Judeus na Palestina: de Napoleão à Nakba

Por Ruben Rosenthal

Nas manifestações do Dia da Nakba, os palestinos brandem as chaves das casas que foram obrigados a deixar, e para as quais ainda têm a esperança de voltar um dia.  expulsão de palestinos

Palestinos expulsos de suas casas \ Foto: domínio público

A limpeza étnica de palestinos promovida pelos judeus começou efetivamente no início do século 20, com a implantação dos primeiros assentamentos judaicos em terras da Palestina; ocorreu de forma massiva em 1948; e prossegue desde então.

A geopolítica internacional continua a favorecer Israel. Até quando as potências Ocidentais continuarão a se omitir em relação à ocupação de terras palestinas e à violência desmedida contra a população? A aprovação da Lei dos Estado-Nação em 2018 reforçou as críticas, tanto internamente, como vindas de judeus da diáspora, de que Israel se tornou um regime de apartheid.

A matéria que se segue apresenta extratos do artigo “Uma breve história do conflito Israel-palestinos”, publicado pelo jornal britânico The Independent. Inclui também alguns trechos de matéria publicada pela BBC News. Os subtítulos e os textos entre parênteses foram acrescentados por este autor.

Um enclave europeu no Oriente Médio 

A ideia do estabelecimento de uma pátria judaica na Palestina remonta a 1799, vinda de Napoleão Bonaparte, após o comandante francês promover cerco a Acre (Akka, em árabe), como parte  de sua campanha contra o Império Otomano.

Napoleão acabou sendo derrotado nessa conquista, mas a tentativa de estabelecer uma fortaleza europeia no Oriente Médio foi revivida 41 anos depois pelos britânicos. O secretário de Relações Exteriores, Lord Palmerston, escreveu a seu embaixador em Istambul, instando-o a pressionar o sultão otomano para abrir a Palestina aos imigrantes judeus, como meio de conter a influência do governador egípcio Mohammed Ali. Naquela época, havia apenas cerca de 3.000 judeus vivendo na Palestina.

Alguns benfeitores ricos, como o aristocrata francês Barão Edmond de Rothschild, começaram a patrocinar a ida de judeus da Europa para a Palestina. Na ocasião, os maiores contingentes vieram da Europa Oriental. Foram estabelecidos assentamentos, o mais notável sendo Rishon Le Zion, fundado em 1882.

Surge o Sionismo

O escritor austríaco Nathan Birnbaum cunhou o termo “sionismo” em 1885. Uma década depois, o jornalista austro-húngaro Theodor Herzl publicou o livro “O Estado Judeu”, pregando o estabelecimento de uma entidade judaica.

Dois rabinos foram então enviados à Palestina pelo amigo de Herzl, Max Nordau, para investigar a viabilidade da ideia, mas relataram: “A noiva é linda, mas é casada com outro homem”.

No entanto, Birnbaum, Herzl e Nordau não ficaram demovidos de seus objetivos, e em 1897 organizaram o Primeiro Congresso Sionista, em Basel, Suíça. Na ocasião puderam discutir planos de fazer lobby junto às potências europeias, para a concretização do sonho de uma nação judaica independente.

Em 1907, a Grã-Bretanha estava considerando a necessidade de estabelecer um “estado-tampão” no Oriente Médio, para reforçar seu domínio.

Começa a limpeza étnica

O líder sionista britânico Chaim Weizmann chegaria a Jerusalém nessa época, para formar uma empresa voltada para a aquisição de terras perto de Jaffa. Em três anos, cerca de 10.000 acres de terra foram adquiridos na região de Marj Bin Amer, no norte da Palestina.

Cerca de 60.000 agricultores locais foram forçados a sair de suas terras para acomodar judeus que chegavam da Europa e do Iêmen. Foi estabelecida a milícia Hashomer para proteger o número crescente de assentamentos de judeus.

Fim do Império Otomano: Declaração Balfour e o futuro da Palestina  

Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a Grã-Bretanha, desconfiada dos maometanos, intensificou seu interesse em desenvolver uma presença aliada na Palestina, também como forma de fortalecer o domínio sobre o Canal de Suez.

Em janeiro de 1915, o político do Partido Liberal, Herbert Samuel, esboçou em segredo o memorando “O Futuro da Palestina”. Samuel defendeu a anexação da Palestina e a gradativa formação de um Estado Judeu autônomo, sob a proteção do Império Britânico.

No ano seguinte foram demarcadas as regiões que ficariam sob as esferas de influência britânica e francesa, no caso de um colapso do domínio otomano.

Em novembro de 1917, em carta do secretário de relações exteriores britânico, Arthur Balfour, ao líder da comunidade judaica britânica, Barão Walter Rothschild, foi declarado formalmente o  apoio ao estabelecimento de um “lar nacional para o povo judeu” na Palestina.

Com a  Declaração Balfour, o governo britânico assumiu que era proprietário das terras e que tinha o direito de doá-las, algo bastante questionável. Em 11 de dezembro de 1917, o general Edmund Allenby capturou a cidade sagrada de Jerusalém.

Com o fim da Primeira Grande Guerra, o presidente dos EUA, Woodrow Wilson, encomendou um relatório sobre as regiões não turcas do derrotado Império Otomano. Naquela ocasião, quase 90 por cento dos não-judeus da população da Palestina se manifestaram “enfaticamente” contra o projeto sionista.

Os autores do relatório alertaram sobre a intensidade da rejeição, e argumentaram que a imigração judaica deveria ser limitada, no interesse da paz. No entanto, as conclusões foram suprimidas até 1922.

Na Conferência de Paz de Paris de 1919, o tenente-coronel britânico Thomas Edward Lawrence – mitificado como Lawrence da Arábia – mediou a assinatura de um acordo entre Weizmann, líder da delegação sionista, e seu homólogo árabe, Príncipe Faisal bin Hussein. Ficou acordado, em princípio, a fundação de uma pátria judaica na Palestina e de uma nação árabe independente no Oriente Médio. 

O Mandato Britânico na Palestina

Em 1922, a Liga das Nações (precursora da ONU) reconheceu o Mandato Britânico para governar a Palestina, sob a jurisdição de Herbert Samuel, como alto comissário. Foram promulgadas dezenas de iniciativas legais para estabelecer uma presença judaica, incluindo o reconhecimento do hebraico como língua oficial e a permissão de um exército judeu.

Conforme a década avançava, protestos em massa começaram a eclodir em oposição à imigração judaica. O movimento palestino tentava em vão contra-atacar e resistir ao que seus membros consideravam uma usurpação apoiada pelo poder militar e diplomático da Grã-Bretanha imperial.

Quase 250 judeus e árabes foram mortos em agosto de 1929 no Muro das Lamentações, em uma tragédia que ficou conhecida como Revolta de Buraq (ou os Massacres de 1929). Com a intenção de dissuadir as agitações, três muçulmanos foram condenados à morte por Sir John Chancellor, que sucedera a Herbert Samuel no alto comissariado.

Aumento da imigração judaica

Os protestos continuaram à medida que mais imigrantes judeus chegavam. O influxo acelerou de 4.000, em 1931 para 62.000, em 1935. Neste mesmo ano, o líder revolucionário muçulmano Sheikh Izz ad-Din al-Qassam foi morto a tiros por soldados britânicos nas colinas acima de Jenin.

Em 1936, eclodiu uma greve geral que, surpreendentemente, durou seis meses. Em represália, casas de muçulmanos foram demolidas.

A Segunda Guerra Mundial e o Holocausto

Em 1939 eclodiu a segunda guerra mundial, que opôs tropas aliadas e as do eixo – Alemanha, Itália e Japão. O Terceiro Reich foi depois considerado responsável pela execução de seis milhões de judeus em campos de concentração.

Em 1942, ano seguinte à entrada dos EUA no conflito, as relações americano-sionistas seriam cimentadas com uma conferência em Nova York.

Após as vitórias dos Aliados na Europa e no Pacífico em 1945, as potências mundiais voltaram sua atenção para o fim da violência na Palestina. hotel King David

Hotel King David após atentado terrorista do Irgun, Jerusalém, 1946 \ Foto: domínio público

O terrorismo judaico

Uma força paramilitar sionista armada, conhecida como Irgun (criada em 1931), estava atacando árabes (e britânicos, inclusive civis) na Palestina. O Irgun foi responsável pelo bombardeio do Hotel King David, em Jerusalém, em  julho de 1946, no qual morreram 91 pessoas de várias nacionalidades. No local funcionavam os escritórios centrais das autoridades britânicas.

(O atentado foi organizado por Menahen Begin, que viria a ser primeiro-ministro do Estado de Israel em 1977, como líder do Partido Likud. Trata-se do mesmo partido de Benjamin Netanyahu, atual primeiro-ministro.)

O Irgun esteve também envolvido, em abril de 1948, com o Massacre de Deir Yassin, com 107 mortes, realizado em colaboração com outra organização terrorista, conhecida como a Gangue Stern. No mesmo ano, Stern assassinaria o Conde Bernadotte, diplomata sueco enviado pelas Nações Unidas para mediar a disputa.

A criação do Estado de Israel e a Nakba

Uma proposta para o território em disputa  surgiu em 1947, quando a Assembleia Geral da ONU apresentou a Resolução 181, que propunha criar dois estados na Palestina, um abrigando judeus, e o outro, os palestinos árabes. Combate entre  A Legião Árabe e Haganah

Soldados da Legião Árabe atiram contra os combatentes judeus da Haganah, a força de autodefesa da Agência Judaica, março de 1948

A resolução foi adotada após uma votação, supostamente como resultado de pressão diplomática dos Estados Unidos. Entretanto, os palestinos rejeitaram a Proposta de Partilha votada na ONU. A argumentação foi de que, à época, os residentes judeus não possuíam mais do que 5,5 por cento das terras e, portanto, não tinham o direito de ocupar 56 por cento da Palestina. Irrompeu a guerra civil.

Com o fim do mandato britânico, a fundação do Estado de Israel foi declarada unilateralmente por David Ben-Gurion, em 14 de maio de 1948. O reconhecimento dos EUA e da então União Soviética foi imediato, mas instigou a eclosão de uma ampla guerra árabe-Israelense, vencida por Israel.

Quando a guerra terminou com o cessar fogo no ano seguinte, Israel havia expandido sua presença militar em partes do território previsto para constituir o Estado Palestino, pelo plano original da ONU. Jerusalém ficou dividida entre os israelenses e a Jordânia, que (durante os conflitos) ocupara as terras a oeste do Rio Jordão, que formaram a chamada Cisjordânia.

nakba
Nakba: direito de retorno, 2015 \ Arte: Ashraf Ghrayeb, Concurso Badil de Posters

Cerca de 700.000 civis palestinos precisaram fugir da região dos combates (com medo de serem massacrados ou foram expulsos de suas casas pelos judeus), buscando refúgio na Jordânia, Líbano, Síria, Cisjordânia e em Gaza. Muitas das vezes não conseguiram cidadania nestes países, onde permaneceram como refugiados.

O deslocamento do povo palestino (forçado a sair de suas vilas e cidades) ainda é lembrado todos os anos no “Dia da Nakba”, nome em árabe para “catástrofe”. Nas manifestações do Dia da Nakba, os palestinos brandem as chaves das casas que foram obrigados a deixar, e para as quais ainda têm a esperança de voltar um dia.

Notas adicionais: O artigo do The Independent menciona também os massacres ocorridos, após a Nakba: em 1956, nas vilas de Qalqilya, Kafr Qasim, Khan Yunis, e em 1966, em as-Samu. (Em relação a as-Samu, Israel foi censurado “por violar a Carta das Nações Unidas e o Acordo Geral de Armistício”, segundo a Resolução 228 do Conselho de Segurança da ONU.)

O autor é professor aposentado da UENF, e responsável pelo blogue Chacolhando.

Aos Palestinos restou apenas uma opção: ficar e lutar contra a limpeza étnica, por Ruben Rosenthal

O plano brutal de Trump fez um favor aos palestinos. Terminou de vez com décadas de fantasia da solução de “dois-estados”. É o momento de judeus e árabes que prezam a democracia e a igualdade, trabalharem juntos contra este plano criminoso.

proetstos de paelestinos contra plano trump
Palestinos protestam contra o plano Trump, em frente a soldados israelenses na Cisjordânia   / Foto Reuters  

O presente texto é uma tradução livre do artigo de opinião de David Hearst1, “Palestinians have only one option left: stay and fight”, publicado em janeiro no Middle East Eye. Hearst considera que uma nova fase de luta deve começar agora, por direitos iguais para todos, em um “estado único” que inclua a totalidade da Palestina histórica.

A demografia é um elefante branco que se coloca há anos no caminho do plano messiânico2 do primeiro ministro Benjamin Netanyahu, de estabelecer o Estado de Israel se estendendo do mar Mediterrâneo ao Rio Jordão, pois naquele espaço habitam mais palestinos que judeus.

De acordo com dados de 2016 fornecidos pelo Escritório Central Palestino de Estatística,   havia então 6,5 milhões de muçulmanos e 6,44 milhões de judeus, entre o Jordão e o Mediterrâneo. Os números foram apresentados ao Parlamento de Israel pelo Coronel Haim Mendez, membro da administração militar na Cisjordânia ocupada, e não incluem os palestinos árabes residentes em Jerusalém Oriental. Cabe ressaltar que o relatório mencionava “muçulmanos”, ou seja, não considerava na contagem, os palestinos cristãos.

Avalia Hearst que a questão demográfica significa que o plano de anexação não pode funcionar. Não adianta a imensa infraestrutura de concreto com que Israel cimentou sua ocupação da Cisjordânia – colônias, muros, estradas e túneis – e seu estado racista de apartheid, que é tão cruel como o que vigorou (1948-1994) na África do Sul.

Ao revelar seu plano “Visão para a Paz”, Trump anunciou que Israel iria assumir o Vale do Jordão, ou seja, 30% da Cisjordânia, onde estão a maioria das colônias judaicas. Mas, para o plano funcionar, será necessária a transferência em massa de populações, equivalente à Nakba (Catástrofe) palestina de 1948, e isto está contemplado na visão de Trump e Netanyahu para a paz.

O ítem oculto. Para Hearst, a questão central está em um parágrafo escondido dentro do documento de 180 páginas. Neste parágrafo está escrito que a troca de terras poderá incluir também “áreas habitadas”. O documento é preciso sobre qual população está se referindo, a do chamado Triângulo Norte de Israel: Kafr Qara, Baqa-al-Gharbiyye, Umm al-Fahm, Qalansawe, Tayibe, Kafr Qasim, Tira, Kafr Bara and Jaljulia.

Na região do Triângulo habitam cerca de 350.000 palestinos, todos cidadãos de Israel, residindo próximo à fronteira noroeste da Cisjordânia. Sua principal cidade, Umm al-Fahm, tem sido uma das principais defensoras da mesquita de Al Aqsa.

Diz o texto: “Poderá se contemplar, havendo acordo das partes, que as fronteiras de Israel sejam redesenhadas de forma a que as Comunidades do Triângulo passem a fazer parte do Estado Palestino”. Seria em troca da cessão do Vale do Jordão ao Estado de Israel. Esta parte oculta do plano é a mais perigosa, considera Hearst, embora conste no rodapé do mapa que nenhuma comunidade, judaica ou palestina, será removida à força. 

Na palavras de Yousef Jabareen, membro árabe do Knesset, o Parlamento de Israel, pela Lista Conjunta: “O programa de Trump e Netahyahu, de anexação e transferência, nos remove de nossos lares e revoga nossa cidadania. Trata-se de um perigo existencial para todas as minorias árabes”.

Limpeza étnica oficial. Por anos, a idéia de transferência de palestinos para fora de Israel foi levantada por líderes israelenses do centro e da direita, como Ehud Barak and Ariel Sharon. Mas foi o ex-ministro da defesa, Avigdor Lieberman, quem primeiro adotou de forma consistente, a causa da expulsão de Palestinos.

Ele defendeu a remoção da cidadania israelense dos palestinos do Triângulo, e forçar outros 20% da população que não são judeus, a fazer um “juramento de lealdade a Israel como um Estado Judaico Sionista”, ou serem expulsos para um (ainda inexistente) Estado Palestino.

Há dois anos, Netanyahu propôs a Trump que Israel deveria se livrar do problema representado pelo Triângulo. Agora, os planos de limpeza étnica foram selados em um documento oficial da Casa Branca, que chancelou as novas fronteiras de Israel. O mapa publicado pelo Middle East Eye mostra a extensão da tragédia humana que resultará da aplicação do plano. Em artigo anterior do blogue Chacoalhando, a fragmentação do território palestino foi comparada a política dos bantustões do antigo regime de apartheid da África do Sul.

maoa do plano trump

O novo Estado de Israel na Visão para a Paz, de Trump, anexando o Vale do Jordão. As colônias judaicas  permanecerão como enclaves na parte Palestina  /  Fonte: Middle East Eye

 

 

 

Apoios árabes ao plano de Trump. Chamou atenção, a presença de embaixadores dos Emirados de Bahrein e Oman, quando Trump anunciou o plano na Casa Branca. Arábia Saudita, Egito e a União dos Emirados Árabes aceitaram o plano sem restrições. O Catar também foi favorável, mas acrescentou que o Estado Palestino deveria ser negociado com base nas fronteiras de 1967, e que os Palestinos deveriam ter o “direito de retorno”.

Trump demontrou ter ficado muito satisfeito com a aceitação de seu plano por líderes mundiais. Boris Johnson foi um destes líderes. O primeiro ministro britânico descartou quatro décadas de política externa equitativa, favorável à uma solução justa de “dois-estados”. Seu secretário de relações exteriores, Dominic Raab, emitiu declaração favorável à proposta de Trump: “Esta é claramente uma proposta séria, que exigiu tempo e esforços”. 

Alguns políticos norte-americanos perceberam, no entanto, os riscos que o plano traz. O senador democrata Chris Murphy alertou: “A anexação unilateral do vale do Rio Jordão, com as colônias israelenses lá presentes, é ilegal pela lei internacional e mesmo pela norte-americana, e irá retardar o processo de paz por décadas. Além disto, traz o risco de violência e desestabilização massiva em locais como a Jordânia”.

Hearst considera que ninguém deveria subestimar a natureza histórica da declaração de Trump. “Está morta a idéia da solução de “dois-estados”, ou de que um Estado Palestino viável possa ser criado ao lado de um Estado de maioria judaica. E estava morta bem antes dos acordos de Oslo.  

Antecedendo a Oslo, o Rei Hussein da Jordânia, que atuava em favor da pacificação da região, fora advertido claramente pelo diplomata soviético Yevgeny Primakov, e por James Baker, então secretário de estado norte-americano, que um Estado Palestino independente jamais poderia existir. 

Para Hearst, a mensagem que o mapa deve passar aos palestinos de todas as facções é cristalina: “Esqueçam suas divisões e o que aconteceu em Gaza entre Fatah e Hamas, em 1997. Esqueçam todos os ressentimentos, e se unam contra a ameaça existencial”. 

Os palestinos estão realmente sós. Todos os pontos de negociação se foram: Jerusalém, direito de retorno, refugiados para retornar, Colinas de Golan, e agora, o Vale do Jordão. Eles também não têm mais aliados: a Síria está arrasada, e o Iraque, dividido. Os palestinos perderam o apoio da nação árabe mais rica e o da mais populosa, conforme Arábia Saudita e Egito são agora joguetes de Israel.

Os palestinos não têm para onde fugir. A Europa está fechada para qualquer futura migração em massa. Resta apenas uma opção: ficar e lutar. Unidos, eles podem desfazer os planos supremacistas de Israel de promover limpeza étnica. Eles conseguiram isto antes, e podem conseguir novamente, avalia Hearst.

Uma nova luta. Os palestinos precisam agora encarar a nova realidade. O reconhecimento de Israel pela Organização para a Libertação da Palestina levou a um beco sem saída, que para alguns já era esperado. Os Estados Unidos, a lei internacional, as resoluções da ONU, nunca irão resgatá-los. Neste sentido, o plano de Trump fez um favor aos palestinos, terminando com décadas de fantasias”, sentencia Hearst.

O que deve se iniciar agora é uma nova fase de lutas por direitos iguais, em um Estado que englobe toda a terra da “Palestina histórica”. Isto deverá envolver uma grande luta. Ninguém deve subestimar o que aconteceria se o povo palestino se sublevar novamente. Mas ninguém deve também ter qualquer dúvida das conseqüências da resignação, alerta o jornalista.

E conclui: “É a primeira vez, desde 1948, que todo o povo Palestino pode se juntar para fazer isto. Ele precisa aproveitar a oportunidade, ou pode terminar como uma nota de pé de página, em um livro de história. É também o momento de judeus e árabes, que prezam a democracia e a igualdade, de se levantarem e trabalharem juntos contra este plano perigoso”.

Notas do autor:

1. David Hearst é editor-chefe do Middle East Eye, e foi redator-chefe para assuntos internacionais do britânico The Guardian.

2. Benjamin Netanyahu tem uma visão messiânica de si mesmo, segundo Eyal Arad, estrategista político que atuou como conselheiro de Netanyahu. Para Arad, o primeiro-ministro se considera como o salvador do povo judeu de um novo Holocausto.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

 

 

Kosovo 2019: a limpeza étnica consensual

Por Ruben Rosenthal

Dez anos após a conflituosa declaração de independência do Kosovo, os presidentes da Sérvia e do Kosovo tentam chegar a um acordo, que incluiria a troca de territórios, com a conseqüente migração de consideráveis contingentes populacionais. Os temores são de que, se concretizada, esta limpeza étnica consensual poderá abrir uma “caixa de Pandora”, com resultados desastrosos para os Bálcãs.

redesenhando fronteiras
Redesenhando fronteiras  nos Balcãs       Foto   DW/N Rujevic

Este é o quarto e último artigo da série Revisitando os Conflitos e a Fragmentação da ex-Iugoslávia. Os artigos anteriores abordaram os questionamentos ao consenso de genocídio em Srebrenica, a absolvição póstuma do ex-presidente Slobodan Milosevic de todos os crimes que o mantiveram encarcerado por cinco anos, e de como uma empresa de relações públicas conseguiu “vender” o conceito, prontamente encampado pela mídia, de que os campos de prisioneiros bósnios, controlados por sérvios, eram campos de extermínio.

O nacionalismo esteve presente na província autônoma do Kosovo, de maioria albanesa, desde os anos 80, se manifestando, por vezes, em ataques às minorias sérvias e montenegrinas. Em 1996 foi formado o Exército de Libertação do Kosovo (KLA), grupo paramilitar que começou uma campanha armada contra o governo central da Iugoslávia, que então consistia apenas das Repúblicas da Sérvia e de Montenegro. A intervenção de Belgrado na autonomia do Kosovo, com o intuito de impor reformas econômicas do FMI, foi o estopim para a escalada dos conflitos. Seguiu-se a declaração do estado de emergência em março de 1999.

Os Estados Unidos e os países europeus da OTAN aproveitaram o aumento da violência no Kosovo, para promoverem uma campanha de 77 dias de bombardeios aéreos contra a Sérvia. Os relatos dominantes na mídia foram de que os bombardeios se deram principalmente para deter a limpeza étnica em curso no Kosovo. Entretanto, a migração de centenas de milhares de kosovares albaneses ocorreu apenas após o início dos bombardeios, conforme declaração do então secretário geral da OTAN, Lorde Carrington: “penso que o bombardeio da Sérvia pela OTAN precipitou o êxodo de albaneses do Kosovo para a Macedônia e Montenegro, sendo a causa da limpeza étnica”.  

Em uma informação sobre o número de vítimas nos conflitos do Kosovo, consta que morreram 11.000 albaneses, 2.000 sérvios e cerca de 500 ciganos. Pelos acordos que se seguiram à cessação das hostilidades, a resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU, de 10 de Junho de 1999, sublinha “o compromisso de todos os Estados membros para com a soberania e a integridade territorial da República Federal da Iugoslávia”, da qual a Sérvia é a sucessora legal. E à autoridade internacional, caberia “facilitar, esperando por uma resolução definitiva, a instauração de uma autonomia e de uma autodeterminação substanciais.” 

Diante do impasse, o secretário-geral da ONU encarregou um antigo Presidente finlandês, Martti Ahtisaari, de estudar uma solução. No relatório final, de 2007, ele propôs a independência do Kosovo sob supervisão internacional, como “única saída viável para garantir a estabilidade e segurança”, o que não foi aceito pelas partes.

Em fevereiro de 2008, com o apoio dos Estados Unidos e das principais potências da União Européia (UE), o parlamento do Kosovo, em sessão boicotada pelos parlamentares de origem sérvia, votou pela declaração de unilateral de independência. O Conselho de Segurança da ONU não chegou a um acordo sobre a questão da independência, e, com isto, a UE e a OTAN assumiram a responsabilidade pela segurança da região, substituindo o pessoal da ONU nas funções de polícia e justiça.

A Assembléia Geral solicitou o parecer da Corte Internacional de Justiça, sobre se “a declaração unilateral pelas Instituições Provisórias do Auto-Governo do Kosovo estavam em consonância com a lei internacional e com a decisão 1244, de junho de 1999, do Conselho de Segurança”. A Corte considerou que a proclamação não se deu em  violação das decisões da ONU, mas desde então permaneceu o impasse, quanto ao reconhecimento internacional do Kosovo independente.

Cerca de 100 países membros da ONU reconheceram a independência do Kosovo, em oposição a 80 países, onde se incluem Rússia, China, Israel, Irã, Espanha, Grécia, e, naturalmente, a Sérvia. Com isto, o acesso do Kosovo a UE e a ONU ficou impossibilitado.  

A UE conduziu, a partir de 2011, reuniões entre os dois países, que resultaram em vários acordos técnicos, visando a normalização das relações, e uma melhor integração da minoria sérvia do norte do Kosovo.  Em agosto de 2018, surgiu a possibilidade de Kosovo e Sérvia chegarem a um acordo sobre questões territoriais. Aleksandar Vucic, presidente da Sérvia, e o presidente do Kosovo, Hashim Thaçi, estariam próximos de chegar a um acordo, que ajudaria a estabilizar os Bálcãs, e que abriria o acesso de ambos os países à UE, e do Kosovo, à ONU. As negociações passaram a ocorrer com a mediação de Federica Mogherini, principal responsável pela política de relações exteriores da UE.

O acordo que está sendo discutido é chamado, algumas vezes, de “correções de fronteira”, e outras, de “troca de territórios”. Nenhum dos dois presidentes deu detalhes precisos do andamento das discussões, mas as indicações são de que a parte norte do Kosovo, de maioria sérvia, se integraria à Sérvia, enquanto que a região conhecida como Presevo Valley, ao sul da Sérvia, seria cedida ao Kosovo. Mas para que ambos os países se tornem mais “etnicamente puros”, precisará ocorrer, não apenas troca de territórios, mas, também, migração de pessoas, que seriam obrigadas a deixar suas casas, e os locais em que suas famílias viveram por gerações.

mapa do kosovo com regiões da troca
Possível mapa da troca de territórios: região em verde escuro, a ser cedida para a Sérvia, e em roxo escuro, a ser cedida para o Kosovo         Fonte Reuters 

Charles Kupchan, que fora conselheiro de Barack Obama, e é atualmente professor na Georgetown University, em artigo no New York Times, descreveu o plano como uma “limpeza étnica pacífica”. Apoiador da idéia de troca de territórios, ele acredita que “o pragmatismo precisa superar princípios”. O professor James Ker-Lindsay, da London School of Economics, especialista em Bálcãs, expressou também, para a BBC News, a opinião favorável que “mudanças na fronteira podem parecer desagradáveis, mas muitos consideram como uma solução prática”.

Entretanto, a “limpeza étnica” não é consensual. O acordo de troca de territórios, que é aceito  pelos Estados Unidos, está sob crítica de todos os lados, segundo artigo no The Guardian. A alteração das fronteiras encontra forte oposição de vários países da Europa, notadamente da Alemanha e do Reino Unido. No entanto, a França seria plenamente favorável.

Em um apelo enviado a Federica Mogherini, conforme relatado pelo Deutsche Welle, três ex-Altos Representantes (da Europa) na Bósnia alertaram para o risco de se abrir uma “caixa de Pandora”. Acrescentaram ainda que, “mexer com as fronteiras não irá resolver disputas, e sim, aprofundá-las. A paz sustentável poderá vir apenas quando possamos aprender a viver em comunidades multi-étnicas, ao invés de redesenhar fronteiras”. Alertaram ainda que políticos nacionalistas poderiam aproveitar o momento, para agitar pela divisão da Bósnia.

Um diplomata europeu disse que a troca é levada a sério por Belgrado, mas há falta de unidade em Pristina (capital do Kosovo): “até o momento, o presidente Thaçi está só nesta empreitada”. O primeiro ministro e ex-comandante do Exército de Libertação do Kosovo, Ramush Haradinaj, tem se oposto veementemente à possibilidade de troca de territórios, declarando que alterações nas fronteiras levariam à guerra. Mas sua recente renúncia, após ser convocado por uma Corte em Haia, por supostos crimes de guerra cometidos contra a população civil servo-kosovar, pode fortalecer as posições do presidente.  

Para as populações locais, a troca também levantou reações de insatisfação. Os nacionalistas, tanto na Sérvia como no Kosovo, estão relutantes em fazer um acordo que signifique ceder ao outro lado. Para os sérvios do Kosovo não existe unidade, pois aqueles que vivem ao sul do Rio Ibar estão receosos de que serão abandonados a própria sorte, caso a região ao norte se incorpore à Sérvia.

protesto contra Thaçi
Faixa contra a “barganha com terras do país”  em protesto contra Thaçi       Foto   Petrit Prenaj/EPA 

O presidente sérvio foi também criticado pelo clero Ortodoxo, e denunciado como traidor, caso contemple o reconhecimento da independência do Kosovo. Esta pressão do clero poderia ter origem em Moscou, que teria receio de perder a influência sobre a Sérvia, com a normalização das relações. 

Agron Bajrami, editor-chefe do principal jornal do Kosovo, declarou ao The Guardian, que a troca poderia vir a se tornar um pesadelo. Ele considera que o plano iria causar imensa instabilidade por toda a região dos Bálcãs, pois muitas comunidades não gostam do Estado em que vivem. E exemplifica: os sérvios e croatas, na Bósnia, os muçulmanos, na Sérvia, e os albaneses, na Macedônia, bem como os húngaros, na Eslováquia. “A limpeza étnica é um crime, seja pacífica ou não”, acresentou.

O ministro do exterior da Macedônia (agora Macedônia do Norte), ex-república da ex-Iugoslávia, declarou que “a única visão sustentável para a estabilidade dos Bálcãs, é uma em que as fronteiras não importem – uma região de países amigáveis, que sejam membros da UE”.  É interessante observar que a troca do nome do país foi realizada para que a Grécia não se opusesse à entrada da Macedônia na OTAN. A Grécia temia possíveis ambições territoriais da República da Macedônia sobre a histórica região da Macedônia, província grega.

Nos meses que se seguiram aos contatos iniciais entre os dois presidentes, a tensão cresceu entre a Sérvia e o Kosovo, levando a Sérvia a suspender as conversações sobre a troca de territórios. A evolução da escalada de tensões pode ser acompanhada, conforme o relato cronológico, a seguir.  

18.10.2018  – As autoridades do Kosovo decidiram transformar a Força de Segurança do Kosovo em Exército Nacional, ainda em 2018, consistindo de 5.000 militares na ativa e 3.000 na reserva. A OTAN criticou o “momento impróprio” da decisão, mas não o seu mérito.

05.11.2018 – O Ocidente insta a Sérvia a cessar as atividades diplomáticas focadas em reduzir o número de nações que reconhecem a independência do Kosovo.

21.11.2018 –  O presidente Vucic, da Sérvia, informou que a decisão das autoridades do Kosovo, de impor taxação de 100% nas importações vindas da Sérvia, poderá levar à escalada do conflito na região. 

06.12.2018 – O primeiro ministro kosovar, Haradinaj, declarou que o futuro exército irá servir no Afeganistão e Iraque, mas não representa ameaça aos sérvios do norte do Kosovo.

 07.12.2018 – O ministro de exterior russo, Sergei Lavrov, expressou a preocupação que o aumento da presença da OTAN e da UE nos Bálcãs leve à desestabilização da Europa.

14.12.2018 – O presidente Thaçi declarou que o Exército do Kosovo será um parceiro ativo e um aliado da OTAN.  

14.12.2018 – O Secretário Geral da ONU, Antônio Guterres, expressou preocupação com a decisão de Kosovo de formar um exército, instando moderação às partes envolvidas.

18.12.2018 – Os Estados Unidos instou as partes a criarem condições para o diálogo.

18.12.2018 – O representante russo na ONU declarou que a formação de um exército nacional por Pristina, viola a resolução 1244 do Conselho de Segurança, e a própria Constituição do Kosovo. E que a implementação das tarifas de 100% nos bens importados da Sérvia e da Bósnia-Herzegovina, constitui uma violação do Acordo de Livre Comércio da Europa Central (CEFTA).

30.12.2018 – De acordo denúncia do vice-líder do partido alemão Die Link, a Alemanha está apoiando ativamente o Kosovo quanto à criação de seu exército, e de integrá-lo à OTAN.

15.04.2019 – Thaçi expressou que um acordo com a Sérvia é ainda possível em 2019, apesar dos sérios revezes dos últimos meses.

29.05.2019 – As tensões entre o Kosovo e a Sérvia cresceram ainda mais, após a polícia no Kosovo confrontar e prender dezenas de sérvios, como parte de uma operação contra o contrabando, na região norte do país. A Sérvia ficou em estado de prontidão para o combate, e avisou que não ficará imóvel se sérvios no Kosovo forem atacados.

operaçaõ contra contrabando
Operação contra contrabando ao norte do Kosovo     Foto   EPA / Shutterstock

Resta ver como o recente afastamento de Haradinaj afetará a política do Kosovo em seu relacionamento com a Sérvia. O presidente Thaçi, que foi líder político do KLA, poderá ser também julgado por crimes cometidos anteriormente pela organização contra sérvios, ciganos e oponentes políticos. Por trás da procura de um acordo com a Sérvia e inserção na UE, Thaçi pode estar tentando evitar ser submetido a julgamento, embora ele tenha declarado que está disposto a responder à Corte em Haia, se convocado. 

Concluindo,

O blogue Chacoalhando agradece ao GGN pela republicação dos artigos desta série. Procurou-se mostrar como os Estados Unidos e o Ocidente, manobraram os nacionalismos locais para conseguir a desintegração da República Socialista Federativa da Iugoslávia, isto ao custo da destruição de cidades e de dezenas de milhares de mortes.  E de como a ideologia da “intervenção humanitária” surgiu como estratégia para alcançar objetivos geopolíticos pelo Ocidente, tendo a mídia como copartícipe desta estratégia.

Cabe ressaltar que nem todos os temas relevantes puderam ser incluídos nos quatro artigos da série. Ficam as desculpas também por alguns erros de grafia, particularmente na escrita de “Iugoslávia” (forma correta),  nos dois artigos iniciais.