Ucrânia: o desfecho da guerra está próximo

Por Ruben Rosenthal

A reposição dos suprimentos de munição de artilharia não poderá ser mantida pelo Ocidente no ritmo necessário para conter os russos.

The U.S. has sent Ukraine more than one million rounds of 155-millimeter artillery, which is used in howitzers. BRENDAN MCDERMID/REUTERS
Os Estados Unidos já enviaram à Ucrânia mais de 1 milhão de munições de artilharia para obuses de 155mm \  Foto: Brendan McDermid/Reuters

 Passados mais de 12 meses desde entrada massiva de tropas russas em território ucraniano surgem novos esforços de mediação, na busca de um acordo negociado de paz. China e Brasil se propõem a atuar neste sentido, mas seus esforços podem estar fadados ao fracasso, antes mesmo de serem promovidas reuniões entre representantes das partes em conflito. Como também fracassou a tentativa anterior promovida pela Turquia, meses atrás.

De um lado, Kiev não tem autonomia para buscar negociações, ficando sujeita às decisões do governo estadunidense, que não demonstra estar minimamente interessado na paz. Do outro, Putin não acredita mais em qualquer aceno de negociações que venha do Ocidente, haja vista a farsa do Acordo de Minsk, que fora avalizado no Conselho de Segurança da ONU.

A Rússia foi engabelada por 8 anos, enquanto a OTAN rearmava e treinava as forças armadas ucranianas, como foi reconhecido recentemente por diversas lideranças dos países que atuaram como garantidores do Acordo.

Fortalecida militarmente, a Ucrânia intensificou seus ataques à região de influência russa no Donbass, leste do país, culminando em 24 de fevereiro de 2022 com o que Putin denominou de Operação Especial. A intervenção das tropas russas no território ucraniano representou a escalada dos confrontos bélicos iniciados em 2014, na sequência do golpe de Maidan orquestrado por Washington.

Agora, só a vitória no campo de batalha interessa a Putin, e esta está bem próxima, segundo o analista Scott Ritter*, apesar do armamento moderno que vem sendo enviado à Ucrânia pelo Ocidente Coletivo, em sua guerra por procuração contra a Rússia. Para os EUA e seus aliados, as mortes de dezenas de milhares de ucranianos e destruição da infraestrutura da Ucrânia é um mero detalhe, na busca pelo enfraquecimento da Rússia e de uma eventual derrubada do regime de Putin.

O atual artigo foi em grande parte baseado em recente entrevista concedida por Scott Ritter no programa de Stephen Gardner.

Cenário favorável à Rússia na frente de batalha

Scott Ritter classifica o momento atual da guerra como de conquista de posições logísticas. Tropas russas e ucranianas têm uma linha de contato definida, e bem fortificada de ambos os lados. O chamado complexo de Bakhmut-Soledar é o nó górdio desta linha defensiva. Sua queda representaria o desbaratamento completo da defesa ucraniana.

Conforme relata Ritter, o governo ucraniano decidiu que não vai se retirar de Bakhmut e construir uma nova linha defensiva em um terreno mais alto, que seria, portanto, mais defensável.  Desta forma, Bakhmut se tornou a batalha decisiva da guerra, avalia. O próprio Zelensky reconhece sua tomada resultaria na completa ocupação do Donbass pela Rússia.

Ritter é didático na explicação: os combatentes dos dois lados estão espalhados ao longo de toda a linha de contato, mas o número de tropas ucranianas é finito. Com a queda de Bakhmut, a frente de contato ampliaria dramaticamente. Os ucranianos não possuem mais tropas de reserva para fechar a linha de contato, ao contrário da Rússia, que possui ainda algo como 120 a 200 mil reservistas em treinamento para entrar no campo de batalha. Se Minsk transferir tropas de outras frentes, estará enfraquecendo as defesas como um todo.

Então a queda de Bakhmut representaria o começo do fim da guerra, sentencia o ex-oficial de inteligência dos marines norte-americanos, já que a matemática militar está a favor na Rússia. No entanto, Ritter não incluiu em sua equação a possibilidade de países do Ocidente Coletivo enviar militares para combaterem sob contrato, como mercenários, para tentar manter incólumes as linhas de defesa ucranianas, ou mesmo promover novas ofensivas.

Em entrevista ao jornalista Aaron Maté, o ex-conselheiro sênior do Pentágono Doug McGregor, coronel aposentado do exército estadunidense, revelou que 20 mil poloneses já lutam sob ordens do comando ucraniano, usando uniforme ucraniano; já teriam morrido 2.500 poloneses nos combates. Mas a equação das munições de artilharia também precisa ser resolvida.

Até o momento, a melhor qualidade dos armamentos de artilharia do exército ucraniano, com munição de 155mm, associada à inteligência fornecida pelos EUA, vem conseguindo se contrapor ao alto poder de fogo do exército russo. Entretanto, o próprio secretário-geral da aliança militar, Jens Stoltenberg, já alertou que a intensidade do conflito está consumindo munição mais rapidamente do que EUA e OTAN podem repor, conforme noticiado no site Forças Terrestres.

Com alguns aliados dos EUA relutantes ou incapazes de fornecer munição suficiente para a Ucrânia, os EUA estão procurando obter suprimentos de munição em vários locais, incluindo Israel, Coréia do Sul, Alemanha e Kuwait. No entanto, a reposição da munição de artilharia poderá não ser mantida pelo Ocidente no ritmo necessário para conter os russos. Ritter considera que a escassez deverá ocorrer ao mesmo tempo em que a frente de contato dos dois exércitos se expandirá com queda esperada de Bakhmut.

Ainda segundo Ritter, o terceiro componente nesta etapa decisiva é confronto travado no ar. De um lado, o sistema de defesa aérea da Ucrânia. Do outro, os mísseis de longa distância lançados pela Rússia, sejam terra-terra, lançados do mar ou do ar, como os mísseis cruzeiro. Em particular, a Rússia conta com o míssil hipersônico Kinzhal-47M2, com capacidade nuclear e alcance de até 2 mil quilômetros

Quando os russos começaram a campanha aérea estratégica eles conseguiram infligir sérios danos à infraestrutura da Ucrânia, em particular a de geração de energia. A OTAN reforçou a defesa antiárea ucraniana contra mísseis e drones russos com o sistema norueguês NASAMS (National/Norwegian Advanced Surface to Air Missile System), e com o avançado sistema terra-ar norte-americano, o MIM-104 Patriot.

Começou então um jogo de gato e rato, com os russos testando e avaliando as defesas da Ucrânia, de forma sucessiva, até que finalmente conseguiram desvendar o esquema de funcionamento da defesa antiaérea ucraniana. Foram então lançados 6 drones e 81 mísseis, incluindo 6 mísseis Khinzal, boa parte deles atingindo os alvos pretendidos. A defesa antiaérea ucraniana teria conseguido destruir 34 mísseis cruzeiro e 4 drones suicida Shahed. Nenhum Khinzal foi interceptado.

Se até recentemente o uso dos mísseis hipersônicos russos no conflito era bastante comedido, agora que a Rússia conseguiu triplicar sua produção, não há nada que os ucranianos possam fazer para detê-los, sentencia Ritter.  Conforme os russos incorporam mais mísseis hipersônicos ao seu arsenal, o sistema de defesa antiaérea da Ucrânia irá colapsar.

Em Washington, vozes mais belicistas, como a senador republicano Lindsey Graham, defendem o envio dos modernos caças F-16 à Ucrânia, para dar apoio aos tanques M1 Abraham – com entrega prevista pelos EUA apenas para o final do ano – de forma a possibilitar uma ofensiva que corte a ligação terrestre da Rússia com a Crimeia através do Donbass, o que abalaria o prestígio interno de Putin. No entanto, antes do final do ano o destino da Ucrânia poderá já estar selado.

Segundo avalia Ritter, em paralelo com a destruição completa do poder militar da Ucrânia ocorrerá o colapso da economia do país e do governo de Zelensky, e isto deverá ocorrer no máximo até setembro ou outubro próximos. Quando finalmente ocorrerem as negociações de paz, Kiev e o Ocidente poderão se perguntar se não teria sido melhor, anos antes, terem levado adiante os Acordos de Minsk.

*Scott Ritter é ex-oficial de inteligência do Corpo de Marines dos EUA, tendo servido na antiga União Soviética, implementando tratados de controle de armas; no Golfo Pérsico, durante a Operação Tempestade no Deserto; e no Iraque, na supervisão do desmantelamento das armas de destruição em massa. O seu livro mais recente é Disarmament in the Time of Perestroika, pela Clarity Press.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, no canal da TV GGN.

Cenários para a guerra na Ucrânia em 2023

Por Scott Ritter*

Tradução e comentários por Ruben Rosenthal, do artigo publicado em 11 de janeiro de 2023 no Consortium News.

Dado o histórico enganoso dos Acordos de Minsk, é improvável que a Rússia possa ser dissuadida através de diplomacia a abrir mão de sua ofensiva militar. Assim, 2023 parece estar se configurando como um ano de confrontação violenta constante.

Ukrainian artillery fires in the fiercely-contested Bakhmut region of eastern Ukraine on November 8, 2022. Bulent Kilic/AFP via Getty Images
Disparos da artilharia ucraniana pelo controle da região de Bakhmut, leste da Ucrânia, novembro 2022 \ Foto: Bulent Kilic/AFP via Getty Images

 Depois de quase um ano de ações dramáticas, onde os avanços iniciais dos russos foram recebidos com impressionantes contraofensivas ucranianas, as linhas de frente no conflito em curso se estabilizaram, com ambos os lados envolvidos em sangrentos combates por posições, em uma brutal disputa de desgaste, enquanto aguardam pela próxima grande iniciativa de algum dos lados.

À medida que o aniversário de um ano da invasão da Ucrânia pela Rússia se aproxima, o fato de a Ucrânia ter chegado tão longe no conflito representa uma vitória moral e, em menor grau, militar. Assim como a chefia do Estado-Maior Conjunto dos EUA e a direção da CIA, a maioria dos altos oficiais militares e de inteligência do Ocidente avaliou no início de 2022 que uma grande ofensiva militar russa contra a Ucrânia resultaria em uma rápida e decisiva vitória russa.

A resiliência e a fortaleza dos militares ucranianos surpreenderam a todos, mesmo aos russos, cujo plano de ação inicial, incluindo a alocação de forças para o empreendimento, se mostrou inadequado para alcançar os objetivos pretendidos. Entretanto, é enganadora a percepção de uma vitória ucraniana.

Morte da diplomacia

Conforme a poeira assenta no campo de batalha, emerge um padrão em relação à visão estratégica por trás da decisão da Rússia de invadir a Ucrânia. Enquanto a narrativa ocidental dominante continuava a retratar a ação russa como um ato precipitado de agressão não provocada, surgiram fatos que sugerem que pode ter mérito a alegação russa de autodefesa coletiva preventiva, conforme o Artigo 51 da Carta das Nações Unidas

As recentes admissões por parte dos líderes de líderes responsáveis pela adoção dos Acordos de Minsk de 2014 e 2015 (o ex-presidente ucraniano Petro Poroshenko, o ex-presidente francês François Hollande e a ex-chanceler alemã Angela Merkel) mostram que se tratava de uma farsa que os acordos de Minsk visassem promover a resolução pacífica do conflito entre o governo ucraniano e os separatistas pró-russos, deflagrado  no Donbass após 2014.

De acordo com esta “troika”, os Acordos de Minsk foram pouco mais do que um meio de se ganhar tempo para que a Ucrânia pudesse construir, com ajuda da OTAN, um poder militar capaz de subjugar o Donbass e expulsar a Rússia da Crimeia.

Conversações do Acordo de Minsk, novembro de 2015
Presidente russo Vladimir Putin, Presidente francês François Hollande, Chanceler alemã Angela Merkel, Presidente ucraniano Petro Poroshenko: conversações no formato da Normandia em Minsk, Bielorrússia, Fevereiro de 2015 \ Fonte: Kremlin

Por esta ótica, o estabelecimento pelos EUA e pela OTAN de uma instalação permanente de treinamento no oeste da Ucrânia – onde foram treinados pelos padrões da OTAN cerca de 30 mil soldados ucranianos entre 2015 e 2022, com o único propósito de confrontar a Rússia no leste da Ucrânia – assume uma perspectiva totalmente nova.

A duplicidade admitida por Ucrânia, França e Alemanha contrasta com a insistência da Rússia, antes de sua decisão de 24 de fevereiro de 2022 de invadir a Ucrânia, de que os Acordos de Minsk fossem implementados na íntegra.

Em 2008, o ex-embaixador dos EUA na Rússia e atual diretor da CIA, William Burns, alertou que qualquer tentativa de ingresso da Ucrânia na OTAN seria visto pela Rússia como uma ameaça à sua segurança nacional, e que a determinação em concretizar tal filiação provocaria uma intervenção militar russa. O memorando de Burns fornece o contexto em que se deram as iniciativas da Rússia, de 17 de dezembro de 2021, de criar uma nova estrutura de segurança europeia, que manteria a Ucrânia fora da OTAN.

Simplificando, a meta da diplomacia russa foi de evitar o conflito. O mesmo não se pode dizer da Ucrânia ou de seus parceiros ocidentais, que buscaram uma política de expansão da OTAN, associada à resolução das crises do Donbass e da Crimeia através de meios militares.

A reação do governo russo ao fracasso de seus militares em derrotar a Ucrânia nas fases iniciais do conflito, fornece uma importante entendimento sobre o modo de pensar da liderança russa, em relação às suas metas e objetivos.

Negada uma vitória decisiva, os russos pareciam dispostos a aceitar um resultado que limitava os ganhos territoriais russos ao Donbass e à Crimeia, e a um acordo para a Ucrânia não aderir à OTAN. De fato, a Rússia e a Ucrânia estiveram à beira de formalizar um acordo nesse sentido, nas negociações programadas para ocorrer em Istambul, no início de abril de 2022.

No entanto, esta negociação naufragou após a intervenção do então primeiro-ministro britânico Boris Johnson, que condicionou a continuidade da assistência militar à Ucrânia, à disposição de Kiev em buscar a resolver o conflito no campo de batalha, em oposição a uma solução negociada. A intervenção de Johnson foi motivada pela avaliação, por parte da OTAN, que os fracassos iniciais dos militares russos eram indicativos de fraqueza.

O objetivo da OTAN foi de usar o conflito russo-ucraniano como uma guerra por procuração destinada a enfraquecer a Rússia, para que esta nunca mais procurasse empreender uma aventura militar semelhante à da Ucrânia. Associada à malfadada guerra econômica, o objetivo também foi remover Putin do poder, como admitido pelo presidente Joe Biden em março de 2022.

Reviravolta no jogo não traz vitória ucraniana

Os objetivos da OTAN se refletem nas declarações públicas de seu secretário-geral, o general Jens Stoltenberg: “Se Putin vencer, isso não significará apenas uma grande derrota para os ucranianos, mas também derrota e perigo para todos nós”. E também do secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin: “Queremos ver a Rússia enfraquecida, ao ponto em que jamais poderá novamente fazer o tipo de coisas que fez ao invadir a Ucrânia”.

Esta política serviu de impulso para injetar mais de 100 bilhões de dólares em assistência, incluindo dezenas de bilhões em equipamentos militares avançados para a Ucrânia. A infusão massiva de ajuda foi um evento que mudou o jogo, permitindo que o exército ucraniano fosse reconstituído, treinado, equipado e organizado segundo os padrões da OTAN. A Ucrânia fez a transição de uma postura principalmente defensiva para outra em que foram lançados contra-ataques em larga escala, que conseguiram expulsar as forças russas de grandes áreas da Ucrânia. Não foi, no entanto, uma estratégia que ganharia o jogo – longe disso.

As impressionantes realizações militares dos ucranianos, facilitadas através da prestação de ajuda militar pela OTAN, tiveram um enorme custo em vidas e materiais. Embora o cálculo exato das baixas sofridas por ambos os lados seja difícil de determinar, há um reconhecimento generalizado, mesmo dentro do governo da Ucrânia, de que as perdas ucranianas foram pesadas.

Matemática Militar

Com as linhas de batalha atualmente estabilizadas, a questão de qual lado do conflito a guerra vai favorecer a partir de agora se resume à matemática militar básica. Em suma, uma relação causal entre duas equações básicas que giram em torno das taxas de queima (com que rapidez as perdas ocorrem) versus as taxas de reabastecimento (com que rapidez essas perdas são repostas). O cálculo traz um mau presságio para a Ucrânia.

Nem a OTAN nem os Estados Unidos parecem capazes de sustentar a quantidade do armamento já entregue à Ucrânia, e que permitiu que as contraofensivas contra os russos fossem bem-sucedidas.

Estes equipamentos foram em grande parte destruídos e, apesar da insistência da Ucrânia em obter mais tanques, veículos de combate blindados, artilharia e defesa aérea, e de que a nova ajuda militar seja provável, esta demorará a chegar e virá em quantidade insuficiente para ter um impacto decisivo no confronto bélico.

Da mesma forma, o número de vítimas sofrido pela Ucrânia, que às vezes chegou a mais de mil homens por dia, excede em muito a sua capacidade de mobilizar e treinar substitutos. A Rússia, por outro lado, está no processo de finalizar a mobilização de mais de 300 mil homens, que parecem estar equipados com os sistemas de armas mais avançados do arsenal russo.

Quando a totalidade dessas forças estiver no campo de batalha – em algum momento até o final de janeiro –  a Ucrânia não terá resposta. Esta dura realidade, quando combinada com a anexação pela Rússia de mais de 20% do território da Ucrânia e danos à infraestrutura que se aproximam de 1 trilhão de dólares, traz um mau presságio para o futuro da Ucrânia.

Há um velho ditado russo que diz: “Um russo põe a sela devagar, mas cavalga rápido”. Isso parece ser o que está acontecendo em relação ao conflito russo-ucraniano.

Tanto a Ucrânia quanto seus parceiros ocidentais estão lutando para manter um conflito que iniciaram quando rejeitaram um possível acordo de paz em abril de 2022. A Rússia conseguiu se reagrupar em grande parte – após um período na defensiva – e parece estar pronta para retomar as operações ofensivas em larga escala, para as quais nem a Ucrânia e nem seus parceiros ocidentais terão uma resposta adequada.

Além disso, dado o histórico enganoso dos Acordos de Minsk, é improvável que a Rússia possa ser dissuadida através da diplomacia a abrir mão de sua ofensiva militar. Assim, 2023 parece estar se configurando como um ano de confrontação violenta constante, que levará a uma vitória militar russa decisiva.

Como a Rússia alavancará tal vitória militar para obter um acordo político sustentável que resulte em paz e segurança regionais é outra história, ainda a ser vista.

Comentários do tradutor: Resta ver se a antecipação feita por Scott Ritter de uma decisiva vitória russa leva em conta a determinação dos países aliados da Ucrânia de que este cenário não se concretize.  Cedendo a pressões de Kiev e de seus aliados, a Alemanha anunciou em 25 de janeiro que enviará 14 tanques de guerra do tipo Leopard-2-A6, provenientes do arsenal da Bundeswehr, as Forças Armadas do país, para reforçar a Ucrânia na luta contra as tropas russas.  A  Alemanha também autorizou que parceiros europeus possam repassar seus tanques Leopard à Ucrânia, de forma a montar rapidamente dois batalhões com estes blindados. Por outro lado, os Estados Unidos vão enviar tanques Abrams M1 para a Ucrânia, embora possa levar meses até que a entrega seja feita.

Assim, os cenários para a guerra na Ucrânia em 2023 podem não estar ainda definidos. A única certeza é o aumento no número de mortes de civis e militares dos dois lados. Lembrando que os 300 mil russos que foram recrutados para o campo de batalha também são civis, que tiveram que deixar suas famílias para ajudar no esforço de guerra. Uma guerra sem fim entre OTAN e Rússia?

*Scott Ritter é ex-oficial de inteligência do Corpo de Marines dos EUA, tendo servido na antiga União Soviética, implementando tratados de controle de armas; no Golfo Pérsico, durante a Operação Tempestade no Deserto; e no Iraque, na supervisão do desmantelamento das armas de destruição em massa. O seu livro mais recente é Disarmament in the Time of Perestroika, pela Clarity Press.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, no canal da TV GGN.

Guerra OTAN-Rússia na Ucrânia caminha para conflito nuclear?

Por Ruben Rosenthal

A escalada do confronto entre OTAN e Rússia parece ter entrado em modo automático e irreversível, com consequências impossíveis de serem previstas.  

Doomsday clock at 100 seconds to midnight
O Relógio do Juízo Final ou do Apocalipse marca 100 segundos para a meia-noite

Os recentes ganhos de território pelas tropas ucranianas usando armamento avançado da OTAN, e os atos de sabotagem contra os gasodutos Nord Stream e possivelmente contra a ponte que conecta Rússia e Crimeia podem requerer uma resposta enérgica de Vladimir Putin. Moscou sabe, no entanto, que do ponto de vista político, o uso de armas nucleares táticas seria contraprodutivo no momento, e deverá reservar o seu uso como último recurso para não perder a guerra contra os Estados Unidos e seus aliados da OTAN.

Como os EUA não estão minimamente interessados em que Rússia e Ucrânia cheguem a um acordo de paz que não seja humilhante para a Rússia, o conflito nuclear se coloca como mais que uma remota possibilidade, 60 anos após a crise dos mísseis em Cuba, que deixou o mundo à beira do Armagedon.

Em retrospecto, na sequência da entrada de tropas russas para a Ucrânia em fevereiro, o Ocidente ampliou o boicote à economia russa com foco na energia, ao mesmo tempo em que promoveu o envio maciço de armamento sofisticado da OTAN para ser usado pelos ucranianos na frente de batalha.

Da mesma forma que já haviam bloqueado há anos a implementação dos acordos de Minsk, que concederiam certo grau de autonomia para as províncias ucranianas de Donetsk e Luhansk, os EUA e seus aliados sabotaram as negociações de paz entre Rússia e Ucrânia, quando estas começavam a avançar. O presidente Zelensky foi instado pelo então primeiro-ministro britânico Boris Johnson a não prosseguir com as negociações, quando se reuniram em Kiev, em abril.

A política de Washington e de seus aliados é perfeitamente coerente com estratégia de sobrecarregar a economia da Rússia, preconizada há anos no relatório da Rand Corporation, think tank financiado pelas forças armadas norte-americanas. Uma das formas propostas seria exatamente forçando o engajamento de tropas russas no exterior. Outra forma é comprometendo as receitas que a Rússia obtém através da venda de hidrocarbonetos.

No campo da energia, os gasodutos Nord Stream 1 e 2, construídos para abastecer a Europa com gás russo, foram sabotados em 26 de setembro, data em que foram registradas poderosas explosões por sismógrafos na Dinamarca e Suécia. O Nord Stream 2 já estava concluído, mas ainda não entrara em operação, por retaliação da Alemanha pela invasão russa, enquanto que o outro gasoduto encontrava-se em manutenção. Seguiram-se trocas de acusações entre a Rússia e países da OTAN sobre a responsabilidade pelo atentado.

No cenário da guerra, embora a campanha de desinformação esteja sendo usada em larga escala nos meios de comunicação do Ocidente, as indicações são de que os ucranianos estão conseguindo sustar o avanço das tropas russas, e mesmo expulsá-las de algumas regiões que já haviam conquistado. A reação de Putin foi de convocar 300 mil reservistas e ameaçar o uso tático de armas nucleares.

A anexação formal pela Rússia, em 30 de setembro, das quatro províncias parcialmente ocupadas – Donetsk, Luhansk (que constituem o Donbass), Kherson e Zaporíjia – após um referendo confirmatório, abriria o caminho para o uso de armas nucleares em defesa da integridade dos territórios incorporados à pátria Rússia.

Para o economista norte-americano Jeffrey Sachs professor da Universidade de Columbia, o atual conflito na Ucrânia corresponde, em essência, a uma Segunda Guerra da Criméia. Desta vez, uma aliança militar liderada pelos EUA procura expandir a OTAN até a Ucrânia e Geórgia, ampliando a presença da Organização no estratégico Mar Negro.

A escalada do confronto entre OTAN e Rússia parece ter entrado em modo automático e irreversível, com consequências impossíveis de serem previstas.

O boicote à exportação da energia russa

Em artigo de 22 de setembro no think tank russo Valdai Club, o acadêmico e especialista em energia Vitaly Yermakov analisou em detalhes, como as medidas dos EUA e da União Européia (UE) para boicotar as receitas da Rússia com a venda de combustíveis estavam fadadas ao fracasso.

A guerra na Ucrânia fez com que a UE procurasse apressar o até então gradual processo de independência em relação aos combustíveis fósseis exportados pela Rússia. O boicote começou com o carvão (desde 11 de agosto de 2022), e deverá incluir também o petróleo bruto (a vigorar em 5 de dezembro de 2022) e produtos refinados (a partir de 1º de fevereiro de 2023). A UE também anunciou planos de eliminar completamente suas importações de gás russo até 2027.

Até agora, a Rússia tem sido resiliente, e conseguiu introduzir contramedidas eficazes, como redirecionar suas exportações de carvão e petróleo para a Ásia. Além disso, passou a oferecer suas commodities de energia com descontos significativos, evitando assim a necessidade de reduzir drasticamente a produção. Com as tensões geopolíticas em 2022, os preços globais do petróleo aumentaram significativamente, reforçando as receitas de exportação da Rússia, mesmo após os descontos.

Com o conflito na Ucrânia ainda está se arrastando, e a proximidade do inverno europeu, a UE passou a enfrentar um dilema: colocar em prática o embargo petrolífero em dezembro, arriscando nova disparada nos preços do petróleo, o que poderia trazer insatisfação da população em seus países, ou então deixar de lado a implementação do embargo e perder credibilidade.

Como alternativa, foi então concebida a ideia de impor limites de preços sobre os combustíveis exportados pela Rússia, negando a este país receitas extras que até então vinham preservando a economia russa de ser afetada pelas amplas sanções econômicas. Para o plano funcionar seria criado um cartel de compradores, que determinaria o limite de preço para o petróleo russo.

Para induzir compradores e transportadores a cooperar com o plano, seria negado o seguro marítimo internacional – majoritariamente controlado pela empresa Lloyds de Londres – a qualquer carga russa que não estivesse cumprindo os limites de preços. Ideias semelhantes começaram surgir na UE sobre fixar os preços do gás russo.

No entanto, sem a anuência de países como China e índia, tal plano nasceu já fadado ao fracasso. O presidente Vladimir Putin, falando no Fórum Econômico Oriental em Vladivostok, em 7 de setembro, alertou que a Rússia cortaria todo o fornecimento de energia para países que tentassem impor limites de preços às exportações russas.

A sabotagem dos gasodutos Nord Stream

O relato das explosões que danificaram os gasodutos Nord Stream 1 e 2 no noticiário da mídia corporativa do Ocidente revela como ela está alinhada com o esforço de guerra da OTAN.  No britânico The Guardian: Rússia é suspeita de ter executado as explosões para colocar pressão no fornecimento de energia.  No The New York Times: A CIA havia alertado os governos europeus de um possível ataque aos gasodutos. Na CNN: oficiais europeus de segurança haviam observado navios e submarinos russos em locais não distantes de onde ocorreram os vazamentos.

Gas leakage from Nord Stream 2
Gás emanando do vazamento do gasoduto Nord Stream 2 \ Foto: Airbus DS2022/AFP via Getty Images

No entanto, a versão de que a Rússia teria sido responsável pelas explosões não se sustenta, pois o dano aos gasodutos também significa que ela perde um elemento de pressão que ainda tinha sobre a Europa. Por outro lado, não é difícil identificar os beneficiários da interrupção do fornecimento do gás russo. O secretário de estado norte-americano Antony Blinken celebrou o que chamou de “tremenda oportunidade de remover a dependência (da Europa) no gás russo” (ver vídeo).

A Ucrânia sempre se opôs a entrada em operação do Nord Stream 2 , pois representaria a perda das vultosas receitas provenientes dos gasodutos russos subterrâneos que atravessam seu território, construídos durante o período da União Soviética. Não apenas Kiev, mas também a Polônia e os Países Bálticos haviam se aliado aos EUA para impedir a implementação do Nord Stream 2. Os norte-americanos chegaram a impor sanções às empresas russas e alemãs envolvidas na construção do gasoduto

O ex-ministro polonês das relações exteriores, Radosław Sikorski, atualmente no Parlamento Europeu, gerou forte controvérsia ao postar um tuíte que inclui uma foto do vazamento de gás no gasoduto danificado, acompanhada das palavras: “Obrigado, EUA”.  O agradecimento indica que Biden teria cumprido a promessa que fizera semanas antes da entrada das tropas russas na Ucrânia, caso a Rússia invadisse o país vizinho: “o gasoduto Nord Stream 2 deixará de existir; vamos acabar com ele”.

“Coincidentemente”, estava prevista para a primeira semana de outubro a entrada em operação do Baltic Pipe, o gasoduto construído pela Polônia com apoio da UE. O gasoduto irá levar gás natural da Noruega para a Europa Central através da costa da Polônia, podendo alcançar por terra outros países da região.

Em entrevista no canal de TV a cabo Bloomberg, o professor Jeffrey Sachs declarou “apostar que (a explosão) foi uma operação dos EUA, talvez EUA e Polônia”. Segundo ele, a motivação seria prejudicar ainda mais a economia russa. A entrevista foi rapidamente interrompida pelo apresentador do programa, após o professor emitir sua opinião.

Deve-se ainda levar em consideração que, com os dois gasodutos impossibilitados de operar não haveria como os governos da UE ceder aos protestos de suas populações, que já começam a ocorrer. No entanto, uma das quatro linhas do Nord Stream 2 não foi danificada, e poderia fornecer gás para a Europa. Resta ver se o governo alemão autorizaria a utilização no abastecimento do país, ou se vai continuar submetido à pressão dos EUA, prejudicando assim sua própria população.

A extrema-direita alemã já está capitalizando a insatisfação da população com o aumento do custo de vida resultante da escassez energética. Apoiadores do partido Alternativa para a Alemanha (AfD) se reuniram em frente ao prédio do Reichstag em Berlim, em 8 de outubro, para protestar contra o aumento dos preços na Alemanha (ver vídeo). O co-líder do partido acusou o governo de travar uma guerra contra seu próprio povo, ao impor sanções à Rússia.

Um país que colocou em primeiro lugar seus próprios interesses foi a Arábia Saudita. Uma coalizão de nações produtoras de petróleo liderada pela Rússia e Arábia Saudita anunciou em 5 de outubro uma redução na produção de petróleo em 2 milhões de barris por dia, o que deverá levar ao aumento dos preços do gás em todo o mundo e reforçar a economia Rússia em seu esforço de guerra.

Referendo Fake de anexação?

Para o ex-embaixador britânico Craig Murray, defensor da independência da Escócia e forte crítico da expansão da OTAN, o referendo de anexação pela Rússia promovido nas regiões ocupadas pelas tropas russas foi irregular.

Além de questionar se foram seguidas as regras básicas para a realização de um referendo internacional, Murray considera que o resultado que foi divulgado, em que mais de 90% de votos nas quatro regiões ocupadas foram favoráveis à anexação, estaria longe de refletir a real proporção da população de origem russa nestas regiões.

Regions anexed by Russia after the 2022 referendum
O mapa mostra as regiões anexadas à Rússia após o referendo de 2022 \ Fonte: Instituto para o Estudo da Guerra/BBC

Murray apresenta os resultados do último censo realizado na Ucrânia, em 2001. Em Donetsk, os russos representavam 38,2% e os ucranianos, 56,9%. Em Luhansk: russos-39,0%, ucranianos-58,0. Em Kherson: russos-14,1, ucranianos-82,0. Em Zaporíjia- russos-24,7, ucranianos-70,8. Já na Criméia, os russos representavam de fato a maioria da população, com 58,3%, enquanto os ucranianos constituíam 24,3% e os tártaros 12,0%.

Assim, para o ex-embaixador, se constituiria em falácia a propalada versão de que as províncias de Donetsk e Luhansk, que constituem o Donbass, seriam constituídas majoritariamente de habitantes de origem russa, mesmo levando em conta o percentual de ucranianos que adotaram o russo como língua principal.

Por outro lado, Murray não leva em conta a possibilidade de que, nas regiões anexadas, parte da população de origem ucraniana – majoritariamente rural ­– pode ter abandonado suas casas desde o início dos conflitos em 2014, após o golpe que afastou o presidente eleito de origem russa, Victor Yanukovych. De qualquer forma, a discrepância é bem significativa, e levanta questionamentos sobre a lisura do processo de consulta.

O ex-embaixador considera ainda que Putin está caindo no jogo estratégico dos Estados Unidos de sangrar a Rússia, em uma guerra na qual a tecnologia militar do Ocidente é imensamente superior. Para Murray, os 300 mil reservistas que Putin enviará para a guerra serão abatidos à distância, sem nem mesmo ver o inimigo.

Para Scott Ritter, ex-oficial de inteligência do Corpo de Marines dos EUA, a decisão de Putin de simultaneamente mobilizar os reservistas russos, enquanto absorve o território do sul e leste da Ucrânia para a Federação Russa, coloca a OTAN em novo dilema: continuar a fornecer apoio material e financeiro maciço à Ucrânia, tornando-se parte direta do conflito, algo que ninguém no bloco quer, ou então recuar do apoio bélico à Ucrânia.

Explosão danifica a ponte Rússia-Crimeia

No sábado, 8 de outubro, foi parcialmente destruída a ponte que liga Rússia e Crimeia, que havia sido inaugurada por Putin em 2018. As suposições iniciais eram de ela poderia ter sido alvo de um míssil ucraniano ou da explosão de um caminhão-bomba, ocasionando ainda incêndios em vagões de trem contendo combustível. O presidente russo já acusou a Ucrânia pelo incidente. Um alto oficial do Segurança nacional ucraniana postou um vídeo do incêndio, acompanhado da canção “Feliz Aniversário, Sr. Presidente” (cantada por Marilyn Monroe), se referindo ao aniversário de Vladimir Putin na véspera.

A retaliação da Rússia veio na segunda-feira, 10 de outubro, através de bombardeios maciços em várias cidades. Segundo o Ministério da Defesa da Ucrânia, a Rússia disparou ao menos 83 mísseis contra Kiev, Lviv e Zaporíjia. A capital ucraniana não era bombardeada desde que o foco da guerra mudara para a conquista da região leste da Ucrânia após as primeiras semanas do início do conflito.

O Relógio do Juízo Final ainda permanece em 100 segundos para a meia-noite. Até quando?

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

 

 

A Turquia move suas peças no xadrez da guerra OTAN-Rússia

Por Ruben Rosenthal

A decisão da Turquia de enviar um navio-sonda para explorar reservas de gás nas proximidades de Chipre pode inflamar a região, e tornar ainda mais conturbado o relacionamento da Turquia com os demais países da OTAN.

Turkish President Recep Tayyip Erdogan poses with Turkey's new drill ship Abdulhamid Han at Tasucu port in the Mediterranean Turkish city of Mersin [Presidential Press Office/Handout via Reuters]
Presidente turco Recip Erdogan no lançamento do navio-sonda Abdulhamid Han, em Mersin / Foto: Imprensa presidencial via Reuters.
 Desde o início da invasão do território ucraniano por tropas russas, a Turquia vem mantendo uma política equilibrada em relação às partes beligerantes, bem como canais de diálogo com Moscou e Kiev. Mas esta estratégia pode ser alterada a favor da Rússia. O recente envio do navio-sonda turco Abdullhamid Han para explorar grandes jazidas de gás nas proximidades de Chipre tem o potencial de inflamar tensões regionais. Caso os Estados Unidos e a União Europeia (UE) se posicionem – como esperado – contra a Turquia, Ancara poderá retaliar, revendo a atual política de equidistância no conflito bélico.

Turquia: neutralidade ou oportunismo?

A Turquia faz parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), mas ao mesmo tempo, desempenha um papel independente. A decisão de Ancara de fechar os estreitos de Bósforo e Dardanelos a navios de guerra limitou a capacidade da marinha russa no Mar Negro, mas também impede que potências da OTAN possam interferir no conflito através de suas marinhas de guerra.

Segundo o analista russo Ivan Timofeev, do think tank russo Valdai Club, a Turquia parece ser um dos principais beneficiários do conflito. Ancara manobra habilmente, beneficiando-se de todos os lados.

A diplomacia turca se opõe à operação militar da Rússia e mostra solidariedade com os aliados da OTAN. Ancara está fornecendo armas à Ucrânia, incluindo drones Bayraktar. Acrescente-se que a Turquia não reconheceu a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014.

Ao mesmo tempo, Ancara mantém relações construtivas com Moscou, e está desempenhando um importante papel como mediador econômico nas relações entre a Rússia e o Ocidente. O presidente Recep Erdogan recusou-se a implementar as sanções impostas pelo Ocidente contra a Rússia. As empresas turcas estão se preparando para ocupar uma série de nichos que ficaram disponíveis com a retirada de empresas ocidentais do mercado russo. A Turquia demonstrou flexibilidade nas relações financeiras com Moscou, aceitando cartões Mir (versão russa do Visa ou MasterCard). O país está se tornando um centro (hub) único de tráfego.

Esta equidistância pragmática possibilitou que Ancara tentasse desempenhar um papel mediador na resolução do conflito. Embora tais esforços não tenham sido ainda bem sucedidos, a intermediação contribuiu para resolver a questão da exportação dos grãos ucranianos e fortaleceu o status internacional de Ancara. Para o complexo militar-industrial turco, o conflito ampliou o mercado e as oportunidades de mostrar seus equipamentos bélicos em ação.

Exploração das reservas de gás do Mediterrâneo

Mesmo antes da crise energética decorrente do conflito na Ucrânia, as jazidas de gás natural do Mediterrâneo Oriental localizadas nas proximidades da costa de Chipre já atraíam o interesse de empresas petrolíferas, como a norte-americana Exxon Mobile, a francesa Total, e a italiana ENI.

No final da década de 2000, após Israel anunciar a descoberta de jazidas de gás natural na região, o governo de Chipre contratou diversas empresas de energia para iniciarem a prospecção de hidrocarbonetos ao redor da ilha. Em Dezembro de 2011, a empresa norte-americana Noble Energy anunciou a descoberta de “significativos recursos de gás natural”.

Segundo relato da Al Jazeera, em janeiro de 2019 foi constituído o Fórum de Gás do Mediterrâneo Oriental – órgão multinacional sediado no Cairo – reunindo diversos governos, inclusive de Israel e a Autoridade Palestina, mas excluindo a Turquia. Um ano depois, Chipre, Grécia e Israel assinaram um acordo para construir o gasoduto EastMed, de 1.872 quilômetros de comprimento, para transportar gás cipriota offshore para a Grécia e Itália.

Traçado planejado para o gasoduto EastMed
Traçado planejado para o gasoduto EastMed atravessa águas territoriais pretendidas pelos cipriotas turcos (linhas hachuradas)

Para Ancara, qualquer benefício desta exploração também deveria contemplar também os cipriotas turcos, e permanecer dependente das negociações sobre a reunificação da ilha mediadas pela ONU, mas que se encontram em impasse. O Chipre foi dividido na sequência da intervenção militar turca em 1974, entre o Sul cipriota grego e o Norte cipriota turco, que ocupa cerca de um terço do território, mas não é reconhecido pelas Nações Unidas.

No final de 2019, o Congresso dos EUA levantou o embargo de armas ao Chipre e aumentou a ajuda externa à ilha, para demonstrar o apoio à exploração de gás, onde estava envolvida a empresa Exxon Mobil.

Grécia e Turquia estiveram à beira de um confronto militar em agosto e setembro de 2020, depois que a Turquia lançou seu navio de pesquisa sísmica Oruc Reis – acompanhado de uma pequena frota naval – para explorar petróleo e gás em áreas do Mediterrâneo Oriental, que a Grécia reivindica como parte de sua plataforma continental e Zona Econômica Exclusiva. A França anunciou que iria reforçar temporariamente sua presença militar na região em apoio à Grécia.

As tensões aumentaram, até que, sob ameaça de sanções econômicas pela UE, a Turquia interrompeu a exploração do gás em dezembro de 2020. No entanto, o projeto do gasoduto não foi adiante na ocasião por questões de viabilidade econômica. As companhias petrolíferas internacionais estavam sob o impacto dos baixos preços do petróleo e gás e das enormes perdas com a pandemia. O momento era de corte de gastos e não de novos e dispendiosos investimentos.

A crise energética na Europa

Com a guerra na Ucrânia resultando em uma crise energética global, no aumento dos preços do gás natural, e em uma nova política energética pela UE visando acabar o mais rápido possível com a dependência do continente do gás russo, foi reacendido o interesse pelo gasoduto EastMed. Entretanto, os EUA retiraram seu apoio ao projeto em janeiro, citando preocupações com a sustentabilidade técnica e comercial.

Muitos analistas preveem que os níveis de preços internacionais do gás natural permanecerão elevados por um período prolongado, o que poderia fazer do EastMed um investimento lucrativo para as empresas que construírem e operarem o gasoduto, que tem um custo previsto em 6,1 bilhões de euros.

Conforme declaração à Al Jazeera de Ana Maria Jaller-Makarewicz, do Instituto para Economia em Energia e Análise Financeira (IEEFA, na sigla em inglês), “o EastMed pode ser economicamente viável agora, porque os preços da energia são muito altos, mas provavelmente não será a longo prazo”.  Para a especialista em energia, existem opções mais limpas e baratas que estão sendo ignoradas, como reduzir a demanda através das bombas de calor, que podem aquecer ambientes mesmo quando as temperaturas externas estão abaixo de zero graus centígrados.

Havendo ou não interesse da União Europeia em apoiar a construção do gasoduto, a decisão da Turquia de enviar um navio-sonda para explorar reservas de gás nas proximidades de Chipre pode inflamar a região, e tornar ainda mais conturbado o relacionamento da Turquia com os demais países da OTAN. A tentativa de golpe contra Erdogan em 2016 originou uma crise de confiança dos turcos em relação aos Estados Unidos e aos aliados do Ocidente. Por outro lado, o incidente da derrubada de um jato russo pela Turquia em 2015 foi plenamente superado, tanto que Moscou forneceu à Turquia o sistema russo de mísseis de defesa S400, para insatisfação da OTAN.

Erdogan declarou quando da cerimônia de lançamento ao mar do Abdulhamid Han: “O trabalho de pesquisa e perfuração que estamos realizando no Mediterrâneo está sendo conduzido dentro do nosso território soberano. Não precisamos receber permissão ou consentimento de ninguém para isso”.  A Rússia permanece como expectadora do desenrolar desta crise, que poderá auxiliá-la na condução da guerra na Ucrânia.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Zelensky liberta estupradores e torturadores para lutarem na frente de combate

Por Ruben Rosenthal

Embora atuassem no batalhão Tornado algumas das bestas mais selvagens que cometeram crimes hediondos, 58 outros batalhões do mesmo tipo permanecem operacionais em toda a Ucrânia.

Ruslan Onishenko, former commander of the now dismantled Tornado battalion trains for combat
Ruslan Onishenko, ex-comandante do agora desmantelado batalhão Tornado, treina para o combate

Líderes do notório batalhão Tornado que haviam sido condenados por estupro de menores e tortura sádica foram libertados por ordens de Zelensky para participarem dos combates contra a Rússia, conforme é relatado no artigo de Esha Krishnaswamy, no The Grayzone.

Segundo publicado em 11 de julho na mídia ucraniana, Ruslan Onishenko, comandante do agora disperso batalhão Tornado, foi libertado como parte do esquema do presidente Zelensky para aproveitar prisioneiros com experiência em combate. Onishenko é um psicopata sádico que foi condenado por estar envolvido em assassinatos, abusar sexualmente de crianças e torturar brutalmente prisioneiros.

Outros ex-membros condenados do Tornado também foram libertados. De acordo com o decreto de Zelensky de 27 de fevereiro, os prisioneiros com experiência em combate poderiam “compensar sua culpa” lutando nos “pontos mais quentes” do conflito. Desta forma, brutais criminosos neonazistas receberam imunidade oficial.

Além de tortura, assassinato, estupro – inclusive de crianças – os crimes de Onishenko incluíram sequestro, amputação e muito mais. Mesmo assim, ele foi condenado a apenas 11 anos de prisão em abril de 2017. Agora, após cumprir apenas cinco anos de sua sentença, ele foi libertado por um presidente que é elogiado como estadista e democrata pela mídia do Ocidente.

O surgimento do batalhão Tornado

Após o golpe de fevereiro de 2014, que ficou conhecido como a Revolução Euromaidan, o Batalhão Shakhtyorsk, onde Onishenko estava lotado, participou em agosto de uma operação fracassada para retomar uma área controlada pelos rebeldes do Donetsk, na cidade oriental de Ilovaisk. A derrota foi um fator importante para forçar o governo central da Ucrânia a negociar com as repúblicas separatistas do Donbass, sob as diretrizes dos Acordos de Minsk.

Esha relata que um mês depois, em setembro, o então presidente Poroshenko e outros membros do gabinete decidiram dissolver o batalhão Shakhtyorsk, acusando seus membros de terem cometido saques.  O batalhão foi dividido em dois grupos: um que se autodenominava “Santa Maria, e um segundo, liderado por Onishenko, chamado “Tornado”. Este era composto, em grande parte, de residentes de Lugansk e Donetsk simpatizantes do golpe de Maidan, bem como por alguns estrangeiros.

O Grupo de Direitos Humanos de Kharkiv escreveu um relatório em nome do Departamento de Estado dos EUA, detalhando o terror imposto aos moradores de Lugansk pelas “patrulhas diárias” do Tornado:

“Pessoas usando camuflagem e carregando metralhadoras arrombavam portas em casas privadas, realizavam buscas sem autorização judicial, humilhavam e espancavam proprietários, ameaçando-os de morte, e “expropriaram” seus bens. Nas ruas e postos de controle, membros do batalhão detinham pessoas, cobrindo suas cabeças com sacos….Muitos homens foram tirados à força de suas casas e levados sob escolta para o prédio do hospital ferroviário em Novaya Kondrashovka. A maioria dos detidos foi libertada, mas houve vários casos de pessoas desaparecendo depois de serem ilegalmente detidas por combatentes do batalhão”.

Além desses atos de crueldade, membros do batalhão Tornado se vangloriavam da extrema violência sexual, incluindo o estupro de crianças pequenas. Foi a propensão da unidade para a perversão que provavelmente levou a uma ordem do Ministério do Interior para desmantelá-la, em junho de 2015.

Ainda no mês de junho, o procurador militar-chefe Anatoliy Matios relatou que os combatentes do Tornado se recusavam a desarmar, e fizeram barricadas em uma escola de Severodonetsk.

As autoridades ucranianas finalmente conseguiram prender Onishenko no aeroporto de Donetsk. Em resposta, seus companheiros do batalhão tomaram posições defensivas, em preparação para a batalha com as forças de Kiev. Com o envio pelo governo de mais unidades militares, o batalhão foi finalmente subjugado e seus membros presos.

O julgamento do batalhão revelou um circo de horrores

Após as prisões, os celulares dos comandantes do Tornado foram apreendidos. O procurador-chefe ucraniano encontrou neles evidências de crimes hediondos cometidos por vários membros do batalhão. O vídeo a seguir (com legendas em inglês) é extremamente perturbador, contendo relatos chocantes das vítimas das torturas e estupros a que elas foram submetidas por seus algozes.

Embora atuassem no batalhão Tornado algumas das bestas mais selvagens que cometeram crimes hediondos, 58 outros batalhões do mesmo tipo permanecem operacionais em toda a Ucrânia.

Ao mesmo tempo em que liberta as bestas, Zelensky bane praticamente toda a oposição política, publica uma lista negra de jornalistas e acadêmicos estrangeiros acusados de promover “propaganda russa”, e remove a proteção das leis trabalhistas para 70% dos ucranianos, relata Esha Krishnaswamy em seu artigo.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.