riscos que tribos isoladas, como os Awá, correm com os incêndios florestais, que teriam sido provocados por madeireiros fortemente armados. O Diretor da Survival International, Stephen Corry, acusa diretamente a Bolsonaro de encorajar aos fazendeiros e madeireiros a colocar fogo na floresta. A COIAB, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, também alertou para os riscos trazidos pelos incêndios, de destruir os espaços vitais para a sobrevivência das tribos isoladas no Estado do Mato Grosso.

papa e raoni
 Em defesa da Amazônia: Cacique Raoni e o Papa Francisco   /     Foto: Instagram / Franciscus

No 9º Encontro dos Povos do Cerrado realizado em setembro, o Cacique Raoni pediu a união aos presentes no Encontro – quilombolas, indígenas, camponeses, populações extrativistas e ativistas ambientais – contra a política ambiental do governo, que está destruindo os meios de subsistência, com o incentivo à devastação das florestas.

Enquanto isto, avança na Câmara proposta que permite a exploração agrícola terras indígenas quando gerenciadas pelos próprios índios, um direito que eles já possuíam. A proposta original representava uma ameaça explícita da entrada do agronegócio nestas terras. O governo já estaria trabalhando também para finalizar proposta que autoriza a exploração mineral

Portanto, são vários os alertas de urgência que estão sendo levantados por lideranças indígenas, povos da floresta, organizações nacionais e internacionais. Diante deste quadro, torna-se prioritário estabelecer uma “central de resistência” a este avanço das forças criminosas, que não tem compromisso com a herança civilizatória e cultural, representada pelas culturas indígena e quilombola.

Um documento das Nações Unidas oferece um modelo de análise (framework), para crimes de atrocidade, de grande utilidade para uso por agentes locais e internacionais, na monitoração, avaliação e previsão, não apenas para o risco de genocídio, mas, também de crimes contra a humanidade, crimes de guerra e de limpeza étnica. Este modelo, que é baseado na identificação de “fatores e indicadores de riscos”, foi utilizado pelo CIMI quando encaminhou denúncias da ocorrência de genocídio de Povos Indígenas no Brasil, conforme já foi mencionado neste artigo.  Um outro documento relevante, do Escritório da ONU para a Prevenção de Genocídio e a Responsabilidade de Proteger,  pode ser também utilizado na análise deste crime.

O ideal, no entanto, é que as denúncias sejam respaldadas por um amplo conjunto de entidades e lideranças reconhecidas. A sugestão deste artigo é que seja formada uma Comissão Permanente de Defesa dos Povos Indígenas (ou Povos da Floresta), a partir de iniciativa da OAB Nacional, CIMI, lideranças e entidades indígenas, como a Coordenação das Organizações Indígenas das Amazônia Brasileira (COIAB), além de representantes das comunidades quilombolas e  extrativistas. Entidades internacionais poderiam atuar como observadoras junto à Comissão.

À comissão, caberia receber as denúncias, analisá-las, e elaborar um relatório, de acordo com a metodologia requerida pelo Escritório de Prevenção de Genocídio. Confirmada a robustez das denúncias, uma investigação poderá ser conduzida nas regiões de conflito, por uma Missão Internacional de Averiguação (Independent Internacional Fact Finding Mission). No caso de confirmação da gravidade das denúncias, o Tribunal Penal Internacional (ICC) procederá à convocação dos suspeitos para prestar declarações em Haia. O Tribunal intervém apenas quando os Estados não estiverem genuinamente comprometidos com as investigações e apurações das responsabilidades.

É importante que a Comissão Permanente tenha amplo reconhecimento nacional e internacional, para garantir que a situação não dê margem a algum tipo de intervenção externa, que comprometa a soberania nacional na Amazônia. Artigos anteriores publicados pelo blogue mostraram que países da OTAN souberam utilizar o mote do “genocídio”, por vezes com base em acusações sem comprovação ou mesmo falsas, para intervir militarmente em outros países. O pretexto da intervenção era humanitário, mas se tratava, na verdade, de interesses geopolíticos do Ocidente. Isto ocorreu diversas vezes nos últimos anos, como nos casos de Iugoslávia, Iraque, Líbia e Síria, onde os resultados da intervenção externa foram desastrosos.

1 DAVIS, Shelton. Vítimas do milagre de Nova York: Cambridge University Press, 1977.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense

 

 

 

 

 

O ex-Presidente foi vilipendiado pela mídia e encarcerado por uma justiça corrompida, e pela pressão dos Estados Unidos, sem ter culpa comprovada

Por Ruben Rosenthal

Parece familiar ao leitor? Isto foi exatamente o que ocorreu com Slobodan Milosevic, ex-presidente da Iugoslávia, que veio a falecer na prisão em 2006, com indícios de ter sido assassinado por ingestão de medicamento indevido. Sua inocência de todos os crimes imputados só foi declarada em 2016, dez anos após a sua morte.

Milosevic no tribunal

Milosevic  rejeitava a autoridade do  Tribunal  /  Foto Deutsche Welle

Este artigo do blogue Chacoalhando é o segundo da série “Revisitando os Conflitos e a Fragmentação da Iugoslávia, iniciada neste mês de julho, quando completou 24 anos do massacre em Srebrenica, na Bósnia. O primeiro artigo tratou das circunstâncias que levaram ao fuzilamento em massa de centenas ou milhares de muçulmanos bósnios por sérvios bósnios, e de questionamentos ao “consenso oficial” de que teria ocorrido um genocídio.

O presente artigo trata principalmente das acusações e do julgamento do ex-presidente da Sérvia e da Iugoslávia, Slobodan Milosevic. Em fevereiro de 2002 começou o maior julgamento de crimes de guerra desde Nuremberg, que julgou os crimes cometidos pelo nazismo na Segunda Guerra Mundial. O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia havia indiciado, em 24 de maio de 1999, a Slobodan Milosevic e a quatro membros do alto escalão do país, por “Crimes Contra a Humanidade” e por “Violações das Leis de Guerra”. No total, foram sessenta e seis acusações. O texto completo do indiciamento pela promotoria pode ser acessado (The Guardian).

O Tribunal fora estabelecido em maio de 1993, pelo Conselho de Segurança da ONU, e funcionou em Haia, Holanda, não tendo relação com a Corte de Haia, principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas.  O estabelecimento do Tribunal seguiu-se à crise na Bósnia, onde prevaleceu o consenso de que tropas sérvias, com o conhecimento de Milosevic, estavam cometendo o genocídio de muçulmanos bósnios. Posteriormente, em 1999,  o consenso era que os sérvios estavam massacrando os albaneses no Kosovo, o que viria a servir de pretexto para os bombardeios da Sérvia pela OTAN, e o indiciamento e prisão de Milosevic. 

Milosevic passara a ser execrado na mídia Ocidental. É interessante recordar que, também alguns setores de esquerda encamparam, na ocasião, as fortes críticas a Milosevic,  inclusive comparando-o a Hitler. Isto ficou evidenciado na declaração do político britânico Ken Livingstone, em entrevista ao The Independent, em abril de 1999, poucos dias antes do indiciamento de Milosevic. 

Livingstone, que recebera anteriormente da mídia britânica o apelido de “Ken vermelho”, por sua ligação com a esquerda radical, acusou Milosevic pelo “pior genocídio na Europa em cinquenta anos, quando bandidos a seu comando cometeram carnificinas contra as populações muçulmanas e croatas da Bósnia”. Livingstone se elegeu prefeito de Londres no ano seguinte. Talvez a feroz crítica feita a Milosevic tenha sido parte do preço pago por “red Ken” para angariar simpatia na mídia, navegando a favor da correnteza política.

O indiciamento de Milosevic se deu no contexto do agravamento da crise no Kosovo. Durante os anos 80, a Iugoslávia recorreu ao FMI, ficando presa na mesma armadilha que os países endividados da América Latina, sendo forçada a introduzir reformas liberais. As províncias autônomas sérvias de Kosovo e Vojvodina, que tinham poder de veto garantido pela constituição de 1974, teriam que endossar as reformas, mas os líderes albaneses do Kosovo se recusavam, conforme relata Diana Johnstone em seu livro “Fool’s Crusade: Yugoslavia, NATO, and Western Delusions”, publicado em 2002. A província atravessava uma séria crise econômica, com cinquenta por cento de desemprego. A solução encontrada por Milosevic, para atender aos bancos do Ocidente, foi revogar a autonomia de Kosovo, o que resultou em violentos protestos pelos kosovares, e na declaração do estado de emergência em março de 1999. Os conflitos aumentaram, com relatos na mídia, de muitas mortes de kosovares de origem albanesa.

Seguiu-se uma conferência de paz na França, ainda em março de 1999, na qual Madeleine Albright, secretária de estado no governo Clinton, ofereceu em troca de não bombardear a Sérvia, que a mesma fosse ocupada militarmente por tropas da OTAN. As exigências, consideradas inaceitáveis por Milosevic, incluíam ainda que as tropas ocupantes ficassem livres de quaisquer processos legais, e que fosse adotada uma economia de livre mercado pela Sérvia. Com a recusa de Milosevic, os bombardeios da Sérvia pela OTAN tiveram início já em maio de 1999, e o então presidente, foi indiciado por crimes de guerra, ainda no mesmo mês. Os crimes não se referiam apenas ao Kosovo, mas também aos eventos do começo dos anos 90 na Bósnia, principalmente em Srebrenica.

OTAN bombardeia sérvia em 1999 B
OTAN  bombardeia a Sérvia em 1999  /  Fotograma de vídeo no Youtube

Como a Rússia tivesse ameaçado usar seu poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, a votação não chegou a  ocorrer, mas isto não impediu os bombardeios da Sérvia cometidos pela OTAN. Em junho, o Conselho de Segurança da ONU votou por unanimidade  a resolução 1244, que reconhecia a nova situação que fora imposta pela OTAN. Os conflitos na Iugoslávia se deram em um período em que a Rússia, seguindo-se ao colapso da União Soviética em 1991, se encontrava sob a presidência de Bóris Iéltsin, que governou até dezembro de 1999. Seu governo, pró-Ocidente, foi extremamente dependente da ajuda financeira do presidente Clinton, para superar o caos econômico que se instalara com o processo radical de mudança para uma economia de mercado. Neste contexto, pode-se entender como foi possível que ocorressem os excessos  e ilegalidades cometidos pelo Ocidente e pela OTAN.

Posteriormente, com as eleições de 2000, Milosevic não conseguiu se manter na presidência da Iuguslávia, se re-elegendo apenas para direção do Partido Socialista. Em abril de 2001, a promotora chefe do Tribunal para a Iugoslávia, Carla del Ponte emitiu um mandado de prisão para Milosevic, e em junho, o ex-Presidente foi enviado para a jurisdição do Tribunal, em Haia.  

Algumas vozes lúcidas se pronunciaram, na ocasião, contra o absurdo de submeter Milosevic à jurisdição do Tribunal Penal. No Reino Unido, Tony Benn, uma liderança histórica da esquerda autêntica do Partido Trabalhista, não se intimidou em ir contra a correnteza, ao considerar ilegal o julgamento de Milosevic. Em entrevista de fevereiro de 2002, ele apresentou um posicionamento em que avaliou, de forma abrangente, o contexto em que ocorreram os eventos na Iugoslávia, com a ação concertada dos EUA, Alemanha e Reino Unido no desmembramento do país.

Benn lembrou que, em janeiro de 1999, o então ministro das relações exteriores britânico, Robin Cook, declarara que mais sérvios haviam até então sido mortos por albaneses no Kosovo que o oposto.  E que o antigo secretário-geral da OTAN, Lorde Carrington, declarara que as perseguições e o êxodo dos albaneses kosovares  só começaram quando os norte-americanos iniciaram os bombardeios da Sérvia. 

Poucos dias após a publicação da entrevista de Tony Benn, o real papel desempenhado pelos Estados Unidos na crise na Bósnia foi completamente exposto,  com a revelação do relatório de um professor holandês, da Universidade de Amsterdam, que tinha acesso irrestrito aos arquivos confidenciais de seu país. Este acesso possibilitou que fosse conhecida a aliança secreta entre o Pentágono e grupos islâmicos, para fornecer armamento aos muçulmanos da Bósnia.

Os Estados Unidos estavam em dívida com grupos islâmicos e seus apoiadores no Oriente Médio (Arábia Saudita e Iran), pelo apoio recebido nos conflitos no Afeganistão e na Guerra do Golfo contra Saddam Hussein.  Em 1993, estes grupos estavam ansiosos por ajudar aos muçulmanos em luta na antiga Iugoslávia, e cobraram dos Estados Unidos a dívida pendente. A retribuição incluiu o fornecimento de armas, indo de encontro ao boicote estabelecido pela ONU, que visava impedir a chegada de armamento às partes em conflito. Como o fluxo de armas passava pela Croácia, esta se aproveitou para ficar com parte do arsenal, e usar nos conflitos regionais, em que também estava envolvida. Alguns destes mesmos grupos islâmicos são agora combatidos pelo Ocidente e pela Rússia.  

Milosevic não reconheceu a autoridade do tribunal e passou a conduzir sua própria defesa, a partir de agosto de 2004, apoiado por consultores jurídicos. Ele declarou que seu julgamento por crimes de guerra era “uma distorção da História”, e culpou o Ocidente por fomentar o colapso da Iuguslávia. Sua estratégia não era se defender, e sim, atacar, nas palavras de seu advogado Zdenko Tomanovic.

Em 11 de março de 2006, após cinco anos de encarceramento em uma cela de 16 metros quadrados, durante os quais não podia receber visitas de seus familiares, e restando apenas quarenta horas de audiências para a conclusão do julgamento, Milosevic foi encontrado morto em sua cela em Haia, vítima de um ataque cardíaco. O julgamento foi, então, encerrado, sem que um veredicto fosse alcançado.

Clipboard04
Funeral de Slobodan Milosevic /  Fotograma do filme Milosevic on Trial

 

 

Os detalhes de sua condição cardíaca vinham sendo mantidos em segredo pelos oficiais norte-americanos, conforme posteriormente revelado pelo WikiLeaks. Os documentos vazados, datados de novembro de 2003, tinham a classificação “Secret NOFORN”, o que significa que não poderiam ser acessados por pessoas de outras nacionalidades.

wikileaks logo

Os documentos indicavam que autoridades norte-americanas tinham pleno conhecimento de dados clínicos confidenciais de Milosevic, repassados pelo tribunal: “a condição do coração de Milosevic, embora tratável no dia a dia, é séria e não prontamente controlada por medicação”.

Em outro vazamento, foi revelado que recomendações clínicas de médicos holandeses, inclusive de um cardiologista, de que o número de sessões no tribunal fosse reduzido,  foram rejeitadas pela Corte, “até que a elevada pressão sanguínea Milosevic, que tem um histórico de hipertensão, não possa ser controlada com medicação padrão”. Posteriormente o número de sessões semanais precisou ser reduzido para três, devido ao agravamento do quadro clínico de Milosevic. 

Em 24 de fevereiro de 2006, o Tribunal não permitiu que o prisioneiro recebesse tratamento na Rússia de natureza cirúrgica, que poderia ter-lhe salvado a vida. Duas semanas depois, Milosevic estava morto.

Pode não ter se tratado “apenas” de uma omissão no tratamento médico necessário, cometida pelas autoridades americanas e pelo próprio Tribunal Penal, que tenha levado à morte o ex-Presidente. Conforme publicado no The Guardian, Tomanovic, advogado de Milosevic, revelou uma carta de seis páginas, datada da véspera de sua morte,  e dirigida ao governo russo, em que o ex-Presidente alegava que estavam sendo propositadamente administradas drogas erradas para o tratamento de sua doença. Por outro lado, Carla Del Ponte, procuradora chefe do Tribunal, declarou que “Milosevic pode ter se matado, para escapar de um provável veredicto de prisão perpétua”.

Para aumentar a controvérsia, foi divulgado, ainda em março de 2006, que uma análise de sangue, realizada antes da morte de Milosevic, pelo toxicólogo holandês Donald Uges, detectara a presença do medicamento rifamicina, não prescrito pelos médicos. A rifamicina tem o efeito de neutralizar o medicamento que era usado por Milosevic para pressão alta, agravando então o seu problema cardíaco.

Segundo Uges, o ex-presidente iugoslavo teria tomado o remédio para conseguir “uma passagem só de ida para Moscou”, sugerindo com isto, que o próprio Milosevic estaria fazendo sua saúde piorar para justificar ser tratado em Moscou (onde sua esposa se encontrava exilada). A autópsia oficial foi de que a morte se dera por causas naturais, mas a controvérsia permaneceu.

O documentário Milosevic on Trial (Milosevic em Julgamento), do diretor dinamarquês Michael Christoffersen, lançado em 2007, foi baseado em 2.000 horas de filmagens obtidas no decorrer das audiências na Corte, e em 250 horas de entrevistas. 

milosevic-poster-final
Poster do filme Milosevic on Trial

Com a morte de Milosevic, e na ausência de um veredicto, o diretor precisava encontrar um final para o seu filme. Em entrevista ao Instituto Dinamarquês de Cinema, Christoffersen comentou que “precisou interpretar o material”, e que tudo ficou mais claro quando concluiu que o próprio Milosevic teria sido o único responsável por sua própria derrocada (na Corte), se tivesse sido condenado, no caso de prosseguimento do julgamento”.  

E continuando: “Milosevic atuando em sua própria defesa, e apoiado por um time de advogados, tentava caracterizar o julgamento como um processo político, enquanto que, para a acusação, o caso era criminal, um julgamento pela morte de pessoas. Decidimos apontar para a responsabilidade de Milosevic”.

Acrescentou ainda o diretor: “a acusação não consegue uma evidência, e é somente quando Milosevic assume sua própria defesa, que ele ‘comete um deslize’, deixando escapar para o promotor uma importante informação”. “O criminoso expôs a si mesmo”, complementa o produtor Heide. E com um veredicto concebido, de acordo com a decisão da produção, o documentário percorreu importantes festivais de cinema, ganhando diversos prêmios.

Para entender melhor o clima do julgamento, conferir as declarações das testemunhas, e verificar qual teria sido o tal “deslize” cometido por Milosevic, que fez com que o diretor direcionasse o seu filme, na edição, no sentido de atribuir intento criminoso ao ex-presidente, o blogue Chacoalhando resolveu conferir Milosevic on Trial.

No filme, fica bem evidenciado que, durante o decorrer do julgamento, Milosevic assumiu uma postura altiva e desafiadora. Por vezes seu comportamento foi rude e  debochado. Em outros momentos, demonstrou cansaço ou desânimo, em grande parte decorrente de sua condição clínica. O ex-Presidente chegou a ser admoestado com severidade pelo juiz em mais de uma ocasião, que negou algumas das demandas do acusado, quando este estava atuando em sua própria defesa. Não ficou bem evidenciado no filme, qual teria sido o deslize específico cometido por Milosevic, que possa ter feito com que o produtor Mette Heide, declarasse “que o criminoso expôs a si mesmo”.

A questão mais polêmica talvez tenha sido a escolha, como testemunha de defesa, do general Obrad Stevanovic, chefe das Unidades da Polícia Especial, ligadas ao serviço de segurança, subordinado ao Ministério do Interior. Stevanic cedeu seu diário ao Tribunal, e foi duramente questionado pelo advogado de acusação, o britânico Geoffrey Nice, pela expressão  que lá constava, “sem corpos, sem crime” em associação ao termo “limpeza (cleaning up)”. A explicação de Stevanovic foi que corpos mortos de terroristas foram colocadas em valas comuns, pelas próprias autoridades bósnias, para depois culpar aos sérvios pelas mortes. Nice rebateu, citando o caso de uma testemunha, mostrado no filme, em que os corpos de seus quatro filhos foram levados por paramilitares sérvios, para depois serem localizados em um veículo frigorífico, abandonado em um depósito pertencente ao Ministério do Interior.

Stevanonic foi também questionado sobre um vídeo chocante, em que a unidade paramilitar Scorpions executava diversos prisioneiros, atirando os corpos em uma vala. O advogado de acusação aponta que a unidade estaria sob o comando da polícia, e em última análise, Milosevic era responsável pela autorização. Stevanovic negou que tivesse controle sobre o grupo Scorpions. Como ele não foi indiciado pelo cometimento de crimes de guerra, é possível a afirmação de Nice carecesse de fundamento ou de comprovação.

Ao final do filme, o advogado de acusação, Geoffrey Nice, aparece fazendo uma declaração, nada “nice”, de que foi melhor que tudo tivesse acabado daquela forma, com a morte de Milosevic (“a quite satisfactory conclusion”). Desta forma não haveria “questionamentos futuros e apelações”. O filme termina com uma voz declarando em off, que Milosevic, em sua ambição política, passou de “tomar decisões ruins, mas legais, para decisões ruins, ilegais e mesmo criminosas, tendo que assumir responsabilidade por estas decisões”. Também ao final do filme, aparece em uma legenda, que Milosevic foi condenado em 2006 na Corte Suprema da Sérvia, pelo assassinato do ex-presidente da Sérvia, Ivan Stambolic, crime que já havia sido anteriormente atribuído à esposa de Milosevic, Mirjana Markovic, que se exilara na Rússia.

Mas, assumir a culpabilidade de Milosevic em seu documentário, provou ser, anos depois, uma decisão tendenciosa e equivocada da parte de Christoffersen e Heide. Isto porque o julgamento foi retomado, e a inocência do réu foi declarada em 2016.

Em 2008, foi capturado Radovan Karadzic, primeiro presidente (1992-1996) da República Srpska, formada pelos enclaves sérvios na Bósnia-Herzegovina. Enviado para o Tribunal, seu veredicto foi declarado em 24 de março de 2016, com condenação a quarenta anos de detenção, ampliada para prisão perpétua, quando ele apelou da condenação inicial. É provável que, durante as audiências deste julgamento, tenham surgido declarações que isentaram a Milosevic de todas as acusações que haviam sido imputadas a ele.

Entretanto, o veredicto não foi divulgado pelo Tribunal, e ficou “camuflado” dentro no processo contra Radovan Karadzic. Foi graças à pesquisa do jornalista Andy Wilcoxson, que a inocência de Milosevic pôde ser descoberta e revelada, em julho de 2016.

O Tribunal havia estabelecido por unanimidade, o veredicto que “não estava convencido que o caso contivesse suficiente evidência de que Slobodan Milosevic estivera de acordo com um plano de limpeza étnica, em território sérvio, de muçulmanos e croatas”. Para chegar a esta conclusão, o Tribunal levou em conta que, nas reuniões entre representantes da Sérvia e sérvios da Bósnia, “Slobodan declarou que ‘todos os membros de outras nacionalidades e grupos étnicos devem ser protegidos’ e que, “no interesse nacional dos sérvios, não deve constar a discriminação”. E ainda que “crimes devem ser decididamente combatidos”. Nestas reuniões, “Milosevic tentou ponderar com os representantes de sérvios da Bósnia que entendia as preocupações deles, mas que o mais importante era acabar com a guerra”.

No entanto, a mesma imprensa que execrara a Milosevic durante o “julgamento do século”, chamando-o, entre outros adjetivos que o insultavam, de o carniceiro dos Balcãs, manteve completo silêncio sobre a decisão do Tribunal. 

butcher

É até compreensível que a mídia Ocidental procurasse colocar um manto escuro sobre o veredicto, pois ela própria ficaria completamente desmoralizada por sua escancarada cumplicidade, durante anos, na demonização de Milosevic. 

No Brasil, a mídia tradicional também boicotou o assunto. Mas, mesmo na imprensa alternativa, foram poucos os relatos sobre o resultado final do julgamento. Uma das exceções foi o artigo de  Jakobskind, publicado na extinta Caros Amigos, “A inocência tardia de Milosevic”, em que são inclusive mencionadas as suspeitas de que a morte de Milosevic se dera em circunstâncias duvidosas.

Em maio de 2011, foi preso Ratko Mladic,  que fora o comandante militar sérvio da República Srpska (formada pelas províncias sérvias na Bósnia e Herzegovina) durante os conflitos regionais. Extraditado para Haia, foi julgado e considerado culpado em 2017, com sentença de prisão perpétua. Com este julgamento , o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia considerou encerrado todos os trabalhos.

As acusações contra Milosevic, relativas aos conflitos no Kosovo, forneceram o pretexto para os terríveis bombardeios da Sérvia pela OTAN em 1999, e foram decisivas no estabelecimento da nova ideologia intervencionista do Ocidente, com base em questões humanitárias. As tropas da OTAN passaram a se antecipar ou mesmo a prescindir de decisões da ONU, para bombardear e invadir outras nações, de acordo com interesses geopolíticos, segundo ressalta o icônico jornalista John Pilger. Este foi o caso com as subsequentes invasões do Afeganistão, Iraque, Líbia e, furtivamente, da Síria. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Revisitando e Questionando o Genocídio de Srebrenica

Por Ruben Rosenthal

O consenso oficial que o Genocídio de Srebrenica em 1995 ocorreu por falha da ONU abriu o caminho para a intervenção da OTAN em 1999 contra a Iugoslávia, sob o pretexto humanitário da guerra no Kosovo. O precedente possibilitou outras intervenções pela OTAN sem autorização do Conselho de Segurança. Mas ocorreu mesmo um genocídio em Srebrenica?

A Bosnian Muslim woman, survivor of Sreb

Memorial em Serebrenica   /  Foto E. Barukcic

AFP/Getty Images

 

Este é o primeiro artigo no blogue Chacoalhando da série “Revisitando a Fragmentação da Iugoslávia”. Os conflitos que dominaram esta região dos Balcãs trouxeram consequências que extrapolaram a própria Europa. A mídia ocultou ou distorceu diversos fatos da tragédia, dos quais as novas gerações precisam estar conscientes e atentas, pois após os bombardeios de 1999 pela OTAN, a história se repetiu várias vezes como farsa, como já alertara Karl Marx. 

No dia 11 deste mês de julho, o massacre ocorrido em Srebrenica, na Bósnia, completa 24 anos, quando teriam sido mortos  8.374 muçulmanos bósnios, executados por militares sérvios naturais da própria Bósnia1. A cidade tinha o status, concedido pela ONU, de “área segura”, e portando deveria ser considerada como um santuário, protegida de conflitos. O massacre ficou conhecido o Genocídio de Srebrenica, o primeiro a ocorrer em solo europeu após o Holocausto, de acordo com o “consenso oficial” que prevaleceu, desde então, no Ocidente.

Este consenso, juntamente com os massacres em Ruanda, serviu como pedra angular da ideologia intervencionista do Ocidente, em que as tropas da OTAN passaram a se antecipar ou mesmo a prescindir de decisões da ONU, para bombardear e invadir outras nações, de acordo com interesses geopolíticos. Esta licença para arrasar outros países começou em 1999, com os terríveis bombardeios da Sérvia pela OTAN. Nesta ocasião estavam no poder, na Europa Ocidental, vários partidos de centro-esquerda, o PS de Jospin, na França, o Partido Trabalhista, de Tony Blair,  no Reino Unido, e a Social-Democracia, com Schroeder, na Alemanha. E nos Estados Unidos, os Democratas, com o liberal Clinton. É sempre bom se ter em mente, que em política externa, muitas vezes a centro-esquerda e os liberais são mais “falcões” que os conservadores de direita.  

yugoslavia-map-europe-25

Mapa da Ex-República Socialista Federativa da Iuguslávia 

 

Um pouco de história ajuda a entender a origem dos conflitos que dominaram aquela região dos Balcãs durante a década de 90. Em 1918 foi criado o Reino de Sérvios, Croatas e Eslovenos, que mudou de nome para Reino da Iugoslávia em 1929. Com o término da segunda guerra mundial, em sucessão ao Reino da Iugoslávia, foi estabelecida a República Socialista Federativa da Iugoslávia, consistindo de seis repúblicas, Bósnia e Herzegovina, Croácia, Montenegro, Macedonia, Slovênia e Sérvia, da qual faziam parte duas províncias autônomas, Kosovo e Vojvodina, criadas pela Constituição de 1974.

Até a morte do Marechal Tito, a federação se manteve unida. O status de herói da Segunda Guerra Mundial, o respeito internacional à neutralidade do país em relação ao Ocidente e à União Soviética, sua liderança no Movimento dos Países Não Alinhados, concediam a Tito um prestígio incontestável, apesar de ter governado de forma autocrática. Um sistema de rodízio entre as nacionalidades, para o cargo de primeiro-ministro do país, ajudava a manter a unidade.  Com a morte de Tito em 1980, o delicado equilíbrio ruiu.

A evolução das rivalidades com o crescimento dos nacionalismos regionais, culminando com a deflagração dos conflitos que envolveram diversas nacionalidades, será abordado a seguir de forma resumida. Já década de 80 surgiram tensões étnicas no Kosovo. Com a queda do muro de Berlin em 1989, o desmantelamento do Pacto de Varsóvia em 1991, e da própria União Soviética em dezembro do mesmo ano, as políticas centralizadores de Slobodan Milosevic, que ocupava a presidência da Sérvia (1989-1997), começaram a ser contestadas por líderes de outras repúblicas da federação.

Em junho de 1991, Eslovênia e Croácia tornaram-se as primeiras repúblicas a declararem sua independência, logo seguindo-se a Macedônia. A nova situação tinha o potencial de causar conflitos, porque a identidade sérvia estava bastante dividida geograficamente por várias repúblicas da federação, como a Bósnia, Croácia, Macedônia, Montenegro, além é claro, da própria Sérvia. 

República Srpska 2

Mapa da República  SRPSKA

 

Em outubro de 1991, a Assembléia da Bosnia e Herzegovina, com a oposição dos deputados de origem sérvia, aprovou um Memorando de Soberania, para abrir caminho para a proclamação da independência, que veio a ser efetivada em março de 1992. Em fevereiro de 1992 as seis regiões autônomas sérvias da Bósnia proclamaram a secessão, formando a República Srpska, que deveria também incluir as regiões em que os sérvios se tornaram minoria devido à perseguições durante a Segunda Guerra Mundial.

Estavam colocadas as condições para os conflitos bélicos, que se generalizaram no início da década de 90. Neste contexto se inseriu a luta por Srebrenica, que se tornara um enclave muçulmano em maio de 1992, com a fuga dos sérvios locais, seguindo-se a morte de um proeminente juiz sérvio1. No processo de assumirem o controle de Srebrenica, tropas sérvias naturais da República Srpska executaram, em 11 de julho de 1995, um grande número de prisioneiros muçulmanos bósnios, o que ficou registrado para a história como o Massacre ou Genocídio de Srebrenica.

No entanto, esta narrativa oficial da ocorrência de um genocídio encontra contestadores. Diana Johnstone1, 85, aceita e se orgulha de ser considerada uma “negacionista do genocídio” em Srebrenica, pecha que lhe é atribuída (e a outros) com intuito pejorativo, por defensores do consenso oficial2. Pensam como ela diversos intelectuais, acadêmicos, jornalistas e advogados de defesa internacionais3. A seguir são apresentados trechos de uma entrevista anteriormente concedida por Johnstone à Ann Garrison, jornalista independente, e publicada na revista CounterPunch.

A autora aceita que ocorreu de fato um massacre de prisioneiros, consistindo, portanto, em crime de guerra, cuja dimensão ela questiona, mas insiste que não se trata de genocídio. Ela revela ceticismo sobre as repetidas citações de que ocorreram mais de 8.000 mortos no massacre, assim como outros negacionistas4, e salienta que a questão relevante não é o número exato de corpos, mas como isto foi e ainda é explorado. Johnstone considera que, quando mulheres e crianças são poupadas, e as vítimas são todas do sexo masculino, com idade de servir ao exército, a definição de genocídio não se aplica.

Massacres de homens e jovens em idade militar acontecem nas guerras, acrescenta ela. E aconteceu dos dois lados. Havia uma guerra, e não foram apenas sérvios matando muçulmanos. Muçulmanos também mataram sérvios durante a guerra civil5. Salienta ainda que os sérvios eram, inclusive, aliados do popular líder muçulmano secular do oeste da Bósnia, Fikret Abdic (sugerindo, com isto, que não havia uma questão de supremacia étnica ou religiosa como motivação para o massacre).

A autora considera que o Tribunal Internacional de Crimes para a Ex-Iugoslávia foi estabelecido pelas potências ocidentais para culpar os sérvios por genocídio, e isto foi conseguido através de uma explicação sociológica esdrúxula. Como os muçulmanos bósnios possuem uma sociedade patriarcal, eliminar os homens equivaleria a uma espécie de genocídio para toda aquela cidade (ou comunidade).

Johnstone avalia, na entrevista, que os sérvios foram alvos da administração Clinton, por que esta tinha uma política de aliança com os muçulmanos ao redor do mundo, como parte de uma estratégia contra a Rússia, que retrocede ao apoio dado pela administração Carter aos Mujahadeen, no Afeganistão. A base da estratégia era (e talvez ainda seja nos tempos atuais) explorar a vulnerabilidade do “Império Russo”, por este ser constituído, em parte, por províncias de população muçulmana majoritária. Este era um trunfo a ser usado contra o núcleo russo, cristão ortodoxo (com o objetivo de desmembrar o país, como ocorrera com a extinta União Soviética). Como a Sérvia, também cristã ortodoxa, era vista como potencial aliada regional da Rússia, ela passou a ser alvo dos EUA.

A autora considera que não fazia parte da estratégia de Washington combater o radicalismo muçulmano pelo mundo, e sim, os muçulmanos seculares, não radicais. Na Bósnia, a aliança foi com Alija Izetbegovic, o mais radical dentre os islamitas de lá, e que defendia que nações com maiorias muçulmanas fossem governadas pela lei islâmica6. Os EUA também agiram assim contra Gaddafi, que era inimigo dos muçulmanos extremistas, e com Saddam Hussein, que governava uma sociedade secular, e era odiado pelos extremistas islâmicos. Desta forma, com a intervenção norte-americana, estes governantes foram derrubados, possibilitando o avanço dos extremistas sobre a Líbia e Iraque. O mesmo quase aconteceu (recentemente) com a Síria, de Assad.

Ainda segundo Johnstone, a aceitação como consenso oficial, de que ocorreu um genocídio em Srebrenica trouxe sérias conseqüências, juntamente com os massacres em Ruanda, que não se limitaram ao pretexto para justificar futuras intervenções militares pela OTAN. A ampla aceitação de que ocorrera um genocídio de milhares de muçulmanos deu margem a uma inesperada interpretação pelos radicais islâmicos: se o Ocidente foi complacente, em algum momento, com o genocídio de muçulmanos, então ele também é culpado das mortes ocorridas, e por isto deve ser combatido.

Esta justificativa tem sido atualmente usada para recrutar jovens no Oriente Médio para a luta dos extremistas islâmicos contra o Ocidente, abastecendo com militantes os grupos radicais, como o ISIS7. Assim, a estratégia do Ocidente de que teria os muçulmanos como aliados, por ter apoiado lideranças extremistas, teve o efeito inverso, acrescenta Johnstone, porque ficaram enfraquecidos os líderes seculares, e isto com a ajuda do grande aliado saudita, que é um estado muçulmano extremista.

Diana Johnstone comenta que uma história que circulou muito, fora da mídia oficial, foi que o massacre de Srebrenica fez parte de uma tática de Izetbegovic, para fazer os sérvios cometerem uma matança, que, por sua gravidade, fosse considerada inaceitável pelo Ocidente. O líder bósnio teria escutado diretamente de Bill Clinton que, caso ocorresse em um massacre, a morte de pelo menos 5.000 muçulmanos, os EUA e a Nato iriam intervir diretamente a favor dos muçulmanos.

Johnstone não acusa Clinton de deliberadamente ter induzido Izetbegovic a preparar uma armadilha para os sérvios. Ela acredita que o líder bósnio, cuja estratégia incluía retratar os bósnios como vítimas indefesas, provavelmente tenha dado sua interpretação pessoal à fala de Clinton. Ele então ordenou a retirada do comandante de Srebrenica, o que levou os soldados bósnios, mesmo em maioria, a bater em retirada frente aos atacantes sérvios. Em um contexto da ocorrência anterior de 1.000 a 3.000 mortes de sérvios nas vilas da região, incluindo mulheres e crianças, o cenário estava então colocado para uma vingança por parte dos sérvios. Com isto foi aberta a porta para a entrada em cena das tropas da OTAN, neste e em outros conflitos, mesmo fora da Europa.

Comentários indexados ao texto:

1. Diana Johnstone, no livro de sua autoria “Fool’s Crusade: Yugoslavia, NATO, and Western Delusions”. A escritora norte-americana radicada em Paris, é autora ainda dos livros  “The Politics of Euromissiles: Europe’s Role in America’s World” e  “Queen of Chaos: The Misadventures of Hillary Clinton”.

2. Em artigo de julho de 2019 no Haaretz de Israel, o escritor, cineasta e jornalista de conflitos, Oz Katerji critica intelectuais de esquerda, acadêmicos, jornalistas e blogueiros, que, “com suas teorias conspiratórias anti-imperialistas, transitam na negação de genocídios, de Srebrenica a Síria”. Ele se refere nominalmente, dentre outros, ao jornalista Glenn Greenwald, do Intercept, e aos autores Edward Herman e David Peterson, pelo livro The Politics of Genocide, a Noam Chomski, pelo prefácio no livro, e ao documentarista australiano John Pilger, por ter endossado o livro. 

Katerji considera ainda, que com a condenação de Ratko Mladic, ex-comandante militar da República Srpska, à prisão perpétua por crimes de guerra, em novembro de 2017, com “provas conclusivas, os ‘negacionistas’ deveriam se redimir, mas estão agora empenhados em negar os crimes de guerra de Assad”.

3. Para análises mais abrangentes sobre o tema da guerra civil na antiga Iuguslávia, recomenda-se além do livro já citado de Diana Johnstone, também publicações de autoria Edward Herman. O livro The Politics of Genocide, por Edward Herman e David Peterson, mostra como o termo genocídio vem sendo aplicado com intenções políticas, de forma tendenciosa, em diversas situações internacionais. O livro está disponível, gratuitamente, através do linque indicado.

Um jornalista que não surfa na onda da mídia ocidental é o documentarista australiano John Pilger. Ele denunciou  a falta de cobertura pela mídia ocidental, de que o falecido presidente da Iuguslávia (de 1997 a 2000), Slobodan Milosevic, foi inocentado em 2016 pelo Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia, em Haia, de todas as acusações levantadas contra ele de envolvimento em crimes de guerra durante a guerra Bósnia (1992-1995), inclusive do massacre de Srebrenica. Ainda segundo Pilger, o veredicto do Tribunal demole a propaganda que justificou o violento e ilegal ataque pela OTAN na Sérvia, em 1999, durante a guerra do Kosovo.

4. Em entrevista publicada no Global Research, Edward Herman avalia que o número de mortos por execução no massacre de julho de 1995 seja inferior a 1.000, e que muitos dos 2.500 corpos encontrados em túmulos seriam relativos a soldados mortos em combate. Outros milhares que estavam desaparecidos, e constavam como mortos no massacre, já teriam sido localizados. Por outro lado, Herman ressalta uma estimativa que mais de 150 vilas de sérvios foram completamente riscadas do mapa, no período entre 1992 e julho de 1995, com registro de 2.383 civis mortos.

5. O General Philippe Morillon, comandante militar da ONU na Bósnia em 1992 e 1993, testemunhou perante o Tribunal Penal sua convicção de que o ataque a Srebrenica foi uma reação direta aos massacres de sérvios cometidos pelo comandante do exército da República da Bósnia e Herzegovina, em Srebrenica, Nasir Oric e de suas tropas. No entanto, o Tribunal não aceitou o depoimento de Morillon, e considerou  que não havia evidências de elevadas mortes de civis nos ataques a vilas sérvias no teatro de operações.

6. Artigo no jornal português Público revela que Osama Bin Laden tinha um passaporte da Bósnia e Herzegovina, incluindo a cidadania, concedida por ordens de Izetbegovic. O jornal relata ainda que Bin Laden e seus combatentes cometeram crimes terríveis, como decapitações de prisioneiros sérvios, usando as cabeças como bolas de futebol.

7. Segundo um membro fundador da Al-Qaeda, que tornou-se espião para os serviços de inteligência britânicos, “a Bósnia deu ao movimento jihadista moderno a narrativa de que há uma guerra entre o Ocidente e o Islã”. 

Zenica-1995-El-Mujahedin-Brigade

Batalhão Mujahadeen na Bósnia

 

Comentários adicionais:

1. O autor do artigo do Haaretz, Oz Katerji, cometeu uma omissão por não mencionar a absolvição tardia de Slobodan Milosevic de todos os crimes que haviam sido imputados a ele. Ainda na tentativa de fortalecer suas críticas aos “negacionistas de genocídios”, Katerji citou o caso das acusações de crimes de guerra (pelo uso de armas químicas) por Assad, na Síria. No entanto, o autor comete outra omissão, ao desconsiderar completamente o relatório da OPAQ vazado recentementeque revelou a farsa da manipulação de evidências com o intuito de incriminar Assad, em pelo menos um dos supostos casos de emprego de armas químicas na Síria.

2. Em seu livro Fool’s Crusade: Yugoslavia, NATO, and Western Delusions, Diana Johnstone considera que era uma fraude o conceito de “área segura”, que vigorava então para diversas regiões no palco de operações do conflito. As regiões deveriam estar livre de armamentos, mas não estavam, e isto “com a conivência da ONU”. Acrescenta ainda a autora, que estes santuários foram utilizados por tropas muçulmanas para lançar ataques contra vilas sérvias na bósnia nos três anos que antecederam o massacre de Srebrenica, causando bem mais que 1.000 mortes de civis.

3. As condenações à prisão perpétua pelo Tribunal Penal, do ex-comandante Mladic e do líder sérvio na Bósnia, Radovan Karadzic, foram fortemente baseadas nas “evidências” de ter ocorrido o Genocídio de Srebrenica, com mais de 8.000 execuções, como ressalta Johnstone em seu livro sobre o conflito.

O fato do número de execuções ter sido bem inferior ao que foi aceito pelo consenso, se aceita a versão dos “negacionistas”, e das mortes de prisioneiros terem se dado no contexto do clima tenso que se seguiu à matança de mais de mil civis sérvios nas vilas próximas, não isenta a ambos de responsabilidade pelas execuções. No entanto, estas considerações não foram levadas em conta pelo Tribunal, como possíveis atenuantes nas penalidades impostas, em face de ter prevalecido o “consenso oficial”. Entretanto, para boa parte dos sérvios, Mladic é considerado um herói.

general-mladic

Homenagem ao ex-comandante Mladic 

 

4. Segundo Edward Hermanainda dentro do primeiro mês das mortes em Srebrenica, com as notícias do massacre/genocídio dominando na mídia ocidental, as autoridades da Croácia promoveram uma devastadora “limpeza étnica” de sérvios e muçulmanos no oeste da Bósnia, e a remoção de centenas de milhares de sérvios da região de Krajina, na Croácia, com aprovação e logística dos EUA. Estas operações, em que o número de mortos deve ter chegado a milhares, incluindo mulheres e crianças, não foram praticamente noticiadas na mídia.

5. A série “Revisitando os Conflitos e a Fragmentação da Iugoslávia” terá continuidade no blogue Chacoalhando ao longo do mês de julho.