Os curdos são o bode expiatório ideal para Turquia e Irã

Por Ruben Rosenthal

Tanto a Turquia como o Irã estão passando por períodos difíceis atualmente. Então, dá para entender por que seria do interesse de ambos os países desviar as atenções para um inimigo externo.

Mapa do Curdistão
O Grande Curdistão: regiões em cinco países historicamente habitadas pelo povo curdo \ Arte: BBC/CIA

O texto que se segue foi baseado em artigo de Marc Daou, publicado em 23 de novembro no site France24. Foi mantido o título original, ‘The Kurds are the ‘ideal scapegoat for both Turkey and Iran‘.

Em 20 de novembro a Turquia iniciou uma nova ofensiva contra grupos curdos na Síria, coincidindo com uma campanha aérea promovida pelo Irã contra o Curdistão iraquiano, engajando os curdos em combates nos dois lados da fronteira, em terras que constituem o chamado Grande Curdistão.

As ações da Turquia vêm na sequência do atentado em Istambul de 13 de novembro, que deixou cinco mortos e dezenas de feridos, cuja responsabilidade o governo turco atribuiu ao grupo combatente turco PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) e à brigada YPG (Unidades de Proteção do Povo), esta com base na Síria. O PKK negou ter participado do atentado.

Já o governo iraniano responsabiliza os curdos pela incessante onda de protestos que se seguiu à morte da jovem curda Mahsa Amini, em 13 de setembro, enquanto estava sob custódia da “polícia da moralidade” da República Islâmica.

Os curdos sob ataque

A Turquia lançou o que chamou de “Operação Garra-Espada”, bombardeando várias regiões da Síria controladas pelos curdos. Um dos principais alvos atingidos foi a cidade de Kobane, no norte da Síria, que as forças curdas tomaram dos jihadistas do grupo Estado Islâmico em 2015. O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, também ameaçou lançar em breve uma ofensiva terrestre no país.

Enquanto isso, o Irã está bombardeou o Curdistão iraquiano – acusando os movimentos curdos de fomentar a onda de protestos em todo o país que abalaram o regime desde que a jovem curda, Mahsa Amini, morreu sob custódia da “polícia da moralidade” da República Islâmica, em 13 de setembro.

A seguir é transcrita a entrevista concedida pelo sociólogo franco-iraquiano, Adel Bakawan, ao veículo de mídia estatal, France24. Bakawan é diretor do CFRI, o Centro Francês de Pesquisa sobre o Iraque, e pesquisador do IFRI, o Instituto Francês de Relações Internacionais.

France24: Os curdos estão sendo atacados tanto pela Turquia, na Síria, como pelo Irã, no norte do Iraque. Os dois países coordenaram suas ofensivas?

Bakawan: “Tanto a Turquia como o Irã estão passando por períodos difíceis atualmente. Então, dá para entender por que seria do interesse de ambos os países desviar as atenções para o inimigo externo. No entanto, não há evidências concretas de que Ancara e Teerã estejam trabalhando de comum acordo, embora isso não possa ser descartado.

A Turquia está atormentada por uma grave crise econômica, e Erdogan não está em uma posição muito confortável, à medida que as eleições presidenciais de junho de 2023 se aproximam. Então ele está em uma posição muito difícil em casa, e no exterior há constantes tensões diplomáticas com o Ocidente.  No que diz respeito ao Irã, o movimento de protesto está abalando a República Islâmica, e não mostra sinais de desaparecer.

Tendo em mente que ambas as nações vêem suas populações curdas como ameaças à integridade territorial, os curdos se tornam o bode expiatório ideal para a Turquia e o Irã, em meio a suas respectivas crises.”

France24: Por que Erdogan está mirando nos curdos na Síria?

Bakawan: “Quanto mais nos aproximarmos das eleições presidenciais do próximo ano, mais Erdogan precisará unir seus apoiadores, apontando um inimigo que ameace a segurança, a estabilidade e a coesão nacional da Turquia. Isso permitirá que ele se apresente ao eleitorado como o salvador da Turquia, desviando a atenção do fraco desempenho da economia em seu governo. Por isso, ele designou um inimigo nos curdos sírios, cujo território é controlado pela afiliada local do PKK, classificado como organização terrorista pela União Européia pelos Estados Unidos, bem como pela Turquia.

Erdogan também está ansioso para fazer uso da crescente insatisfação (da população turca) pela presença de 3 milhões de refugiados sírios na Turquia, e que vem expressando este descontentamento de forma cada vez mais veemente. O presidente turco está tentando tirar proveito eleitoral desta questão. Em particular, Erdogan quer cumprir sua promessa – feita bem antes do ataque de Istambul, que ele está usando para justificar sua atual ofensiva na Síria – de criar uma zona tampão entre a Turquia e os vários territórios no norte da Síria controlados por grupos curdos.

Ao lançar uma ofensiva terrestre na cidade simbólica de Kobane, Erdogan será capaz de criar uma faixa ininterrupta de terra fora das zonas já ocupadas pelo exército turco e aliados. Ele quer enviar refugiados sírios para a parte do norte da Síria atualmente ocupada por curdos.”

France24: O que o Irã está tentando alcançar, atacando alvos curdos no Iraque?

Bakawan: “Apesar da feroz repressão, o governo iraniano não foi capaz de subjugar o movimento de protesto que surgiu em 16 de setembro. A República Islâmica tentou apresentá-lo como tendo origem étnica – uma agitação pela independência em partes do país habitadas pela minoria curda. O regime até tentou alegar que os protestos fazem parte de uma revolta sunita defendida pela Arábia Saudita, países ocidentais e pelo Governo Regional do Curdistão no Iraque (KRG), para desestabilizar o Irã xiita.

As tentativas de apresentar o movimento (curdo) como uma força étnica divisiva falharam porque os protestos ocorrem em todo o país. Não é como se eles estivessem acontecendo apenas em cidades curdas ou baluchi. E os manifestantes tomaram a jovem vítima curda, Mahsa Amini, como um símbolo nacional de sua luta, um ponto de referência unificador para a juventude do país.

Assim, porque a tentativa de semear uma divisão interna falhou, a República Islâmica está olhando para seus inimigos externos – Arábia Saudita, Israel e o Governo Regional do Curdistão. É claro que é mais fácil atacar o Curdistão iraquiano, onde o Partido Democrático Curdo do Irã (KDPI) e o revolucionário Partido Komala do Curdistão Iraniano mantiveram campos nas últimas três décadas. O Irã acusa esses dois grupos de incitar protestos em seu território.

Nos últimos dias, Teerã vem insistindo que o novo governo em Bagdá, dominado por facções pró-iranianas, pressione o KRG a expulsar o KDPI e o Partido Komala do Iraque.

E finalmente – olhando para isso de uma perspectiva cínica – os iranianos sabem perfeitamente que podem atacar o Curdistão iraquiano sem gerar muito protesto, seja de Bagdá ou do Ocidente.”

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Farsa: TPI isenta britânicos de Crimes de Guerra no Iraque

Por Ruben Rosenthal

A Procuradoria do Tribunal Penal Internacional desconsiderou que as  autoridades britânicas obstruíram as investigações, apesar de diversas denúncias neste sentido constarem do relatório. 

Tropas britânicas no Iraque são acusadas de crimes de guerra
Tropas britânicas atuam em operações militares no Iraque desde 2003 \ Foto: Picture Alliance/PA

O Tribunal Penal Internacional encerrou em dezembro de 2020, o inquérito preliminar que conduzia contra militares britânicos por acusações de crimes de guerra no Iraque. O parecer da procuradora-chefe do TPI, a gambiana Fatou Bensouda, apesar de reconhecer que crimes de guerra foram de fato cometidos, desconsiderou que autoridades do Reino Unido obstruíram as investigações e acobertaram provas que incriminavam os militares.

O Estatuto de Roma, que rege o TPI, estabelece a inadmissibilidade da abertura de indiciamentos pela Corte de Haia quando um país promove os inquéritos internos de forma apropriada. Esta foi a justificativa usada por Bensouda para sustar o processo e que mostrou o caminho para que no futuro, crimes de guerra cometidos pelas grandes potências não sejam punidos.

Só que os procedimentos investigativos conduzidos no Reino Unido consistiram de um simulacro de justiça, uma completa farsa. Coincidentemente, o parecer da procuradora foi proferido no momento em que o governo de Sua Majestade está empenhado na aprovação da Overseas Operations Bill, legislação que protegeria seus militares de serem processados por quaisquer crimes cometidos há mais de cinco anos, incluindo crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

A Procuradoria perdeu a oportunidade de desmentir a narrativa que se consolida cada vez mais, de que o TPI é uma corte de justiça que condena apenas os adversários das potências ocidentais, como líderes e militares africanos. O mesmo ocorreu também com Slobodan Milosevic, ex-presidente da Sérvia, que só foi absolvido anos após sua morte no cárcere.

As acusações de crimes de guerra

As tropas britânicas fizeram parte da coalizão de países do Ocidente que em março de 2003 invadiram e ocuparam o Iraque, na sequência das acusações de que o regime de Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa. Entretanto, a existência de tais armas jamais foi comprovada, indicando que a acusação se tratara apenas de um pretexto para a deposição de Saddam e a exploração do petróleo país.

A própria invasão do Iraque poderia ser enquadrada como um crime de guerra que, entretanto, o TPI anteriormente optara por ignorar, sob a alegação de que na ocasião do conflito as guerras de agressão ilegais – sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, não estavam incluídas no Estatuto de Roma como crimes de guerra.

O ex-embaixador britânico e ativista de direitos humanos Craig Murray avalia, no entanto, que “guerras de agressão ilegais” já estavam então bem estabelecidas na lei internacional, tanto que formaram a base do julgamento de Nüremberg em 1945/46.  Assim, não seria necessária a menção específica no Estatuto, para a Corte de Haia abrir procedimentos jurídicos contra os invasores do Iraque. Para Murray, o ex-primeiro-ministro britânico deveria estar preso pela invasão do Iraque. 

Manifestantes com faixa pedem o julgamento de Tony Blair por crimes de guerra no Iraque e Afeganistão
Manifestantes pedem o julgamento de Tony Blair por crimes de guerra, residência de Blair, Londres, 2017 \ Foto: picture-alliance/PA Wire/J.Brady

O Centro Europeu para Direitos Humanos e Constitucionais (ECCHR, na sigla em inglês) submeteu a partir de 2014, vários dossiês com evidências de abusos sistemáticos praticados contra prisioneiros no Iraque pelas forças de ocupação britânicas. Finalmente, em dezembro 2017, a Procuradoria do TPI confirmou em parecer que havia uma base razoável para se acreditar que crimes de guerra haviam sido cometidos no Iraque, incluindo assassinatos, tortura, tratamento cruel e desumano, atentados à dignidade pessoal, estupros e outras formas de violência sexual. O inquérito teria então prosseguimento.

Falta de provas ou acobertamento?

Em julho de 2019 o ECCHR fez nova submissão de documentação, focando nas falhas do Reino Unido em levar adiante processos judiciais internos dos casos de tortura e de outros abusos cometidos por suas tropas. Em novembro de 2019, conforme relatado pela BBC-Brasil, uma investigação conduzida pelo programa Panorama, da BBC, e pelo jornal britânico Sunday Times revelou fortes evidências do envolvimento de tropas britânicas em crimes de guerra no Iraque e no Afeganistão.

As evidências apresentadas vieram do Time de Alegações Históricas do Iraque (IHAT, na sigla em inglês), grupo criado pelo próprio governo britânico para investigar as alegações de torturas e abusos cometidos por suas tropas. O já extinto IHAT era composto por investigadores e ex-investigadores da polícia, polícia militar e da marinha, e se deparou com tentativas de acobertamento de provas pelas autoridades militares e governo.

Em junho de 2020, o diretor do Service Prosecuting Authority (SPA, na sigla em inglês), órgão correspondente ao Ministério Público, comunicou à emissora BBC que apenas um único caso ainda permanecia sob investigação interna, sendo que as demais acusações haviam sido descartadas por falta de provas e pelo “baixo nível das infrações supostamente cometidas pelos militares britânicos”. O SPA é um órgão ligado ao Ministério da Defesa (MoD, na sigla em inglês), e principal autoridade de acusação na justiça britânica para o pessoal em serviço militar. 

O parecer tendencioso do TPI

Em 9 de dezembro de 2020 foram divulgadas as conclusões do inquérito promovido pelo TPI. O relatório de 184 páginas confirmou que centenas de prisioneiros iraquianos, muitos dos quais civis, foram submetidos a abusos de diversas naturezas por soldados britânicos, no período entre 2003 e 2008. Entretanto, segundo Fatou Bensouda, “A Procuradoria não pode concluir que os procedimentos não foram conduzidos pelas autoridades britânicas de forma independente e imparcial….e que as investigações tenham sido inconsistentes com a intenção de trazer os responsáveis à justiça”. Esta foi a justificativa apresentada pelo TPI para não indiciar militares britânicos.

O ex-embaixador Craig Murray, com o seu amplo conhecimento das artimanhas do MoD, percebeu que relatório do TPI fora escrito com a ótica das forças de ocupação. Os iraquianos que resistiram aos invasores são referidos como “insurgentes” no documento da Procuradoria. Murray alerta que em nenhum momento foi apresentado qualquer testemunho feito por vítimas iraquianas. O TPI baseou seu relatório inteiramente em entrevistas realizadas com autoridades britânicas. Nenhuma das 776 notas de pé de página se referem a documentos de origem árabe.

Apesar destas limitações evidentes, o inquérito concluiu que as tropas britânicas foram responsáveis por crimes de guerra em larga escala, tipificados no parágrafo 71 do relatório. No entanto, Murray salienta que nenhum dos crimes para os quais existem boas evidências, em função do trabalho realizado pelo IHAT, resultou em indiciamentos de militares na justiça britânica. As recusas se deram principalmente pela ação do SPA, ao qual o IHAT devia se reportar.

Murray salienta que ocorreram duas exceções, que apenas comprovaram a regra geral de que as autoridades britânicas procuraram a todo custo evitar a condenação de seus militares envolvidos em abusos de direitos humanos. Em uma das circunstâncias, como forma de obter “troféus” de guerra, um soldado fotografou seus colegas cometendo torturas e abusos sexuais contra prisioneiros. Os filmes foram enviados para revelação em uma loja, o que levou o atendente a fazer uma denúncia junto à polícia civil. O outro caso se tratou de uma confissão espontânea feita por um militar que estava com a consciência pesada (parágrafo 250 do relatório), mas seus colegas foram absolvidos.

Estas foram as únicas condenações pela justiça do Reino Unido por crimes de guerra cometidos no Iraque. O ex-embaixador Craig Murray avalia que, ao usar estas exceções como evidências de que o Reino Unido conduzira as investigações de forma apropriada, o TPI agiu de forma tendenciosa. A Procuradoria do Tribunal Penal Internacional desconsiderou que as  autoridades britânicas obstruíram as investigações, apesar de diversas denúncias neste sentido constarem do relatório. 

Obstrução das investigações

No relatório final da Procuradoria consta (parágrafos 380 a 385) que, para os investigadores do IHAT, as investigações não estavam passando para o estágio de formalização de acusações devido a obstruções, que só poderiam resultar de ações das chefias do próprio IHAT e do SPA. O SPA, sendo vinculado ao Ministério da Defesa, não poderia ser realmente imparcial em relação às forças armadas, segundo avaliação da equipe de campo do IHAT.

Diversos relatos vindos do IHAT mencionaram as dificuldades de obter evidências de posse do MoD e da Polícia Militar Real, que obstruíam o acesso aos arquivos. Caixas contendo evidências chegaram a ter a rotulagem trocada para dificultar a localização do material procurado.

Algumas passagens no relatório incluem citações, até mesmo de juízes que presidiram alguns dos casos que chegaram a ser levados à corte marcial, da ausência de depoimentos de testemunhas militares que presenciaram torturas e mortes (parágrafos 217, 219, 228, 331). Prevaleceu o comportamento corporativo de cerrar fileiras em defesa dos companheiros de farda, conforme mencionado nestas citações.

Para o ex-embaixador Craig Murray, não se pode mais argumentar que o TPI seja uma corte de justiça imparcial: “a autoridade moral (do TPI) foi totalmente perdida”, acrescentou.

Em 12 de fevereiro de 2021 foi eleito um novo procurador-chefe do TPI, o advogado britânico Karim Khan. Na nova gestão serão conduzidos, dentre outros, os inquéritos sobre as acusações de cometimento de crimes de guerra no Afeganistão por tropas norte-americanas, militares afegãos e pelo Talibã; de crimes cometidos por Israel e Hamas nos territórios palestinos ocupados; e a investigação das denúncias levantadas contra o presidente Jair Bolsonaro, de ter cometido genocídio e crimes contra a humanidade em território brasileiro.

Resta ver se Karim Khan dará motivos para o ex-embaixador Craig Murray rever sua avaliação de que os pareceres do TPI são favoráveis apenas aos interesses das potências ocidentais. 

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

O assassinato de Soleimani: a Doutrina Bethlehem e o risco de ataque iminente, por Ruben Rosenthal

soleimani
Tributo a  Soleimani   /   Foto Vahid Salemi / AP

O noticiário na mídia que cobriu o assassinato do general iraniano Soleimani por ataque de drone, ordenado diretamente pelo presidente Trump, repetiu ad nauseam a justificativa que o general estava planejando um “ataque iminente” contra cidadãos norte-americanos.

Se fosse verdadeira esta afirmativa, teria Trump o direito de adotar as medidas preventivas necessárias, incluindo a eliminação física de quem estivesse a ponto de executar tal ataque? Como surgiu este conceito de “ataque iminente”? O conceito foi manipulado no caso das acusações feitas a Soleimani? 

O ex-embaixador britânico Craig Murray, em artigo publicado na sequência do assassinato do general iraniano, relata como este conceito foi deturpado pela Doutrina Bethlehem, de forma a ser usado como justificativa para este e outros ataques anteriores. O atual artigo do blogue Chacoalhando é baseado na matéria publicada por Murray.

A Doutrina foi desenvolvida por Daniel Bethlehem, quando este atuava como consultor legal de Netanyahu. A construção do muro que atualmente isola o território Palestino, foi proposta por Bethlehem. A Doutrina estabelece que Estados têm direito a realizar “ataques preventivos de auto defesa contra agressões iminentes”. Murray relata que isto é aceito por muitos juízes, e pela maioria dos especialistas em direito internacional, inclusive por ele próprio, respaldado na sua experiência anterior como embaixador.

“O que certamente nenhum especialista em direito internacional concordaria é que o sentido de ‘iminente’ possa ser deturpado, como a Doutrina Bethlehem fez, ao aceitar que o termo possa ser aplicado, mesmo quando não se conheçam detalhes sobre o suposto ataque, e quando ele ocorreria”, afirma Murray.

E, no entanto, a  Doutrina tem sido usada como justificativa para ataques por drones e assassinatos realizados por Israel, Estados Unidos e Reino Unido, já por uma década. O documento, em sua forma acadêmica, pode ser acessado aqui. Da forma que é usada por estes governos, é considerado como “informação classificada”.

Assim, quando o secretário de Estado Mike Pompeo disse que o general Soleimani estava na iminência de realizar ataques contra alvos norte-americanos, ele estava usando o termo “iminente” em sua forma deturpada, que a Doutrina Bethlehem introduziu, ou seja, de que algum ataque em local ignorado poderia estar nos planos de Soleimani, em data ignorada.

Bethlehem foi chamado como conselheiro legal do Foreign & Commonwealth Office (FCO) do Reino Unido, no governo Blair, para produzir um parecer favorável à legalidade da guerra no Iraque, contrariamente ao posicionamento de todos os outros consultores legais. O parecer fornecido por ele foi de que o ataque ao Iraque era legal, porque Saddam Hussein representava uma “ameaça iminente” ao Reino Unido.

Vários artigos acadêmicos desqualificam a Doutrina Bethlehem, inclusive pelo próprio predecessor de Bethlehem na Chefia da Consultoria Legal do FCO, Sir Michael Wood e  a então  vice-chefe, Elizabeth Wilmshurst. No entanto, quando o Procurador Geral do Reino Unido defendeu o uso de drones para assassinar pessoas, inclusive de origem britânica, toda a mídia do país se manteve silenciosa, incapaz de fazer qualquer questionamento crítico. Trata-se da imposição da pena de morte, sem julgamento prévio, alerta Murray.

Bethlehem argumenta que “iminente” não precisa necessariamente significar “em breve”. Se o suposto agressor já se envolveu anteriormente em ações belicosas, então ele teria um padrão de comportamento que poderia fazer supor que se envolveria em ataques militares (contra alvos norte-americanos ou de seus aliados).

Soleimani foi acusado de ter sido responsável pela morte de centenas ou milhares de norte-americanos. No entanto, a quase totalidade das mortes de cidadãos norte-americanos em conflitos ou ataques no Oriente Médio foi perpetrada por muçulmanos sunitas, financiados pela Arábia Saudita. Cerca de 10% das mortes foram causados por xiitas com vinculação ao Irã, relata Murray.

Quanto às mortes em combate de invasores norte-americanos no Iraque, 83% foi pelas mãos da resistência sunita, e 17% pelos xiitas, não necessariamente sob a ordem de Soleimani. Tratava-se de resistência legítima à forças invasoras.

O vice presidente Mike Pence tentou associar Soleimani ao “11 de setembro”. Bush já tentara anteriormente encontrar indícios de envolvimento do Irã naqueles ataques terroristas, nos quais, ao final, ficou evidenciada a participação de sunitas sauditas. Soleimani foi atuante na cooperação de inteligência e logística com os Estados Unidos, após o 11 de setembro.

Ele estava atualmente envolvido no combate ao Estado Islâmico no Iraque, país aliado dos Estados Unidos. Sua morte nada mais foi do que um ato de terrorismo de estado, cometido a mando de Trump, finaliza Murray.  

Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

 

 

 

 

 

Reino Unido: a falsa isenção da BBC, por Ruben Rosenthal

A isenção jornalística da BBC não passa de um mito. Desde a sua fundação, a emissora atua na defesa de interesses das grandes corporações e de guerras que beneficiam a elite financeira do Reino Unido.

BBC piss on us
Campanha pelo boicote ao pagamento da licença de TV: Os ricos e poderosos mijam na gente e a BBC diz que é chuva (Foto adaptada de opwak3up)

A BBC – British Broadcasting Corporation ocupa posição privilegiada no rol das emissoras britânicas e internacionais. Em tempos de crise, uma ampla maioria do público recorre ao noticiário BBC News. A emissora tem forjado um sentido de identidade e de coesão nacional desde sua criação em 1922, então através de transmissões diárias de rádio no estúdio de Marconi, em Londres. A emissora tem conseguido passar uma imagem de imparcialidade e objetividade, o que certamente contribuiu para o seu sucesso. Esta visão foi por vezes contestada, tanto por governos como por setores da imprensa, mais ostensivamente pelos de direita.

O terceiro artigo da série sobre o Reino Unido vai mostrar que as críticas da direita que a emissora recebe, fazem parte de uma estratégia maior, direcionada à mídia corporativa, e que Noam Chomsky e Edward Herman já abordaram com maestria. Os artigos anteriores da série sobre o Reino Unido trataram da corrupção no sistema doações de campanha, e da tentativa de golpe institucional aplicado por Boris Johnson ao suspender o parlamento.

Um destes críticos da BBC é o ex-apresentador de noticiários da emissora, Peter Sissons. Em declaração anterior ao jornal Daily Mail, Sissons afirmou que estaria no próprio DNA da emissora um firme pensamento de esquerda. Em outro momento, a BBC chegou a ser acusada de ser radicalmente contra as guerras em que o Reino Unido estava envolvido, como no caso da primeira guerra no Iraque, a ponto de ser chamada, em 1991, de Baghdad Broadcasting Corporation, por seus detratores de direita. Posteriormente, o apelido seria revivido no pós 11 de setembro, por setores conservadores dos Estados Unidos. 

Na verdade estas acusações passaram longe da verdade. O caso da guerra contra o Iraque é um ótimo exemplo de como se dá a manipulação de informação no Reino Unido, e do papel representado pela BBC.

Estudos consistentes feitos pela Cardiff School of Journalism, Media and Cultural Studies, concluíram que, das quatro principais emissoras britânicas, a emissora estatal foi a que mais apoiou o governo britânico à época do conflito, fazendo uso constante de informações vindas de fontes oficiais e militares, sem questionar a veracidade das mesmas.

Outro estudo, realizado pelo jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung, comparando a cobertura da guerra realizada pelas emissoras de cinco países do ocidente, revelou que a BBC foi a que veiculou menos tempo (2%) de noticiário, a pontos de vista contrários a guerra. Na comparação com a emissora privada norte-americana ABC, esta dedicou 7% do tempo à opiniões dissidentes.

Anti-war protestors march past Big Ben during a demonstration against war on Iraq, February 15, 2003..
Protesto contra a guerra no Iraque, em 2003   /  Foto Reuters

Em 1998, Estados Unidos e Reino Unido fabricaram uma crise explosiva, ao retirarem do Iraque os inspetores da ONU que checavam o acordo de desarmamento. No entanto, a BBC noticiou que “os inspetores foram expulsos” por Saddam Hussein. Com isto, ajudou a consolidar o apoio da opinião pública a favor da operação raposa do deserto, com o bombardeio de locais onde supostamente haveria depósitos de armas. A ONU reconheceu posteriormente, que seus inspetores estavam repassando informações para os serviços de inteligência norte-americanos.

São inúmeros os exemplos de reportagens tendenciosas por parte da BBC, seja pela veiculação de notícias falsas, ou pela omissão premeditada da verdade.

A cobertura do conflito Israel/Palestina é outro exemplo de parcialidade da emissora. As atrocidades praticadas pelo exército de Israel, e o sofrimento dos palestinos que vivem sob ocupação militar, pouco aparecem nos noticiários. Já os ataques suicidas praticados por palestinos sempre ganharam proeminência.

No caso do envenenamento de Sergei Skripal, ex-agente russo, e de sua filha Julia, com o uso do agente químico Novichok, o governo britânico acusou a Rússia de tentativa de assassinato, chegando a expulsar diplomatas. No entanto, foram levantadas suspeitas sobre o comportamento da BBC. O correspondente da BBC Newsnight, o ex-oficial do Regimento Real  de Tanques,  Mark Urban, não revelou que havia mantido reuniões secretas com Sergei Skripal, poucos meses antes do incidente com o Novichok. Questionada, a BBC se recusou a dar explicações públicas.

Outra séria acusação contra a BBC é de ter manipulado o referendo sobre a independência da Escócia, em 2014. O documentário de 69 minutos London Calling, custeado por crowdfunding, mostra a parcialidade da emissora em prol do voto Não, contra a independência.

Uma das denúncias levantadas contra a emissora, é que as reportagens sobre os conflitos de rua em Glasgow procuraram omitir que as agressões partiram principalmente dos partidários do Não.  Também a dimensão dos ralis pela independência teria sido subdimensionada pela emissora, causando protestos dos separatistas.

Em repúdio, os simpatizantes do Sim fizeram protesto na frente da emissora, agitando bandeiras da Escócia, e cartazes onde se lia “BBC, British ‘Brainwashing’ Corporation”, uma associação da emissora com ‘lavagem cerebral’. Foi iniciada uma campanha de não pagamento, pelos usuários escoceses, da taxa de licença de TV, que subsidia a BBC, como mostrado na foto que abre este artigo.   

manifestantes nacionalistas em frente a BBC em 2014
Manifestantes  pela independência da Escócia protestam contra a BBC, Glasgow, 2014  /  Foto Getty Images

Craig Murray, ex-embaixador e ativista pela independência, lembra que os interesses envolvidos extrapolam a questão da manutenção da unidade do país. A separação comprometeria irremediavelmente a continuidade do programa nuclear Trident, espinha dorsal do projeto de defesa do Reino Unido. A base de submarinos nucleares está estrategicamente situada na costa ocidental da Escócia. Também ficaria comprometida a política externa agressiva contra países do Oriente Médio. Resta lembrar que as reservas de petróleo do Mar do Norte estão situadas em águas territoriais da Escócia.

Produzindo o Consenso:          A estratégia da mídia de massas em conseguir o apoio da  população para políticas de governo, ou guerras a que a  maioria certamente se oporia, se corretamente informada, foi dissecada por Edward S. Herman e Noam Chomsky no livro Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass MediaTrata-se de um estudo clássico sobre a manipulação da informação pela mídia corporativa, publicado há 30 anos, onde é apresentado o que os autores chamaram de Modelo de Propaganda.                                                                                                  

foto da capa de manufacturing consent
Clássico de Chomsky e Herman, publicado em 1988. Foto extraída de Comunidade, Cultura e Arte

O “modelo de propaganda” descreve cinco filtros que interferem na notícia real, para transformá-la em algo aceitável para o público: 1. a riqueza do proprietário do conglomerado de mídia e a orientação para o lucro, 2. os anunciantes como fonte de recursos, 3. a dependência da mídia nas informações fornecidas pelo governo, empresariado e especialistas aceitos pelos agentes do poder; (4) flaks (críticas fortes), com ataques à mídia de esquerda ou liberal, como forma de discipliná-la, (5) o anticomunismo.

É imperdível a animação no vídeo da Al Jazeera (com legendas em português), em que os cinco filtros são apresentados de forma divertida e instrutiva. Após o “11 de setembro” os autores atualizaram o quinto filtro, para tratar do antiterrorismo e da Guerra ao Terror.

Os filtros propostos por Chomsky e Herman para o caso de empresas de mídia privadas, foram adaptados pelo jornalista Alex Doherty, para melhor se aplicarem à emissoras públicas, como a BBC, que não foram originalmente formadas para serem lucrativas.

Primeiro filtro: o conselho de administração. A BBC é regulada por um conselho de administração indicado pela rainha, atendendo às recomendações do governo. Em geral, a maior parte do conselho pertence a uma elite da sociedade que tem laços próximos com políticos, empresariado e financistas. O conselho indica o diretor geral e o comitê executivo. Desta forma, fica difícil se esperar a BBC possa questionar os interesses que sua direção representa.

Segundo filtro: a taxa de licença e as restrições orçamentárias. A BBC é mantida através de uma taxa paga pela audiência. Atualmente, o custo anual que o usuário deve pagar é de 154,50 libras esterlinas (cerca de 195 dólares), o que possibilita uma arrecadação de alguns bilhões de libras para subsidiar a emissora.

O governo pode reduzir ou congelar o valor da licença, ou mesmo extingui-la, desta forma infligindo reduções dramáticas no orçamento da emissora. Esta ameaça já foi feita por diversos governos, o que leva a uma cultura de auto censura, evitando o questionamento ao governo e aos interesses que ele representa.

Terceiro filtro: as fontes de informação. Conforme descrito em Manufacturing Consent, a mídia em geral está predisposta a recorrer a fontes oficiais, sem questioná-las, em grande parte devido às limitações financeiras a que está sujeita, ao invés de praticar jornalismo investigativo e buscar fontes alternativas.

Quarto filtro: flaks. Consiste de críticas que partem da própria imprensa, de pessoas que detém poder, do governo ou de grupos de pressão, com a intenção de desacreditar organizações ou indivíduos na própria mídia que discordem do poder estabelecido. Podem ocorrer ataques a um veículo de centro-esquerda, como The Guardian, ou, nos Estados Unidos, ao liberal The New York Times.

Como resultado, é alterado o centro dos posicionamentos políticos, tirando a legitimidade de pontos de vista que sejam considerados mais radicais que os da mídia liberal. A lógica é a seguinte: se um veículo da mídia liberal for considerado como tendo um viés inaceitável de esquerda, qualquer pensamento ainda mais a esquerda será taxado de extremista. Desta forma, apenas radicais insanos questionariam os interesses dos poderosos.  O efeito final é de manipular a informação fornecida ao público.

No caso da BBC, a emissora foi sujeita a uma série de críticas vindas do governo e da própria imprensa, por uma alegada parcialidade quando da guerra no Iraque. A posição, supostamente dissidente adotada pela BBC, já teria extrapolado o limite do que seria aceitável no debate. Mas não passaram de inverdades, as afirmações de posicionamentos contrários à guerra no Iraque por parte da BBC, como sugerido pelos dois estudos mencionados neste artigo.

Quinto filtro: o discurso dominante da Guerra ao TerrorManufacturing Consent foi originalmente publicado em 1988, um ano antes da queda do “muro de Berlim”. Com os eventos do “11 de setembro”, o discurso da guerra contra o terror substituiu, em grande parte, o da luta contra o comunismo. Bush, nos Estados Unidos, e Blair, no Reino Unido, aproveitaram para apresentar o terrorismo como a grande ameaça à civilização ocidental, e com isto, utilizá-lo como mecanismo de controle através da mídia.

Para Doherty, seria exagero assumir que a BBC sempre opera como uma arma de propaganda para os setores da elite, dada a capacidade da população pressionar por reportagens menos tendenciosas. Também a objetividade profissional de jornalistas pode oferecer uma defesa contra a deturpação das notícias, resultante dos filtros.

O autor do atual artigo considera que um “novo filtro” tem se consolidado na mídia do Ocidente, o do antissemitismo. Críticas aos excessos cometidos por Israel contra os palestinos, são imediatamente taxados de antissemitismo por políticos dos principais partidos e pela mídia liberal. O caso do líder do Partido Trabalhista do Reino Unido, Jeremy Corbyn, é um dos melhores exemplos de manipulação da informação, como forma de levantar acusações de práticas antissemitas.

O blogue Chacoalhando  tratou, em seu primeiro artigo, das acusações de antissemitismo contra Corbyn, um político com convicções autênticas de esquerda, diferentemente de Tony Blair e seu Novo Trabalhismo dos anos 90.  Desde então, o assunto foi mantido na mídia, como forma de alienar os apoiadores do Partido Trabalhista, conforme se aproximam as eleições gerais no país.

Recentemente, o tradicional programa Panorama, da BBC, veiculou o documentário intitulado O Partido Trabalhista é Antissemita?, levantando críticas contra auxiliares diretos de Corbyn, e dando voz a acusações de que ocorreu um grande aumento nas reclamações de antissemitismo no partido, desde que Corbyn assumiu a liderança em 2015.

O “filtro do antissemitismo” não ocorre apenas no Reino Unido, mas em diversos outros países do Ocidente, incluindo os Estados Unidos, principalmente quando surgem no Partido Democrata diversas vozes contrárias às políticas (expan)sionistas de Israel.

Por este filtro, antissionismo e antissemitismo passam a ser praticamente sinônimos. Uma notável exceção é o grupo judeu ortodoxo, Neturei Karta, que não pode ser chamado de antissemita. O grupo considera que o verdadeiro Estado Judaico só poderá ser estabelecido com a volta do Messias.

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Grupo judeu ortodoxo, Neturei Karta  aguarda pela volta do Messias   /   Foto UPI

No Brasil, um estudo sobre a aplicação dos filtros propostos no “modelo de propaganda” precisa ser feito em relação à TV Cultura, emissora pública do Estado de São Paulo. A emissora, assim como a BBC, apresenta um conteúdo artístico de qualidade indiscutível, mas seus noticiários e programas de entrevistas passam um indisfarçável e inadmissível viés partidário e ideológico.

 

Dr. Kouchner e o Sr. Hyde: o médico e o monstro? Parte 2 – As intervenções militares humanitárias

Por Ruben Rosenthal

Kouchner e Hillary
Dr. Kouchner e seu alter ego feminino, a sra. Clinton     /   Foto David Karp / AP

Foi com os bombardeios da ex-Iugoslávia pela OTAN em 1999, em violação ao direito internacional, que Bernard Kouchner pôde ver coroada sua ideologia, em que a soberania dos Estados não representasse obstáculo ao “direito de intervenção humanitária”. Uma nova forma de colonialismo passou a se impor?

A primeira parte do artigo focou na atuação de Kouchner ( “K) como médico humanitarista, no período até o final da década de 80. Inicialmente com Médicos Sem Fronteiras (MSF), e depois com Médicos do Mundo (MDM), ele e seus colegas prestaram atendimento às populações necessitadas, em regiões de conflito bélico ou de ocorrência de catástrofes naturais.

K e os outros médicos franceses fundadores de MSF eram altamente críticos da completa neutralidade das agências tradicionais de ajuda, como a Cruz Vermelha Internacional, por estas respeitarem as convenções internacionais, o que por vezes dificultava o atendimento em regiões de conflito. K defendia que os agentes de saúde deveriam quebrar regras e cruzar fronteiras de países, mesmo que ilegalmente, para prestar socorro às vítimas. Conforme sua declaração, “agentes de saúde que cruzam fronteiras não se comportam como colonialistas, porque chegam a pedido, ….para proteger os mais fracos e necessitados”. K soube fazer uso da mídia para chamar atenção para as causas que defendia, ao ponto de se incompatibilizar com MSF, e decidir deixar a organização que ajudara a fundar, para formar MDM, em 1980.

K aproveitou seu cargo, como Ministro da Saúde e Ação Humanitária no governo Mitterrand, para promover sua doutrina de “intervenção militar humanitária”, conseguindo fazer com que ela fosse introduzida em diversas resoluções da ONU, e colocada em prática por tropas do Ocidente no Curdistão iraquiano, na Somália e em Ruanda, no começo dos anos 90. No final da década, a doutrina serviu de pretexto para o bombardeio da Iugoslávia, e, já nos anos 2000, nas intervenções no Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria. No entanto, falsos argumentos já foram várias vezes utilizados, para mobilizar a mídia e a opinião pública a favor das intervenções externas.

As bolas da vez agora, são a Venezuela e o Irã. E quem sabe, o Brasil, em um futuro não muito distante, caso os povos indígenas continuem a ser submetidos à políticas governamentais que efetivamente tem ameaçado suas vidas e seus meios de subsistência, e que podem muito bem ser consideradas como ações de extermínio ou de “limpeza étnica”. Ou mesmo, que questões de preservação ambiental, como na Amazônia, possam oferecer o pretexto para a intervenção.  

O direito à intervenção humanitária foi introduzido oficialmente, como novo “conceito estratégico da OTAN”, no aniversário de 50 anos da organização, em abril de 1999, em meio à guerra nos Bálcãs.  O bombardeio da Iugoslávia é até hoje saudado como um triunfo para “a justiça internacional” sobre o direito tradicional de soberania dos Estados. Entretanto, os ataques se deram em flagrante violação da lei internacional, pois os mesmos foram realizados sem autorização prévia do Conselho de Segurança da ONU. As decisões da OTAN passaram a não se subordinar a qualquer órgão internacional.

Esta nova “ideologia” representou, praticamente, um retorno às condições que prevaleceram com a Paz de Vestfália, de 1648, quando houve o reconhecimento formal do princípio de soberania territorial, contra as ingerências do Papado, segundo David Chandler, em artigo no New Left Review. O sistema Vestfaliano, no entanto, nunca consistiu em impedimento para o uso da força contra os Estados mais fracos. Mesmo séculos depois, com o advento da Carta da ONU de 1945, o pleno direito de soberania não foi alcançado na prática, pois, apesar da igualdade de voto dos Estados membros na Assembléia Geral, as decisões do Conselho de Segurança são mandatórias.

A seguir, vamos acompanhar a carreira política de K, através da qual ele pôde melhor contribuir para que sua ideologia intervencionista ganhasse reconhecimento, e se tornasse consenso no Ocidente.

Em 1988, K se tornou Secretário de Estado para Ação Humanitária, no governo socialista do presidente François Mitterrand. Em 1988, ele foi co-autor da resolução 43/131, aprovada na ONU, estabelecendo o direito de intervenção externa em um país, no caso de desastres naturais ou emergência. Em 1990, K conseguiu aprovar outra resolução, que estabelecia “corredores humanitários” de ajuda às vítimas, se sobrepondo à soberania dos Estados. 

Em 1991, K apoiou a primeira Guerra do Golfo, atacando os pacifistas na imprensa, apesar da impopularidade desta guerra na França. O fato dos bombardeios da coalizão ocidental no Iraque terem causado uma catástrofe humanitária, foi para ele irrelevante. Como, mesmo com a vitória da coalizão no golfo, o “novo Hitler” Sadam manteve-se no poder, K foi co-autor de uma resolução direcionada ao Conselho de Segurança da ONU, autorizando a continuidade das ações militares para ajudar os curdos. Foram também estabelecidas “zonas de restrição aérea” e regiões de “refúgio seguro”. Desta forma, os bombardeios anglo-americanos no Iraque prosseguiram durante os anos 90.

De 1992 a 1993, K atuou como Ministro da Saúde e Ação Humanitária, ainda sob a presidência de Miterrand. Em dezembro de 1992, quando a Somália atravessava um “genocídio pela fome”, K organizou uma campanha de coleta de arroz nas escolas da França, e, pouco depois, ele aparecia, de forma midiática, carregando sacos de arroz nas costas, em uma praia da Somália. Rony Brauman, então presidente do MSF, considerou a foto indecente. No mesmo dia do evento na praia, os marines norte-americanos desembarcavam para uma operação militar no país, gerando uma onda de saques e atos de vandalismo. Uma ampla descrição dos eventos ocorridos na Somália pode ser vista na publicação do MSF Somalia 1991-1993: Civil War, Famine Alert and a UN ‘Military-Humanitarian’  Intervention 1992-1993”.

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Kouchner e a campanha do arroz para a Somália  /   Foto Eric Feferberg / Getty Images

Alain Destexhe, secretário geral do MSF declarou: “para Kouchner e outros, a intervenção americana (na Somália) confirma o ‘direito de intervir’ com uma motivação humanitária. No MSF, concordamos todos, que não se tratava de uma intervenção humanitária, mas nossa posição não apareceu nas manchetes. Estávamos contra a maré”.

Em 1993, MDM, a organização fundada por K quando deixou MSF, realizou uma intensa campanha demonizando os sérvios e Slobodan Milosevic, então presidente da Iugoslávia, conforme já descrito detalhadamente em artigo anterior do blogue. As comparações de Milosevic a Hitler e os milhares de cartazes, comparando os campos dos prisioneiros bósnios muçulmanos (bosniaks) a campos nazistas de extermínio, serviram para predispor a opinião pública do Ocidente, inclusive vários setores da esquerda, para os futuros bombardeios pela OTAN, em 1995, contra alvos sérvios na Bósnia, e, em 1999, contra a Iugoslávia,  quando a situação no Kosovo se agravou.

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Campanha de Médicos do Mundo, 1993  /  Foto Georges Merillon/Gamma-Rapho

De 1994 a 1997, K atuou no parlamento europeu, onde, dentre outras atribuições, participou no sub-comitê de direitos humanos.

Em 1994, as posições de K quanto ao genocídio em Ruanda trouxeram a ele muitos desafetos na França. O veterano jornalista Pierre Péan, escreveu o livro “Le Monde Selon K” (O mundo segundo K), em que denuncia que as mortes em Ruanda não foram apenas cometidas por Hutus contra Tutsis, mas que o reverso também ocorreu de forma generalizada. Em particular, Péan cita o caso de uma vila, onde K afirmara que Tutsis haviam sido massacrados, e, na verdade, os Tutsis haviam sido os criminosos. K havia invertido vítima e criminoso.

Em outubro de 1995, a OTAN realizou ataques contra alvos sérvios na Bósnia, seguindo-se à já mencionada campanha de MDM na mídia. K sabia muito bem que as alegações de campos de “purificação étnica” eram falsas, porque ele mesmo visitara os campos de prisioneiros geridos pelos sérvios da Bósnia, em agosto de 1992. Só em 2004, K reconheceu que os campos de prisioneiros não eram de extermínio, em seu livro “Les guerriers de la paix” (Os guerreiros da paz).

De 1997 a 1999, K atuou pela segunda vez como Ministro da Saúde em um governo do PS. Em maio de 1999, sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, tropas da OTAN bombardearam Belgrado por 77 dias. A OTAN defendeu a destruição da televisão estatal em Belgrado, por ser um “alvo legítimo e um centro de mentiras”. Segundo a BBC News, a Corte Européia de Direitos Humanos chegou a deliberar se a OTAN deveria ir a julgamento pela ação que levou à morte de 16 pessoas. 

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Televisão estatal iugoslava bombardeada pela OTAN em 1999    / Foto BBC News

Em 1999, MSF ganhou o Prêmio Nobel da Paz, como uma forma de se homenagear K, o fundador da organização, e mentor intelectual do “direito à intervenção”, mesmo que MSF não mais compartilhasse dos mesmos ideais de K. Em julho de 1999, como recompensa por seus esforços ideológicos, K foi indicado pelo Secretário Geral da ONU, Kofi Annan,  para Representante Especial da ONU no Kosovo, e Chefe da Administração Interina da ONU no Kosovo (UNMIK), permanecendo até 2001, por um total de 18 meses. Este período de K no Kosovo será o assunto da terceira e última parte desta série. Em outubro do mesmo ano, K reiterou o direito à intervenção militar humanitária, em entrevista ao Los Angeles Times

K foi novamente Ministro da Saúde no governo do PS, entre 2001 a 2002. Em 2003, ocorreu a invasão do Iraque. Já fora do governo, K deu apoio moral à invasão do Iraque, alegando que “as vozes do povo iraquiano tinham que ser ouvidas”. Conforme expresso em seu livro Les guerriers de la paix, K interpretou a situação de forma diferente do governo francês e dos intelectuais europeus, enfatizando que o Iraque atendia a dois critérios que justificavam o direito de intervenção: o povo iraquiano queria ser resgatado e libertado, e Saddam era um líder indigno do respeito da comunidade internacional”, e que (supostamente) teria matado 500.000 pessoas de seu próprio povo, de acordo com Saïd K. Aburish, em seu livro “Le vrai Saddam Hussein” (O verdadeiro Saddam Hussein).

Embora tenha expressado seu apoio à deposição de Saddam, K se opunha à estratégia da Administração Bush, conforme artigo no Le Monde, intitulado “Ni la guerre ni Sadam” (Nem a guerra nem Sadam). Ele culpou a Bush por ter ido à guerra sem antes ter forjado uma real aliança na ONU, como também por conduzir mal o pós-guerra.

Uma das consequências da identificação da causa humanitária com os interesses das potências ocidentais, foi trazer  risco aos agentes humanitários e da ONU, como evidenciado pelo bombardeio da Missão da ONU em Bagdá, em agosto de 2003, quando morreram 23 pessoas, inclusive o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, Representante Especial da ONU no Iraque. Em outubro do mesmo ano foi atacada a sede da Cruz Vermelha Internacional em Bagdá.

Em 2005, a Assembléia Geral da ONU endossou um novo conceito humanitário, a Responsabilidade de Proteger (R2P), consistindo de uma série de princípios, com base na ideia de que a soberania não é um privilégio, e sim, uma responsabilidade. Se um Estado não proteger seus cidadãos de atrocidades, a comunidade internacional tem a responsabilidade de agir, mesmo usando da força, se o Conselho de Segurança assim decidir. Respeitada a condição de ratificação prévia pelo Conselho da ONU, R2P não difere do “direito à intervenção humanitária”, defendido por K. 

Em 2005, K foi candidato ao Alto Comissariado da ONU para Refugiados, perdendo a indicação para Antonio Guterres, atual Secretário Geral da Organização. Em 2006, K foi candidato a diretor-geral da OMS, não se elegendo.

De 2007 a 2010, K atuou como Ministro das Relações Exteriores do Governo de direita de Nicolas Sarkozy, sendo, por este motivo, expulso do PS. Em sua atuação como ministro, em pronunciamento de setembro de 2007 sobre a questão nuclear no Irã, K declarou que “devemos nos preparar para o pior… a guerra com o Irã”, gerando uma reação enérgica do porta-voz iraniano. No intuito de reduzir as tensões, o próprio ministro francês, François Fillon se pronunciou, bem como Mohamed El Baradei, então diretor geral da Agência Internacional de Energia Atômica, segundo artigo no Deutsche Welle. Coube, então, ao escritor Philip Hammond, perguntar no título de seu artigo, se referindo a K: “é este o homem mais perigoso da Europa?”.

A resposta à indagação de Hammond ficou bastante evidente alguns anos depois. Em março de 2011, uma coalizão de países da OTAN iniciou uma intervenção militar na Líbia, para implementar a resolução 1973  do Conselho de Segurança, que fora aprovada por 10 votos a favor, nenhum contra, e 5 abstenções – da Alemanha, Brasil, China, Índia e Rússia. Mesmo autorizando o uso da força, a resolução sublinhava a necessidade de intensificarem-se esforços que levassem às reformas políticas necessárias, para uma solução pacífica e sustentável.

A intenção do voto fora a de obter “um imediato cessar fogo na Líbia”, mas a intervenção foi bem mais além, levando à morte de Kadhafi e à completa desestabilização do país, abrindo um vácuo de poder que possibilitou a entrada do ISIS. A Líbia, que tinha padrões de desenvolvimento relativamente avançados, regrediu dezenas de anos, com a destruição que se seguiu. Em artigo publicado no The Guardian, K defendeu a moralidade da intervenção: “poderíamos continuar a ver em nossas televisões as imagens das mortes das vítimas de Kadhafi?”

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Tropas do ISIS na Líbia    /   Foto El País

Entretanto, segundo artigo recente publicado no Global Research, mensagens por e.mail de Hillary Clinton, então Secretária de Estado de Obama, e que vieram à luz posteriormente, revelaram o real motivo da intervenção. O objetivo seria o de bloquear o plano de Kadhafi de usar o Fundo Soberano*, derivado dos recursos provenientes do petróleo, para criar órgãos financeiros autônomos pela União Africana, além de uma moeda africana, como alternativa ao dólar e ao franco francês. A sra. Clinton, alter ego feminino de K, convenceu Obama a autorizar operações clandestinas na Líbia, e a fornecer armas aos rebeldes.

Mesmo estando fora de cargos oficiais de governo desde 2010, K pôde contemplar que a sua doutrina,  já então plenamente estabelecida através da resolução RP2 da ONU, não mais dependia de suas ações diretas. Mesmo que o Conselho de Segurança não concedesse a autorização requerida para a intervenção, a OTAN já considerava  que esta era desnecessária, desde o seu aniversário de 50 anos em 1999.  

Nos últimos anos, a Síria foi alvo de repetidos ataques aéreos por parte dos Estados Unidos e da OTAN. O argumento utilizado  tem sido, principalmente, o uso de armas químicas pelo governo de Bashar al Assad.  Em 2013, a acusação, pela oposição síria e seus aliados no mundo árabe e no Ocidente, foi do uso de gás sarin em civis em Goutha, o que foi rechaçado pelo governo Sírio, que argumentou que o ataque fora conduzido pelos rebeldes.

A intervenção militar externa só foi evitada com a concordância do governo, na destruição de todo o estoque de armas químicas, e em assinar a Convenção de Armas Químicas. Entretanto, novas suspeitas surgiram do uso de gás sarin e de cloro contra populações civis.  Em abril de 2017, já no governo Trump, a retaliação norte-americana foi através do lançamento de 59 mísseis Tomahawk. Em abril de 2018, Estados Unidos, França e Reino Unido conduziram uma série de ataques por mísseis contra vários alvos do governo sírio, em resposta ao suposto uso de agentes químicos em Douma. 

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Mísseis Cruise lançados de fragata francesa / Foto AFP / ECPAD

Nos dois casos citados, o governo Sírio alega que as acusações eram falsas, e que os ataques se deram  em violação à lei internacional, pois ocorreram sem aprovação do Conselho de Segurança da ONU. Em artigo anterior deste blogue, foi denunciado que o relatório final da OPAQ, a Organização para Proibição de Armas Químicas, havia sido manipulado com o intuito de tentar comprovar o envolvimento do governo de Assad no uso de armas químicas em Douma. A manobra fora exposta com o vazamento recente de um relatório interno, elaborado pelo grupo técnico de engenheiros da OPAQ. Embora esta revelação não garanta um “atestado de boa conduta” ao governo sírio, neste e nos outros casos citados, é no entanto um forte indício que existe um grau de deturpação nas informações veiculadas na mídia.

Em reportagem de junho de 2019, o jornalista Max Blumenthal denuncia que o grupo “Rede Síria de Direitos Humanos”, baseado no Catar, e que monitora ações do governo de Hassad, é financiado por governos estrangeiros. A Rede tem feito lobby pela “imediata intervenção” militar na Síria de uma coalizão internacional, citando como exemplo, o bombardeio da Iugoslávia pela OTAN em 1999, que ocorrera sem aprovação do Conselho de Segurança da ONU. Os principais jornais norte-americanos, as organizações internacionais de direitos humanos, e mesmo governos, têm repercutido os relatórios dúbios da Rede, sem nunca terem questionado qual a sua relação com a oposição armada na Síria e a origem dos recursos de financiamento, acrescentou Blumenthal. 

Atualmente, mesmo sem cargo no governo francês, K continua a insuflar o belicismo, desta vez contra o Irã, como em seu discurso na Albânia (vídeo em inglês), em julho de 2019, pela mudança do sistema político iraniano: “Os mulás (religiosos) são assassinos. Eles são a origem de todos os ataques terroristas, e estamos prontos para livrar este povo (iraniano) deste terrível sistema religioso”. Tratava-se de evento anual promovido pelo MEK, uma organização associada aos Mujahideen, que lutaram na revolução dos anos 70, contra o regime do Xá do Irã, Mohammad Reza Pahlavi, déspota  então apoiado pelos EUA.

A organização posteriormente rompeu com o regime dos Aiatolás, e se associou ao Iraque e aos norte-americanos, na guerra de 8 anos contra seu próprio país. MEK deixou de ser considerada uma organização terrorista e passou a aliada dos Estados Unidos, pela ação de Dick Cheney, o controverso vice-presidente de Bush, e é, atualmente, aliada de Trump contra o Irã, conforme análise no The Guardian.

K continua desempregado, mas permanece ativo na defesa do intervencionismo militar humanitário, para o bem e para o mal.

* Qualquer associação com o que aconteceu no Brasil, por ingerência norte-americana, em seguida à criação de um Fundo Soberano do petróleo pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, e à formação do banco dos BRICS, no governo de Dilma Rousseff, pode ser mais do que mera coincidência.

No próximo e último artigo da série, será abordado o período em que K atuou como como representante da ONU no Kosovo, de 1999 a 2001. Alguns fantasmas daquela época podem voltar agora para assombrar K, e  talvez ele venha a ser acusado de conivência com uma organização criminosa, envolvida inclusive com o tráfico de órgãos humanos. Aí poderemos ver se a Corte Internacional de Justiça, em Haia, será imparcial ao julgar uma (ou mais) das lideranças do Ocidente.