Israel e palestinos em luta decisiva à frente

Uma Intifada popular palestina de longa duração, em uma revolta com demandas específicas e sob uma liderança nacional unificada, representaria a maior ameaça à ocupação militar de Israel e ao regime do apartheid em muitos anos.

Gaza war
Gaza no centro dos conflitos entre Israel e os palestinos \ Arte: domínio público

O texto que se segue é uma tradução, por Ruben Rosenthal, do artigo do jornalista e pesquisador Ramzy Baroud¹, Teatro político de Bennett: Israel e palestinos em luta decisiva à frente, publicado no Counter Punch em 2 de julho de 2021.  A ilustração original foi substituída pelo tradutor.

Muitos palestinos acreditam que o confronto militar de 10 a 21 de maio entre Israel e a resistência de Gaza, juntamente com a revolta popular simultânea em toda a Palestina, foi um divisor de águas. Israel está fazendo tudo ao seu alcance para provar que estão errados.

Os palestinos estão justificados em ter este ponto de vista. Afinal, apesar de suas minúsculas capacidades militares, eles conseguiram repelir – ou pelo menos neutralizar – a enorme e superior máquina militar israelense em um pequeno trecho de terra sitiado e empobrecido como a Faixa de Gaza.

No entanto, para os palestinos, não se trata apenas de poder de fogo, mas também de sua almejada unidade nacional. De fato, a revolta palestina, que incluiu todos os palestinos, independentemente de suas origens políticas ou geográficas, está promovendo um novo discurso sobre a Palestina – não sectário, assertivo e progressista.

O desafio para o povo palestino é se ele será capaz de traduzir suas conquistas em uma estratégia política real, e finalmente superar o opressivo – e muitas vezes trágico – período que se seguiu aos acordos de Oslo².

É evidente que não será tão fácil. Afinal, há forças poderosas que estão profundamente envolvidas no atual status quo. Para elas, qualquer mudança positiva no caminho da liberdade palestina certamente levará a perdas políticas, estratégicas e econômicas.

A Autoridade Palestina, que opera sem mandato democrático, está mais consciente de sua posição vulnerável do que em qualquer outro momento do passado. Não só os palestinos comuns não têm fé nesta “autoridade”, mas eles a veem como um obstáculo em seu caminho para a libertação.

Portanto, não foi surpresa ver o presidente da AP, Mahmoud Abbas, e muitos de seu corrupto círculo íntimo, cavalgarem a onda da revolta popular palestina, mudando inteiramente sua linguagem. Mesmo que fugazmente, eles passaram de um discurso que fora cuidadosamente projetado para ganhar a aprovação dos “países doadores”, para um que canta as glórias da “resistência” e da “revolução”. Este grupo corrupto está desesperado, ansioso para sustentar seus privilégios e sobreviver a qualquer custo.

Se os palestinos continuarem com sua mobilização popular e trajetória ascendente, Israel é a entidade que mais tem a perder. Uma Intifada popular palestina de longa duração, em uma revolta com demandas específicas e sob uma liderança nacional unificada, representaria a maior ameaça à ocupação militar de Israel e ao regime do apartheid em muitos anos.

O governo israelense, desta vez sob a liderança inexperiente do atual primeiro-ministro, Naftali Bennett, e de seu parceiro de coalizão, o futuro primeiro-ministro, Yair Lapid, é claramente incapaz de articular uma estratégia de guerra pós-Gaza. Se a bizarra transição política de poder, do ex-líder israelense Benjamin Netanyahu para a coalizão de Bennett, for por um instante ignorada, parece como se Netanyahu estivesse ainda mantendo o controle.

Bennett, até agora, seguiu o manual de Netanyahu sobre todos os assuntos relativos aos palestinos. Ele, e especialmente seu ministro da Defesa, Benny Gantz – ex-parceiro de coalizão de Netanyahu – continuam a falar de seu triunfo militar em Gaza e da necessidade de avançar nessa suposta “vitória”. Em 15 de junho, o exército israelense bombardeou vários locais na Faixa de Gaza sitiada e, novamente, em 18 de junho. No entanto, umas bombas a mais dificilmente mudarão o resultado da guerra de maio.

“É hora de converter nossas conquistas militares em ganhos políticos”, disse Gantz em 20 de junho. Mais fácil dizer do que fazer. De acordo com essa lógica, Israel vem pontuando “conquistas militares” em Gaza há muitos anos, ou seja, desde a sua primeira grande guerra contra a Faixa, em 2008-09. Desde então, milhares de palestinos, a maioria civis, foram mortos e muitos mais feridos. No entanto, a resistência palestina continuou inabalável e zero “ganhos políticos” foram realmente alcançados.

Gantz, como Bennett e Lapid, reconhece que a estratégia de Israel em Gaza foi um total fracasso. Uma vez que seu principal objetivo é permanecer no poder, eles estão atados às regras do velho jogo que foram formuladas por políticos de direita e sustentadas por extremistas de direita. Qualquer desvio deste estratagema fracassado significa um possível colapso de sua coalizão instável.

Em vez de conceber uma nova estratégia realista, o novo governo de Israel está ocupado, enviando mensagens simbólicas. A primeira mensagem é para seu principal público-alvo – o eleitorado de direita de Israel, particularmente os partidários de Netanyahu descontentes– de que o novo governo está igualmente comprometido com a “segurança” de Israel, para garantir uma maioria demográfica na Jerusalém ocupada, como no resto da Palestina, e que nenhum Estado palestino jamais será concretizado.

Outra mensagem é para os palestinos e, por extensão, para países da região cujos povos e governos apoiaram a revolta palestina durante a guerra de maio: que Israel continua sendo uma formidável força militar, e que a equação militar fundamental permanece inalterada.

Ao continuar sua escalada militar dentro e ao redor de Gaza, as violentas provocações no bairro de Sheikh Jarrah e em toda Jerusalém Oriental, e as contínuas restrições à necessidade urgente de reconstrução de Gaza, a coalizão de Bennett está se engajando em um teatro político. Enquanto a atenção permanecer fixada em Gaza e Jerusalém, Bennett e Lapid continuam a ganhar tempo e a distrair o público israelense de uma iminente implosão política.

Os palestinos estão, mais uma vez, provando ser atores críticos na política israelense. Afinal, foi a unidade e a determinação palestina em maio que humilhou Netanyahu, e encorajou seus inimigos a finalmente removê-lo do poder.

Agora, os palestinos poderiam potencialmente ter as chaves para a sobrevivência da coalizão de Bennet, especialmente se o governo israelense  concordar com uma troca de prisioneiros: vários soldados israelenses capturados por grupos palestinos em Gaza seriam libertados, em troca de centenas de prisioneiros palestinos mantidos sob terríveis condições em Israel.

No dia da última troca de prisioneiros, em outubro de 2011, Netanyahu fez um discurso televisionado, cuidadosamente elaborado para ele se apresentar como salvador de Israel. Bennett e Lapid apreciariam uma oportunidade semelhante.

Cabe aos novos líderes de Israel ter cautela em como proceder a partir de agora. Os palestinos estão provando que não são mais peões no circo político de Israel, e que também podem fazer política, como as últimas semanas demonstraram.

Até agora, Bennett provou ser um outro Netanyahu. No entanto, se o primeiro-ministro mais longevo de Israel em última análise falhou em convencer os israelenses do mérito de sua doutrina política, a farsa de Bennett provavelmente será exposta muito mais cedo. E o preço certamente será ainda mais pesado desta vez.

¹Ramzy Baroud é jornalista e editor do The Palestine Chronicle. Ele é autor de vários livros, e pesquisador sênior não residente no Centro para o Islã e Assuntos Globais (CIGA),  da Universidade Zaim de Istambul.

²Em 1993, Yitzhak Rabin, então primeiro-ministro de Israel, e Yasser Arafat , presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), assinaram os chamados “acordos de paz de Oslo” na Noruega.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, e responsável pelo blogue  Chacolhando.

Como o Deus dos judeus me tornou antissionista

Por Ruben Rosenthal 

Me afastar de Deus e, como consequência, de um convívio mais próximo com a comunidade judaica, contribuiu para que eu não incorporasse o sentimento de vítima a que os judeus frequentemente recorrem para justificar as ações de Israel, por mais desumanas que estas possam ser.

Sodoma e Gomorra em chamas
Sodoma e Gomorra em chamas: os anjos conduzem Ló e sua família; ao fundo, a estátua de sal da esposa de Ló \ Pintura: Jacob de Wet II, 1680
 

A partir de 2018 comecei a escrever de forma sistemática artigos de cunho político, em que o tema da Palestina foi e continua a ser bastante recorrente. O tom dos artigos foi sempre de crítica às ações do Estado de Israel contra o povo palestino, tanto internamente, como nos territórios ocupados ilegalmente e na Faixa de Gaza.  

Mas se hoje já consigo denunciar que Israel é um Estado opressor, que implementa uma política de apartheid, nem sempre pensei desta forma. Considero que a minha rejeição ao sionismo foi um processo gradual, que começou há várias décadas, com o meu afastamento do Deus punitivo dos judeus.   

A religião na infância  

Me recordo de quando meus pais me levavam no feriado judaico do Yom Kipur – o Dia do perdão – ao velho templo da Praça Onze, no Centro do Rio de Janeiro, demolido anos depois com as obras do metrô. Apenas os homens podiam ficar na parte de baixo, onde eram conduzidas as rezas pelos anciões do templo. Um destes era tio de minha mãe, o tio Chico. 

Nestas ocasiões, eu me sentia bastante incomodado pelo cheiro presente do salão de reza. O odor parecia vir do hálito dos que estavam jejuando desde as 18 horas do dia anterior, quando boa parte dos que estavam presentes provavelmente teria comido aliche em conserva na última refeição. Para complementar a composição do cheiro, talvez estivesse incluída uma pitada de odor vindo da naftalina usada na preservação dos ternos. 

O vozerio no salão por vezes crescia até alcançar um nível quase insuportável. Um dos anciões dava então uma pancada forte na bancada, cobrando silêncio. Algum tempo depois a mesma situação voltava a se repetir, e assim, até o encerramento às 18 horas.    

A minha memória mais antiga, no que se refere ao Estado de Israel, é de quando eu estudava em um colégio israelita no bairro de Botafogo. Creio que eu devesse ter uns 7 anos de idade na ocasião. Lembro que os professores ou a direção solicitavam aos alunos que intercedessem junto aos pais, para que estes contribuíssem na arrecadação de dinheiro para plantar árvores no deserto do Neguev, em Israel. Hoje eu me pergunto se tais doações não teriam sido destinadas à compra de armas.  

Foi também quando escutei pela primeira vez a frase que já vinha sendo usada há décadas pelos sionistas: “Uma terra sem povo para um povo sem terra”. Anos depois a verdade se sobrepôs, conforme o drama dos refugiados palestinos ficou evidenciado para o mundo.  

Naquela ocasião aprendi em sala de aula como ao longo da história milenar do povo hebreu Deus havia sido implacável com os inimigos de Israel: “Jeová é um Deus vingativo e ciumento, rico em ira; vinga-se dos seus adversários e guarda rancor aos seus inimigos” (Nahun 1, 2-8). Em luta contra os reis amorreus, “Josué consagrou todos os seres vivos ao extermínio, como Jeová havia ordenado, e apoderou-se de todos os territórios daqueles reis” (Josué 10, 6-8, 40-42). Naquela época eu não havia ainda ouvido falar nos palestinos, só nos filisteus – os grandes inimigos dos hebreus, que haviam se instalado em Gaza. 

Me ensinaram também que quando Deus era desrespeitado pelos israelitas, Ele os castigava, fosse com o ataque de inimigos ou com outras formas de punição. Lembro de algum professor mencionando em sala de aula a destruição de Sodoma e Gomorra, pelos pecados cometidos por seus cidadãos: “Então o Senhor fez chover fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra”. 

Na ocasião fiquei sem entender que comportamentos desviantes eram esses, que levaram Deus a punir com tamanha severidade seu próprio povo. Quando algum tempo depois vim a saber mais sobre Sodoma e Gomorra, me dei conta de que meus pensamentos já eram pecaminosos, mesmo na tenra idade.  

Ao final da adolescência, compreendi que só havia um jeito de me livrar do sentimento de culpa que carregava pelos “pecados” que continuavam a povoar meus pensamentos: tentar tirar Deus e a religião da minha vida. Ajudou bastante a este propósito, passar a estudar em um colégio laico, como o Pedro II.  

1967: o Grande Israel  

Eu estava perto de completar 16 anos, quando as imagens do general israelense usando um tapa-olho dominaram o noticiário. Vibrei com as notícias de como a estratégia bélica de Moshe Dayan havia levado à derrota dos exércitos do Egito, Síria, Jordânia e Iraque. E de como Israel passara a ocupar terras que aumentavam em várias vezes seu próprio território. Outra guerra entre os israelenses e os “vilões” árabes estourou em 1973, quando Israel foi atacado no feriado Yom Kippur.  

A questão palestina surgida com a fundação de Israel passou a ocupar uma relevância cada vez maior no contexto da crise no Oriente Médio, conforme diminuía a possibilidade da eclosão de novas guerras generalizadas. Na ocasião eu me perguntava por que os países árabes não faziam uso de seus petrodólares para acomodar os palestinos em novas terras.  Só que a questão dos refugiados e dos palestinos em geral não era tão fácil de ser resolvida.  

1977-1984: nas manifestações em Londres 

Em 1977 fui fazer pós-graduação em Londres. No primeiro ano morei em um alojamento para estudantes, uma verdadeira Babel de línguas e costumes. Foi lá que tive o meu primeiro contato com um palestino, cujo nome não recordo. Não ficamos amigos, mas tínhamos uma boa convivência.  

Ele tentava me convencer da responsabilidade dos governos de Israel pelo sofrimento de seu povo. Às vezes eu me sentia um tanto constrangido de conversar com ele. Por mais que eu pudesse ter percepção e compadecimento pelo sofrimento dos refugiados, eu não conseguia ver Israel como um algoz, e sim, como uma nação agindo em autodefesa, para seu povo não ser “varrido ao mar”. Os atentados praticados pela OLP, a Organização para a Libertação da Palestina, e outros grupos terroristas também colaboravam com esta visão.  

Quando mudei do alojamento perdi contato com o palestino; não sei se ele ficou no Ocidente após concluir seu curso – creio que de Direito, ou se retornou à Palestina. Talvez esteja atuando nos tribunais de Israel, em defesa de causas palestinas. Como também pode ter morrido em um dos devastadores bombardeios promovidos pelo exército israelense. 

Pode ser transformador viver, mesmo que por alguns anos, em um centro do imperialismo mundial, como a Inglaterra. Naquele período foram frequentes os eventos e manifestações contra o regime de apartheid da África do Sul, contra a intervenção de Reagan na Nicarágua e El Salvador, contra o domínio britânico na Irlanda do Norte, bem como pelo direito do povo palestino à autodeterminação. 

2018: o blogue Chacoalhando   

Quando comecei a escrever sobre Israel e a questão palestina, uma das minhas referências de informação foi o site Gush Shalom (Bloco da Paz), do ativista e herói israelense da guerra de independência de 1948, Uri Avnery, falecido em 2018.  

Avnery chegou a se encontrar mais de uma vez com o líder palestino Yasser Arafat, o que poderia tê-lo levado à acusação de traição. Ele acreditava na solução de “dois estados”, em que precisariam ser feitas algumas concessões territoriais de ambas as partes, além de compensações financeiras a uma parte dos palestinos que foram desalojados pela Nakba (Catástrofe).   

Estima-se que quando Israel proclamou de forma unilateral sua independência em 1948, cerca de 700 mil palestinos foram expulsos ou abandonaram suas casas com medo de serem massacrados. Muitos destes passaram a viver em campos de refugiados nos países vizinhos, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. 

Avnery, no entanto, até o final de sua longa e combativa vida relutou em usar o termo “apartheid”, em relação à situação interna de Israel e dos territórios ocupados da Cisjordânia. O último artigo em sua coluna no site foi em 4 de agosto, e intitulou-se: Quem diabos somos nós?  

O artigo foi escrito na sequência da aprovação pelo parlamento israelense, a Knesset, da legislação intitulada: “Lei Básica: Israel, o Estado-nação do Povo Judeu”. Quando o então presidente David Ben-Gurion leu a declaração de independência, esta proclamava a fundação de um Estado Judaico.  

Ainda segundo Avnery, a declaração não se tornou lei, embora a Suprema Corte passasse a adotar seus princípios, mesmo sem uma base legal. Ela mencionava um “Estado Judaico e democrático”, e prometia igualdade para todos os cidadãos, independentemente de religião, etnicidade ou sexo.  Em relação à Lei Básica, Avnery acrescentou: “Não há Democracia.  Não há igualdade. Um Estado dos judeus, para os judeus, pelos judeus”.  

Na mesma ocasião, uma importante doadora para causas beneficentes em Israel, a britânica Dame Vivien Duffield, foi bastante assertiva ao declarar: “Meu Israel está morto…. É apartheid! Para os ingleses que relembram a África do Sul, isto (agora) é a África do Sul! Uma lei para um grupo, e uma outra, para o outro grupo”.  

Para Netanyahu, os judeus que criticam a lei são esquerdistas e traidores, “que esqueceram o que é ser judeu”.  No entanto, é crescente o número de judeus fora de Israel que não compactuam com o tratamento concedido aos palestinos, e com os bombardeios do exército israelense a Gaza. Internamente, mesmo com a saída iminente de Netanyahu do poder, não há ainda indícios que o novo governo irá cessar as políticas de opressão aos palestinos e de usurpação de suas terras.

Palestina
Palestina: Uma Pátria Negada, Centro Cultural do Iraque, Londres,1979 \ Arte: Gecko e Tekla Alexiev

Finalizando 

Me afastar de Deus e, como consequência, de um convívio mais próximo com a comunidade judaica, contribuiu para que eu não incorporasse o sentimento de vítima a que os judeus frequentemente recorrem para justificar as ações de Israel, por mais desumanas que estas possam ser. O povo oprimido pelas perseguições centenárias se tornou opressor, mas precisa aliviar sua consciência. 

Com décadas de atraso, gostaria de poder dizer ao irmão palestino que conheci em Londres nos anos 70, que o sofrimento do povo dele também me faz sofrer. Que germinou e cresceu a pequena semente que ele plantou, possibilitando que agora eu possa ser mais uma voz a denunciar os crimes de Israel, através dos artigos que escrevo.  

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

 

Judeus na Palestina: de Napoleão à Nakba

Por Ruben Rosenthal

Nas manifestações do Dia da Nakba, os palestinos brandem as chaves das casas que foram obrigados a deixar, e para as quais ainda têm a esperança de voltar um dia.  expulsão de palestinos

Palestinos expulsos de suas casas \ Foto: domínio público

A limpeza étnica de palestinos promovida pelos judeus começou efetivamente no início do século 20, com a implantação dos primeiros assentamentos judaicos em terras da Palestina; ocorreu de forma massiva em 1948; e prossegue desde então.

A geopolítica internacional continua a favorecer Israel. Até quando as potências Ocidentais continuarão a se omitir em relação à ocupação de terras palestinas e à violência desmedida contra a população? A aprovação da Lei dos Estado-Nação em 2018 reforçou as críticas, tanto internamente, como vindas de judeus da diáspora, de que Israel se tornou um regime de apartheid.

A matéria que se segue apresenta extratos do artigo “Uma breve história do conflito Israel-palestinos”, publicado pelo jornal britânico The Independent. Inclui também alguns trechos de matéria publicada pela BBC News. Os subtítulos e os textos entre parênteses foram acrescentados por este autor.

Um enclave europeu no Oriente Médio 

A ideia do estabelecimento de uma pátria judaica na Palestina remonta a 1799, vinda de Napoleão Bonaparte, após o comandante francês promover cerco a Acre (Akka, em árabe), como parte  de sua campanha contra o Império Otomano.

Napoleão acabou sendo derrotado nessa conquista, mas a tentativa de estabelecer uma fortaleza europeia no Oriente Médio foi revivida 41 anos depois pelos britânicos. O secretário de Relações Exteriores, Lord Palmerston, escreveu a seu embaixador em Istambul, instando-o a pressionar o sultão otomano para abrir a Palestina aos imigrantes judeus, como meio de conter a influência do governador egípcio Mohammed Ali. Naquela época, havia apenas cerca de 3.000 judeus vivendo na Palestina.

Alguns benfeitores ricos, como o aristocrata francês Barão Edmond de Rothschild, começaram a patrocinar a ida de judeus da Europa para a Palestina. Na ocasião, os maiores contingentes vieram da Europa Oriental. Foram estabelecidos assentamentos, o mais notável sendo Rishon Le Zion, fundado em 1882.

Surge o Sionismo

O escritor austríaco Nathan Birnbaum cunhou o termo “sionismo” em 1885. Uma década depois, o jornalista austro-húngaro Theodor Herzl publicou o livro “O Estado Judeu”, pregando o estabelecimento de uma entidade judaica.

Dois rabinos foram então enviados à Palestina pelo amigo de Herzl, Max Nordau, para investigar a viabilidade da ideia, mas relataram: “A noiva é linda, mas é casada com outro homem”.

No entanto, Birnbaum, Herzl e Nordau não ficaram demovidos de seus objetivos, e em 1897 organizaram o Primeiro Congresso Sionista, em Basel, Suíça. Na ocasião puderam discutir planos de fazer lobby junto às potências europeias, para a concretização do sonho de uma nação judaica independente.

Em 1907, a Grã-Bretanha estava considerando a necessidade de estabelecer um “estado-tampão” no Oriente Médio, para reforçar seu domínio.

Começa a limpeza étnica

O líder sionista britânico Chaim Weizmann chegaria a Jerusalém nessa época, para formar uma empresa voltada para a aquisição de terras perto de Jaffa. Em três anos, cerca de 10.000 acres de terra foram adquiridos na região de Marj Bin Amer, no norte da Palestina.

Cerca de 60.000 agricultores locais foram forçados a sair de suas terras para acomodar judeus que chegavam da Europa e do Iêmen. Foi estabelecida a milícia Hashomer para proteger o número crescente de assentamentos de judeus.

Fim do Império Otomano: Declaração Balfour e o futuro da Palestina  

Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a Grã-Bretanha, desconfiada dos maometanos, intensificou seu interesse em desenvolver uma presença aliada na Palestina, também como forma de fortalecer o domínio sobre o Canal de Suez.

Em janeiro de 1915, o político do Partido Liberal, Herbert Samuel, esboçou em segredo o memorando “O Futuro da Palestina”. Samuel defendeu a anexação da Palestina e a gradativa formação de um Estado Judeu autônomo, sob a proteção do Império Britânico.

No ano seguinte foram demarcadas as regiões que ficariam sob as esferas de influência britânica e francesa, no caso de um colapso do domínio otomano.

Em novembro de 1917, em carta do secretário de relações exteriores britânico, Arthur Balfour, ao líder da comunidade judaica britânica, Barão Walter Rothschild, foi declarado formalmente o  apoio ao estabelecimento de um “lar nacional para o povo judeu” na Palestina.

Com a  Declaração Balfour, o governo britânico assumiu que era proprietário das terras e que tinha o direito de doá-las, algo bastante questionável. Em 11 de dezembro de 1917, o general Edmund Allenby capturou a cidade sagrada de Jerusalém.

Com o fim da Primeira Grande Guerra, o presidente dos EUA, Woodrow Wilson, encomendou um relatório sobre as regiões não turcas do derrotado Império Otomano. Naquela ocasião, quase 90 por cento dos não-judeus da população da Palestina se manifestaram “enfaticamente” contra o projeto sionista.

Os autores do relatório alertaram sobre a intensidade da rejeição, e argumentaram que a imigração judaica deveria ser limitada, no interesse da paz. No entanto, as conclusões foram suprimidas até 1922.

Na Conferência de Paz de Paris de 1919, o tenente-coronel britânico Thomas Edward Lawrence – mitificado como Lawrence da Arábia – mediou a assinatura de um acordo entre Weizmann, líder da delegação sionista, e seu homólogo árabe, Príncipe Faisal bin Hussein. Ficou acordado, em princípio, a fundação de uma pátria judaica na Palestina e de uma nação árabe independente no Oriente Médio. 

O Mandato Britânico na Palestina

Em 1922, a Liga das Nações (precursora da ONU) reconheceu o Mandato Britânico para governar a Palestina, sob a jurisdição de Herbert Samuel, como alto comissário. Foram promulgadas dezenas de iniciativas legais para estabelecer uma presença judaica, incluindo o reconhecimento do hebraico como língua oficial e a permissão de um exército judeu.

Conforme a década avançava, protestos em massa começaram a eclodir em oposição à imigração judaica. O movimento palestino tentava em vão contra-atacar e resistir ao que seus membros consideravam uma usurpação apoiada pelo poder militar e diplomático da Grã-Bretanha imperial.

Quase 250 judeus e árabes foram mortos em agosto de 1929 no Muro das Lamentações, em uma tragédia que ficou conhecida como Revolta de Buraq (ou os Massacres de 1929). Com a intenção de dissuadir as agitações, três muçulmanos foram condenados à morte por Sir John Chancellor, que sucedera a Herbert Samuel no alto comissariado.

Aumento da imigração judaica

Os protestos continuaram à medida que mais imigrantes judeus chegavam. O influxo acelerou de 4.000, em 1931 para 62.000, em 1935. Neste mesmo ano, o líder revolucionário muçulmano Sheikh Izz ad-Din al-Qassam foi morto a tiros por soldados britânicos nas colinas acima de Jenin.

Em 1936, eclodiu uma greve geral que, surpreendentemente, durou seis meses. Em represália, casas de muçulmanos foram demolidas.

A Segunda Guerra Mundial e o Holocausto

Em 1939 eclodiu a segunda guerra mundial, que opôs tropas aliadas e as do eixo – Alemanha, Itália e Japão. O Terceiro Reich foi depois considerado responsável pela execução de seis milhões de judeus em campos de concentração.

Em 1942, ano seguinte à entrada dos EUA no conflito, as relações americano-sionistas seriam cimentadas com uma conferência em Nova York.

Após as vitórias dos Aliados na Europa e no Pacífico em 1945, as potências mundiais voltaram sua atenção para o fim da violência na Palestina. hotel King David

Hotel King David após atentado terrorista do Irgun, Jerusalém, 1946 \ Foto: domínio público

O terrorismo judaico

Uma força paramilitar sionista armada, conhecida como Irgun (criada em 1931), estava atacando árabes (e britânicos, inclusive civis) na Palestina. O Irgun foi responsável pelo bombardeio do Hotel King David, em Jerusalém, em  julho de 1946, no qual morreram 91 pessoas de várias nacionalidades. No local funcionavam os escritórios centrais das autoridades britânicas.

(O atentado foi organizado por Menahen Begin, que viria a ser primeiro-ministro do Estado de Israel em 1977, como líder do Partido Likud. Trata-se do mesmo partido de Benjamin Netanyahu, atual primeiro-ministro.)

O Irgun esteve também envolvido, em abril de 1948, com o Massacre de Deir Yassin, com 107 mortes, realizado em colaboração com outra organização terrorista, conhecida como a Gangue Stern. No mesmo ano, Stern assassinaria o Conde Bernadotte, diplomata sueco enviado pelas Nações Unidas para mediar a disputa.

A criação do Estado de Israel e a Nakba

Uma proposta para o território em disputa  surgiu em 1947, quando a Assembleia Geral da ONU apresentou a Resolução 181, que propunha criar dois estados na Palestina, um abrigando judeus, e o outro, os palestinos árabes. Combate entre  A Legião Árabe e Haganah

Soldados da Legião Árabe atiram contra os combatentes judeus da Haganah, a força de autodefesa da Agência Judaica, março de 1948

A resolução foi adotada após uma votação, supostamente como resultado de pressão diplomática dos Estados Unidos. Entretanto, os palestinos rejeitaram a Proposta de Partilha votada na ONU. A argumentação foi de que, à época, os residentes judeus não possuíam mais do que 5,5 por cento das terras e, portanto, não tinham o direito de ocupar 56 por cento da Palestina. Irrompeu a guerra civil.

Com o fim do mandato britânico, a fundação do Estado de Israel foi declarada unilateralmente por David Ben-Gurion, em 14 de maio de 1948. O reconhecimento dos EUA e da então União Soviética foi imediato, mas instigou a eclosão de uma ampla guerra árabe-Israelense, vencida por Israel.

Quando a guerra terminou com o cessar fogo no ano seguinte, Israel havia expandido sua presença militar em partes do território previsto para constituir o Estado Palestino, pelo plano original da ONU. Jerusalém ficou dividida entre os israelenses e a Jordânia, que (durante os conflitos) ocupara as terras a oeste do Rio Jordão, que formaram a chamada Cisjordânia.

nakba
Nakba: direito de retorno, 2015 \ Arte: Ashraf Ghrayeb, Concurso Badil de Posters

Cerca de 700.000 civis palestinos precisaram fugir da região dos combates (com medo de serem massacrados ou foram expulsos de suas casas pelos judeus), buscando refúgio na Jordânia, Líbano, Síria, Cisjordânia e em Gaza. Muitas das vezes não conseguiram cidadania nestes países, onde permaneceram como refugiados.

O deslocamento do povo palestino (forçado a sair de suas vilas e cidades) ainda é lembrado todos os anos no “Dia da Nakba”, nome em árabe para “catástrofe”. Nas manifestações do Dia da Nakba, os palestinos brandem as chaves das casas que foram obrigados a deixar, e para as quais ainda têm a esperança de voltar um dia.

Notas adicionais: O artigo do The Independent menciona também os massacres ocorridos, após a Nakba: em 1956, nas vilas de Qalqilya, Kafr Qasim, Khan Yunis, e em 1966, em as-Samu. (Em relação a as-Samu, Israel foi censurado “por violar a Carta das Nações Unidas e o Acordo Geral de Armistício”, segundo a Resolução 228 do Conselho de Segurança da ONU.)

O autor é professor aposentado da UENF, e responsável pelo blogue Chacolhando.

Aos Palestinos restou apenas uma opção: ficar e lutar contra a limpeza étnica, por Ruben Rosenthal

O plano brutal de Trump fez um favor aos palestinos. Terminou de vez com décadas de fantasia da solução de “dois-estados”. É o momento de judeus e árabes que prezam a democracia e a igualdade, trabalharem juntos contra este plano criminoso.

proetstos de paelestinos contra plano trump
Palestinos protestam contra o plano Trump, em frente a soldados israelenses na Cisjordânia   / Foto Reuters  

O presente texto é uma tradução livre do artigo de opinião de David Hearst1, “Palestinians have only one option left: stay and fight”, publicado em janeiro no Middle East Eye. Hearst considera que uma nova fase de luta deve começar agora, por direitos iguais para todos, em um “estado único” que inclua a totalidade da Palestina histórica.

A demografia é um elefante branco que se coloca há anos no caminho do plano messiânico2 do primeiro ministro Benjamin Netanyahu, de estabelecer o Estado de Israel se estendendo do mar Mediterrâneo ao Rio Jordão, pois naquele espaço habitam mais palestinos que judeus.

De acordo com dados de 2016 fornecidos pelo Escritório Central Palestino de Estatística,   havia então 6,5 milhões de muçulmanos e 6,44 milhões de judeus, entre o Jordão e o Mediterrâneo. Os números foram apresentados ao Parlamento de Israel pelo Coronel Haim Mendez, membro da administração militar na Cisjordânia ocupada, e não incluem os palestinos árabes residentes em Jerusalém Oriental. Cabe ressaltar que o relatório mencionava “muçulmanos”, ou seja, não considerava na contagem, os palestinos cristãos.

Avalia Hearst que a questão demográfica significa que o plano de anexação não pode funcionar. Não adianta a imensa infraestrutura de concreto com que Israel cimentou sua ocupação da Cisjordânia – colônias, muros, estradas e túneis – e seu estado racista de apartheid, que é tão cruel como o que vigorou (1948-1994) na África do Sul.

Ao revelar seu plano “Visão para a Paz”, Trump anunciou que Israel iria assumir o Vale do Jordão, ou seja, 30% da Cisjordânia, onde estão a maioria das colônias judaicas. Mas, para o plano funcionar, será necessária a transferência em massa de populações, equivalente à Nakba (Catástrofe) palestina de 1948, e isto está contemplado na visão de Trump e Netanyahu para a paz.

O ítem oculto. Para Hearst, a questão central está em um parágrafo escondido dentro do documento de 180 páginas. Neste parágrafo está escrito que a troca de terras poderá incluir também “áreas habitadas”. O documento é preciso sobre qual população está se referindo, a do chamado Triângulo Norte de Israel: Kafr Qara, Baqa-al-Gharbiyye, Umm al-Fahm, Qalansawe, Tayibe, Kafr Qasim, Tira, Kafr Bara and Jaljulia.

Na região do Triângulo habitam cerca de 350.000 palestinos, todos cidadãos de Israel, residindo próximo à fronteira noroeste da Cisjordânia. Sua principal cidade, Umm al-Fahm, tem sido uma das principais defensoras da mesquita de Al Aqsa.

Diz o texto: “Poderá se contemplar, havendo acordo das partes, que as fronteiras de Israel sejam redesenhadas de forma a que as Comunidades do Triângulo passem a fazer parte do Estado Palestino”. Seria em troca da cessão do Vale do Jordão ao Estado de Israel. Esta parte oculta do plano é a mais perigosa, considera Hearst, embora conste no rodapé do mapa que nenhuma comunidade, judaica ou palestina, será removida à força. 

Na palavras de Yousef Jabareen, membro árabe do Knesset, o Parlamento de Israel, pela Lista Conjunta: “O programa de Trump e Netahyahu, de anexação e transferência, nos remove de nossos lares e revoga nossa cidadania. Trata-se de um perigo existencial para todas as minorias árabes”.

Limpeza étnica oficial. Por anos, a idéia de transferência de palestinos para fora de Israel foi levantada por líderes israelenses do centro e da direita, como Ehud Barak and Ariel Sharon. Mas foi o ex-ministro da defesa, Avigdor Lieberman, quem primeiro adotou de forma consistente, a causa da expulsão de Palestinos.

Ele defendeu a remoção da cidadania israelense dos palestinos do Triângulo, e forçar outros 20% da população que não são judeus, a fazer um “juramento de lealdade a Israel como um Estado Judaico Sionista”, ou serem expulsos para um (ainda inexistente) Estado Palestino.

Há dois anos, Netanyahu propôs a Trump que Israel deveria se livrar do problema representado pelo Triângulo. Agora, os planos de limpeza étnica foram selados em um documento oficial da Casa Branca, que chancelou as novas fronteiras de Israel. O mapa publicado pelo Middle East Eye mostra a extensão da tragédia humana que resultará da aplicação do plano. Em artigo anterior do blogue Chacoalhando, a fragmentação do território palestino foi comparada a política dos bantustões do antigo regime de apartheid da África do Sul.

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O novo Estado de Israel na Visão para a Paz, de Trump, anexando o Vale do Jordão. As colônias judaicas  permanecerão como enclaves na parte Palestina  /  Fonte: Middle East Eye

 

 

 

Apoios árabes ao plano de Trump. Chamou atenção, a presença de embaixadores dos Emirados de Bahrein e Oman, quando Trump anunciou o plano na Casa Branca. Arábia Saudita, Egito e a União dos Emirados Árabes aceitaram o plano sem restrições. O Catar também foi favorável, mas acrescentou que o Estado Palestino deveria ser negociado com base nas fronteiras de 1967, e que os Palestinos deveriam ter o “direito de retorno”.

Trump demontrou ter ficado muito satisfeito com a aceitação de seu plano por líderes mundiais. Boris Johnson foi um destes líderes. O primeiro ministro britânico descartou quatro décadas de política externa equitativa, favorável à uma solução justa de “dois-estados”. Seu secretário de relações exteriores, Dominic Raab, emitiu declaração favorável à proposta de Trump: “Esta é claramente uma proposta séria, que exigiu tempo e esforços”. 

Alguns políticos norte-americanos perceberam, no entanto, os riscos que o plano traz. O senador democrata Chris Murphy alertou: “A anexação unilateral do vale do Rio Jordão, com as colônias israelenses lá presentes, é ilegal pela lei internacional e mesmo pela norte-americana, e irá retardar o processo de paz por décadas. Além disto, traz o risco de violência e desestabilização massiva em locais como a Jordânia”.

Hearst considera que ninguém deveria subestimar a natureza histórica da declaração de Trump. “Está morta a idéia da solução de “dois-estados”, ou de que um Estado Palestino viável possa ser criado ao lado de um Estado de maioria judaica. E estava morta bem antes dos acordos de Oslo.  

Antecedendo a Oslo, o Rei Hussein da Jordânia, que atuava em favor da pacificação da região, fora advertido claramente pelo diplomata soviético Yevgeny Primakov, e por James Baker, então secretário de estado norte-americano, que um Estado Palestino independente jamais poderia existir. 

Para Hearst, a mensagem que o mapa deve passar aos palestinos de todas as facções é cristalina: “Esqueçam suas divisões e o que aconteceu em Gaza entre Fatah e Hamas, em 1997. Esqueçam todos os ressentimentos, e se unam contra a ameaça existencial”. 

Os palestinos estão realmente sós. Todos os pontos de negociação se foram: Jerusalém, direito de retorno, refugiados para retornar, Colinas de Golan, e agora, o Vale do Jordão. Eles também não têm mais aliados: a Síria está arrasada, e o Iraque, dividido. Os palestinos perderam o apoio da nação árabe mais rica e o da mais populosa, conforme Arábia Saudita e Egito são agora joguetes de Israel.

Os palestinos não têm para onde fugir. A Europa está fechada para qualquer futura migração em massa. Resta apenas uma opção: ficar e lutar. Unidos, eles podem desfazer os planos supremacistas de Israel de promover limpeza étnica. Eles conseguiram isto antes, e podem conseguir novamente, avalia Hearst.

Uma nova luta. Os palestinos precisam agora encarar a nova realidade. O reconhecimento de Israel pela Organização para a Libertação da Palestina levou a um beco sem saída, que para alguns já era esperado. Os Estados Unidos, a lei internacional, as resoluções da ONU, nunca irão resgatá-los. Neste sentido, o plano de Trump fez um favor aos palestinos, terminando com décadas de fantasias”, sentencia Hearst.

O que deve se iniciar agora é uma nova fase de lutas por direitos iguais, em um Estado que englobe toda a terra da “Palestina histórica”. Isto deverá envolver uma grande luta. Ninguém deve subestimar o que aconteceria se o povo palestino se sublevar novamente. Mas ninguém deve também ter qualquer dúvida das conseqüências da resignação, alerta o jornalista.

E conclui: “É a primeira vez, desde 1948, que todo o povo Palestino pode se juntar para fazer isto. Ele precisa aproveitar a oportunidade, ou pode terminar como uma nota de pé de página, em um livro de história. É também o momento de judeus e árabes, que prezam a democracia e a igualdade, de se levantarem e trabalharem juntos contra este plano perigoso”.

Notas do autor:

1. David Hearst é editor-chefe do Middle East Eye, e foi redator-chefe para assuntos internacionais do britânico The Guardian.

2. Benjamin Netanyahu tem uma visão messiânica de si mesmo, segundo Eyal Arad, estrategista político que atuou como conselheiro de Netanyahu. Para Arad, o primeiro-ministro se considera como o salvador do povo judeu de um novo Holocausto.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

 

 

Acuado, Netanyahu ameaça o Tribunal Penal Internacional com sanções

As ameaças de Benjamin Netanyahu se seguem à decisão do TPI de abrir investigação sobre crimes de guerra cometidos por Israel contra os Palestinos.

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Fatou Bensouda, promotora do TPI  /  Foto: Coalition for International Criminal Court

Em dezembro de 2019, a promotora do Tribunal, Fatou Bensouda1, anunciou a abertura de uma investigação sobre o cometimento de crimes de guerra contra palestinos na Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental, segundo relato no G1.

Uma investigação completa poderá levar à acusações contra indivíduos, já que Estados  não podem ser processados por aquela Corte. Assim, Netanyahu pode vir a ser indiciado como responsável pelas centenas de mortes de Palestinos nos conflitos com tropas israelenses.

Segundo relato do jornalista Noa Landau no periódico israelense Haaretz, o primeiro-ministro israelense declarou recentemente em entrevista à rede evangélica de TV, Trinity Broadcast Network, que a decisão do TPI representava um “amplo ataque frontal” na democracia e no direito do povo Judeu de viver em Israel.

A expectativa de Netanyahu era de aproveitar a realização, em Jerusalém, do Quinto Forum Mundial do Holocausto, em 23 de janeiro,  para angariar apoio de líderes mundiais na aplicação de sanções  contra o TPI, como forma de barrar as investigações.

A Palestina aderiu formalmente ao TPI em 2015, sob protestos de Netanyahu. O primeiro-ministro percebeu imediatamente que a medida abriria caminho para que, no futuro, autoridades israelenses pudessem ser acusadas de crimes de guerra e usurpação de territórios.

A promotora Fatou Bensouda já recebera, anteriormente, documento do presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, autorizando uma investigação preliminar de crimes  cometidos por Israel contra os Palestinos a partir de junho de 2014.

Embora Israel não seja membro do TPI, isto não impede que Netanyahu ou outras autoridades israelenses possam ser julgadas pelo Tribunal. Em 2018, Riyad al-Maliki,  ministro palestino das Relações Exteriores, solicitou oficialmente ao TPI, a abertura de investigação sobre crimes de guerra e de apartheid cometidos contra os palestinos.

Com a introdução do Estado-Nação Judaico em julho de 2018 (GGN), proliferaram as acusações de que Israel se tornara oficialmente um Estado racista, em que não-judeus passaram a ser cidadãos de segunda classe.

Também pode ser considerado como crime contra a humanidade, a implantação e expansão de assentamentos judaicos na Cisjordânia, reduzindo e separando as terras ocupadas pelos palestinos, recriando a execrável política dos bantustões, conduzida de 1940 a 1994 pelo regime de apartheid da África do Sul, e contra o qual Mandela liderou a resistência.

Os mapas da figura mostram a evolução temporal das terras ocupadas por judeus, partindo de umas poucas colônias ainda durante o mandato britânico, o mapa previsto pela ONU para a partilha de 1947 (Jerusalém em branco), o da independência do Estado de Israel, já com as terras conquistadas na guerra de 1948, e o mapa no ano 2000 , que mostra as terras que restavam na ocasião aos palestinos, como resultado da expansão dos assentamentos judaicos na Cisjordânia ocupada, que ainda prossegue nos dias atuais.

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Evolução da demografia na Palestina  / Fonte InfoPal 

Os relatos sobre os conflitos na fronteira entre Gaza e Israel, ocorridos em 2018, também foram analisados pela Promotora, para chegar a decisão recente de abrir a investigação sobre o cometimento de crimes de guerra. Estes conflitos decorreram em grande parte do bloqueio físico e econômico à Faixa de Gaza, como forma de deter o Hamas e impor a paz do vencedor.

O governo de Israel, no entanto, alega que o TPI só tem jurisdição quando petições são encaminhadas por Estados constituídos, o que não ocorre no caso dos palestinos, que não possuem seu Estado próprio.

Durante o evento do Holocausto, Netanyahu espera obter de líderes mundiais, como Macron, Putin e outros, apoio a sua tese de que o TPI não tem jurisdição sobre os territórios palestinos. No momento, o Tribunal está debatendo se possui ou não jurisdição para investigar crimes de guerra cometidos na Cisjordânia e em Gaza.

Notas do autor:

1. Fatou Bensouda, natural de Gâmbia, ocupará o cargo de promotora do TPI até junho de 2021.

2. A distinção de crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio e limpeza étnica está detalhada em documento da ONU.  

3. Em artigo anterior no blogue Chacoalhando foram analisadas as denúncias de  genocídio estar sendo atualmente cometido contra os povos indígenas no Brasil. Jair Bolsonaro e algumas autoridades brasileiras são fortes candidatos a seguirem os passos de Netanyahu, e terem contra si acusações feitas pelo Tribunal Penal Internacional.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacolhando.

Angela Davis: o internacionalismo negro com foco na Palestina, por Ruben Rosenthal

Sim, eu sabia que era o dinheiro que eu ganhava como poetisa que pagava  pelas bombas, e pelos  aviões e tanques que eles usavam para massacrar sua família. Mas eu não sou uma má pessoa……. /  (June Jordan)

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June Jordan, poetisa e ativista (1936-2002)   /  Foto: Sara Miles

O atual artigo é o terceiro da série com base na tradução1 da entrevista de Angela Davis “Theories of Freedom are Always Tentative” (As Teorias de Liberdade são Sempre Incertas), de 2017, publicada originalmente em Futures of Black Radicalism2Os artigos anteriores focaram na Tradição Radical Negra e no movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam).

Os entrevistadores, Thereza Johnson e Alex Lubin, indagaram Angela sobre seu trabalho acadêmico tratando da questão da Palestina, e da relação com o movimento negro pela liberdade. “Quando é que essa relação se tornou óbvia para você, e que circunstâncias, ou conjunturas, tornaram possível essa percepção?

AD: “Na verdade, as minhas mais recentes palestras e entrevistas refletem um entendimento, cada vez mais popular, da necessidade de uma estrutura internacionalista, na qual o trabalho em curso visando desmantelar as estruturas do racismo, do heteropatriarcado3, e a injustiça econômica nos Estados Unidos, pode tornar-se mais duradouro e significativo”.

Angela acrescentou que a Palestina sempre ocupou um lugar essencial em sua própria história política, precisamente por causa das semelhanças entre Israel e os Estados Unidos. Estiveram presentes, nos dois casos, “o colonialismo fundador e seus processos de limpeza étnica em relação aos povos indígenas, os sistemas de segregação, o uso dos sistemas legais para ordenar uma repressão sistemática, dentre outras”.

A entrevistada prossegue com sua análise: “costumo salientar que a minha consciência sobre a situação da Palestina remonta aos anos em que frequentava a Universidade de Brandeis (Massachusetts, EUA), que foi fundada4 no mesmo ano que o Estado de Israel. Além disso, durante o período em que estive encarcerada, recebi o apoio de prisioneiros políticos palestinos, bem como de advogados israelenses que defendiam palestinos”.

“Em 1973, quando participei no Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, em Berlim5, tive oportunidade de conhecer Yasser Arafat, que sempre reconheceu a proximidade da luta palestina e da luta pela liberdade negra nos Estados Unidos. Assim como Che e Fidel (em Cuba), Patrice Lumumba (no Congo) e Amílcar Cabral (Guiné-Bissau e Cabo Verde), Arafat era uma figura reverenciada dentro do movimento negro de libertação. Esse foi um tempo em que o internacionalismo comunista na África, Oriente Médio, Europa, Ásia, Austrália, América do Sul e Caribe era uma força poderosa”.

“Se eu falasse da minha própria história, ela teria quase certamente chegado a um desfecho diferente, não houvesse esse internacionalismo desempenhado um papel tão crucial. Os encontros entre as lutas de libertação negra nos Estados Unidos e os movimentos contra a ocupação israelense da Palestina têm uma longa história”.

“Em Geographies of Liberations: The Making of an Afro-Arab Political Imaginary’, de Alex Lubin6 (livro de 2014), tenta-se mapear aspectos importantes dessa história. Muitas vezes, no entanto, não é explicitamente no âmbito político que se descobrem os momentos de contato. Conforme enfatizava Cedric Robinson7, é no âmbito cultural que melhor se identificam estas interfaces”. 

“Robin Kelley8, em seu livro ‘Freedom Dreams: The Making of the Black Radical Imagination’, acentua o campo do surrealismo como uma zona de contato especialmente produtiva”.

“No final do século XX, foi a poetisa feminista June Jordan quem colocou a questão da ocupação da Palestina no centro do debate. Apesar dos ataques sionistas que sofreu, e da perda temporária de uma amizade muito importante com Adrienne Rich9 (que mais tarde também se tornou crítica da ocupação), June tornou-se uma poderosa testemunha para a (causa) Palestina. Na sua poesia, sentiu-se impelida a incorporar a conjuntura da libertação dos negros e da Palestina”.

june jordan 2

June Jordan escreveu: “I was born a Black woman / and now / I am become a Palestinian / against the relentless laughter of evil / there is less and less living room / and where are my loved ones? / It is time to make our way home”.

Em uma tradução livre: “Nasci mulher negra / e agora / Eu me tornei uma Palestina / contra o incessante riso do mal / existe menos e menos espaço de vida / e onde estão aqueles que amo? / É hora de irmos para casa”

AD: “Numa época em que as feministas de cor tentavam forjar estratégias daquilo a que hoje denominamos “interseccionalidade”10, June, que representa o melhor da Tradição Radical Negra, ensinou-nos a capacidade que têm as afinidades políticas, para além das fronteiras nacionais, culturais e supostamente raciais, de nos ajudar a imaginar futuros mais habitáveis. Sinto falta dela, e lamento muito que não tenha vivido o suficiente para conhecer os ativistas do Black Lives Matter empunhando bandeiras de resistência à ocupação da Palestina por todo este continente”.

Angela Davis continua seu relato: “como já fiz notar em diversas ocasiões, quando em 2011 me juntei a uma delegação de ativistas indígenas e feministas acadêmicas de cor, na Cisjordânia e Jerusalém Oriental, fiquei com a impressão de que compreendi perfeitamente a ocupação. Embora todas nós já estivéssemos ligadas, de uma forma ou de outra, ao movimento de solidariedade, ficamos todas profundamente chocadas com o pouco que realmente sabíamos sobre a violência quotidiana da ocupação”.

“Ao final da nossa visita, decidimos coletivamente dedicar nossas energias a participar no BDS (movimento Boicote, Desinvestimento, Sanções), e ajudar a elevar os níveis de consciência dos nossos vários grupos de origem, sobre o papel dos EUA ao financiar com mais de 8 milhões de dólares a manutenção da ocupação militar (da Palestina por Israel). Portanto, continuo profundamente ligada, neste projeto, a Chandra Mohanty, Beverly Guy-Sheftall, Barbara Ransby, Gina Dent e outras integrantes da delegação”.

“Nos cinco anos que se seguiram à nossa viagem, muitas outras delegações de acadêmicos e ativistas visitaram a Palestina, e ajudaram a acelerar, ampliar e intensificar o movimento de solidariedade com a Palestina. Tal como os arquitetos do movimento BDS modelaram o seu trabalho na campanha anti apartheid contra a África do Sul11, os ativistas norte-americanos tentaram fazer notar que há lições profundas a se tirar das políticas de boicote anteriores”.

“Muitas organizações e movimentos dentro dos EUA consideraram como a incorporação de estratégias anti apartheid nas suas agendas, iria transformar radicalmente o seu próprio trabalho. A campanha não só ajudou a fortalecer esforços internacionais para derrubar o Estado do apartheid, como também fez reviver e enriquecer muitos movimentos internos contra o racismo, a misoginia e a injustiça econômica”.

“Do mesmo modo, a solidariedade com a Palestina tem o potencial de transformar e ampliar a consciência política dos nossos movimentos contemporâneos. Ativistas do BLM, e outras pessoas associadas a este importante momento histórico, de surgimento de uma consciência coletiva, que reclama o reconhecimento das arraigadas estruturas do racismo, podem desempenhar o importante papel de obrigar outras áreas do ativismo pela justiça social a assumir a causa da solidariedade com a Palestina, especificamente o movimento BDS”.  

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Manifestação na Palestina  de ativistas do Black Dream Defenders, grupo da Flórida  /  Foto: Christopher Hazou

“As alianças nos campus das Universidades, reunindo organizações estudantis negras, Estudantes pela Justiça na Palestina (Students for Justice in Palestine) e membros da Voz Judaica pela Paz (Jewish Voice for Peace), nos fazem lembrar da profunda urgência em unir os esforços anti racistas aos fortes desafios à islamofobia e ao antissemitismo, além da resistência global às políticas e práticas de apartheid pelo Estado de Israel”.

“Teórica e ideologicamente, a Palestina também nos ajudou a ampliar a nossa visão abolicionista, que caracterizamos nesta época como a ‘abolição do encarceramento prisional e do policiamento’. A experiência da Palestina nos leva a revisitar conceitos como ‘nação prisão’ ou ‘Estado carcerário’, para que possamos compreender seriamente os encarceramentos cotidianos da ocupação, e a presença constante do policiamento, não apenas pelas forças israelenses, mas também, pela Autoridade Palestina”.

“Isto, por sua vez, estimulou outras direções de pesquisa sobre os usos do encarceramento, e do seu papel, como por exemplo, em perpetrar noções de um binarismo permanente, no em relação ao gênero, e em naturalizar a segregação baseada em capacidades físicas, mentais ou intelectuais”.

 Notas do autor:

 Tradução de Andréa Peniche e Paula Sequeiros, Rede Anti Capitalista.

 2 Futures of Black Radicalism, 2017, Londres: Versobooks, ed. Thereza Johnson e Alex Lubin.

3 O heteropatriarcado é um sistema sociopolítico em que a  heterossexualidade cisgênera e o gênero masculino têm supremacia sobre os demais gêneros, e sobre as outras orientações sexuais.

4 A Universidade de Brandeis é uma instituição privada de ensino e pesquisa em Massachusetts, fundada em 1948 com financiamento da comunidade judaica. Trata-se da única universidade judaica secular na Diáspora 

5  Berlim Oriental, então pertencente à República Democrática Alemã, de regime comunista.

6 O autor, Alex Lubin, é professor da Universidade do Novo México, e um dos entrevistadores de Angela Davis.

7 Ver comentários sobre o escritor e professor Cedric Robinson no primeiro artigo da série atual, em que foi abordada a Tradição Radical Negra.

8 No prefácio do livro Freedom Dreams, de 2002, Angela Davis escreveu: “Um livro poderoso. Robin D. G. Kelley produz histórias de radicalismo negro e visões do futuro que desafiam o convencional e a expectativa”.

A influente e premiada poeta e ensaísta norte-americana Adrienne Rich explorou temas como o papel da mulher na sociedade, sua opressão, o racismo e a Guerra do Vietnam.

10  Carla Akotirene,  pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em seu livro O que é Interseccionalidade? , explica a ferramenta metodológica preparada pelas feministas negras. O termo foi cunhado pela jurista estadunidense, a professora de Teoria Crítica da Raça, Kimberlé Crenshaw, no âmbito das leis anti discriminação. A ferramenta analítica é usada para pensar a inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cis-heteropatriarcado, e as articulações decorrentes, que colocam as mulheres negras, mais expostas e vulneráveis aos trânsitos destas estruturas.

A Teoria Crítica da Raça (TCR) é um campo científico desenvolvido por juristas estadunidenses, a partir dos Movimentos pelos Direitos Civis, buscando a compreensão da relação entre raça e direito, para o melhor enfrentamento da realidade do racismo.

11 Embora a campanha contra o sistema segregacionista do apartheid tenha se iniciado no Reino Unido, nos anos 60, foi nos Estados Unidos, nos anos 80, que o movimento assumiu tal proporção, que levou o congresso norte-americano a aprovar legislação impondo severas sanções econômicas contra a África do Sul, resultando no desmoronamento do sistema de apartheid.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

 

Diretor do Museu Judaico de Berlim forçado a renunciar por apoiar boicote a Israel

Peter Schäfer, diretor do museu, foi pressionado a renunciar por ter apoiado pelo Twitter uma petição de intelectuais judeus, favorável ao movimento BDS, de boicote econômico e cultural a Israel.

máscaras de ferro museu Berlin 1

Rostos enferrujados trazem sensação de dor ao visitante do museu

O Museu Judaico de Berlim já vinha sofrendo pressões da parte do primeiro ministro israelense, Benjamin Netanyahu, por ter realizado uma exposição sobre Jerusalém, que apresentava “um ponto de vista muçulmano-palestino”, segundo relato de Noa Landau, publicado no Haaretz.  Netanyahu já teria cobrado anteriormente de Angela Merkel o fim das subvenções ao museu, bem como ao Festival Internacional de Cinema de Berlim e a algumas organizações cristãs, por supostas  “atividades anti-Israel, como apoiar o terrorismo palestino, defender o boicote ao Estado de Israel, e acusar as forças de defesa israelenses de cometerem crimes de guerra”

O abaixo-assinado que resultou na renúncia de Schäfer, foi assinado por 240 intelectuais judeus, incluindo Avraham Burg, pacifista, ex-membro do parlamento de Israel, e Eva Illouz, socióloga conceituada e professora titular de sociologia da Universidade Hebraica de Jerusalém. A petição pede ao governo alemão que não implemente a moção aprovada no parlamento alemão que define o movimento BDS, de boicote econômico e cultural, como sendo antissemita. A moção foi aprovada com amplo apoio de vários partidos, e declara ainda que colocar adesivos de “Não Compre” em produtos israelenses evoca o slogan nazista “Não Compre de Judeus”.

A petição assinada pelos intelectuais judeus defende a liberdade de opinião, e que “boicotes são uma forma legítima de resistência”. O texto argumenta ainda em favor da continuação do apoio financeiro a organizações israelenses e palestinas que “contestam pacificamente a ocupação israelense, expondo graves violações das leis internacionais, e fortalecendo a sociedade civil”.

Cada vez mais, fica evidenciado que é crescente a resistência no meio judaico às políticas de Netanyahu, que vem impedindo o andamento de negociações que levem à obtenção de um acordo de paz no Oriente Médio, em que sejam reparadas as injustiças históricas cometidas contra o povo palestino pelo sionismo, desde a fundação do Estado de Israel. Resta ver o alcance da repercussão do afastamento de Peter Schäfer. 

foto de peter schaffer

Peter Schäfer é um renomado estudioso de assuntos judaicos, doutor honoris causa pela Universidade de Utrecht e de Tel Aviv. Ocupou o cargo de diretor do programa de estudos judaicos em Princeton, tendo recebido diversos prêmios e honrarias. Em 2006 recebeu o “Mellon Award”, o principal reconhecimento para estudiosos de humanidades nos Estados Unidos, por seu trabalho acadêmico e iniciativas de revitalizar a tradição dos estudos judaicos na Alemanha. Vários outros prêmios de prestígio foram obtidos na Alemanha.

O Museu Judaico de Berlim

O primeiro Museu Judaico data de 24 de janeiro de 1933, poucos dias antes do Partido Nazista chegar ao poder. O museu veio a ser fechado pela Gestapo em de 10 de novembro de 1938, durante o que ficou conhecido como a infame Noite dos Cristais, parte do pogrom (ataque ou perseguição, em russo), em que naqueles dias de novembro, os nazistas cometeram violentos atos de vandalismo contra sinagogas e propriedades da comunidade judaica, e que resultaram em dezenas de mortes. O prédio em estilo barroco veio a abrigar o Museu de Berlim, e foi apenas em 1979 que um Departamento Judaico foi estabelecido no museu. No entanto, a maior parte do acervo original havia desaparecido, e parte passara integrar o acervo de instituições judaicas fora da Alemanha. Em 1988 foi anunciada uma competição anônima para um projeto de um novo museu judaico, que funcionaria como uma extensão do prédio barroco.  

foto museu de berlim

O projeto de arquitetura da extensão do Museu Judaico de Berlim, de Daniel Libenskind, foi considerado o único no processo seletivo que “implementou um projeto formal e radical, como uma ferramenta conceitualmente expressiva, para representar o estilo de vida judaico antes, durante e após o Holocausto”. O projeto final, um edifício em forma de zigue-zague, nasceu de uma deformação da Estrela de David, expandida em torno do terreno, onde ao lado se situa o prédio barroco. A construção é formada por três eixos, com base na experiência dos judeus na Alemanha: o Eixo do Holocausto, o Eixo da emigração e o Eixo da continuidade com a história alemã. Embora a extensão de Libenskind aparente ser uma edificação independente, o acesso é feito, através de uma passagem subterrânea, pelo prédio de estilo barroco que abrigara o museu original e o Museu de Berlim, e que atualmente faz parte do complexo do Museu Judaico.

 

 

 

 

 

 

Netanyahu, Trump e Putin: uma História de Amor

Tradução informal e comentada, do artigo publicado em 8 de abril no Al Jazeera, de autoria do analista sênior, Marwan Bishara. Ruben Rosenthal

Com os resultados finais da eleição para o parlamento de Israel indicando que o partido do atual primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu conseguiu 36 dos 120 assentos, tudo indica que ele será o líder do governo de coalizão da direita. Será seu quinto mandato, caso os problemas de corrupção não o impeçam de assumir. Com ele no poder, pode-se prever que em breve virá a anexação de parte da Cisjordânia. Odiado por muitos, por sua responsabilidade no sofrimento e nas mortes de milhares de palestinos desde que assumiu o governo em 2009, Bibi é reconhecidamente um magistral enxadrista em geopolítica. Marwan Bishara nos explica como atua o polêmico político.

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Podem chamar Netanyahu de trapaceiro e belicista, mas que outro líder pode se gabar de ter conseguido se reunir com Trump e com Putin no prazo tão curto de duas semanas antecedendo eleições gerais. A motivação imediata desta diplomacia foi certamente o ganho eleitoral, mas as implicações estratégicas de sua vitória podem resultar na reconfiguração do Oriente Médio. Breve deverá vir a anexação de partes da Cisjordânia, prometida na campanha eleitoral. E novamente Trump deverá dar seu apoio, e Putin, emprestar seu silêncio. Como isto foi possível?

Netanyahu aproveitou sua ida, em setembro de 2016, à reunião de cúpula anual das Nações Unidas em Nova Iorque, para um primeiro encontro, na Trump Tower, com o então candidato presidencial republicano. Segundo Steve Bannon, então conselheiro de Trump, o novato na política recebeu uma aula do mestre de xadrez da geopolítica mundial, particularmente sobre a importância das relações entre os Estados Unidos e Israel, face às realidades do Oriente Médio.

Netanyahu contribuiu para que Trump pudesse colocar de forma racional seus instintos sobre segurança, imigração, terrorismo, Islã, e mesmo as vantagens de um muro na fronteira (idéia que Trump deve ter aproveitado como sua ‘solução’ para a imigração através da fronteira com o México, N.T.). Mas a grande jogada de Netanyahu foi fazer o foco da conversa convergir para uma fórmula simples: ‘o Irã, e não a Rússia, é o principal inimigo’ de ambos, e que o presidente russo tem uma posição privilegiada na ajuda contra os aiatolás e o Islã radical.  Isto soou como música aos ouvidos de Trump, pois ele já vinha cortejando Putin, para horror de seus detratores em casa e na Europa. Graças a Netanyahu, Trump pôde se municiar de uma doutrina estratégica que envolvia forjar novas alianças e parcerias com lideranças fortes.

A nível pessoal, foi uma aliança tranquila de se estabelecer. Benjamin, Donald e Vladimir realmente pareciam se gostar. Com passados e estilos distintos, eles, no entanto, tem um mesmo perfil. Homens brancos, já de certa idade, adotando estereótipos do macho, nacionalistas1 com um traço de malignidade, os três são personalidades que polarizam. São vistos como enganadores, com um ‘jeitinho’ para agir com impunidade. Não gostam da liberdade de imprensa e de um judiciário independente e ativo.

O principal inimigo em comum do trio é nenhum outro que o ex-presidente americano Barack Obama, e tudo o que ele representava, seja o multiculturalismo, os ideais liberais e uma política externa liberal. Assim que assumiu a presidência, Trump começou a destruir o que Obama construiu no país e no exterior, sem se importar em violar leis e acordos internacionais, saudado por seus dois camaradas e por um número crescente de fãs pelo mundo. Ele deixou o Acordo de Paris e o acordo nuclear com o Irã, além de dar seu apoio incondicional aos mais repressivos regimes no Oriente Médio, dentre outros.  

O trio atraiu e inspirou uma nova cepa de líderes agressivos hiper-nacionalistas1 que veneram o poder, como Mohammed bin Salman, da Arábia Saudita, Abdel Fattah el-Sisi, do Egito, Viktor Orbán2 , da Hungria e Jair Bolsonaro, do Brasil.  Trump e Putin podem ser os líderes do grupo, mas foi Netanyahu,  o entusiástico apoiador desta nova leva de governantes (Haaretz), mostrando sua afinidade com os mesmos, contrariamente ao que se esperaria do líder de uma nação fundada por vítimas de perseguição étnica. 

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Netanyahu e o húngaro Viktor Órban

Os três líderes procuraram substituir o pensamento progressista e o liberalismo pela plutocracia. Mas se o namoro3 dos três foi bem sucedido em gerar uma tendência mundial pelo populismo, por outro lado, não conseguiu produzir relações mais próximas e amigáveis entre os governos russo e norte-americano. Nem Trump nem Netanyahu conseguiram convencer o establishment da política externa americana a abraçar Putin, nem mesmo como forma de conter o Irã. Este país é visto como um ator de nível regional a ser combatido, mas Democratas e Republicanos consideram a Rússia como um perigoso inimigo global.  Isto porque a Rússia de Putin conseguiu retornar ao cenário da geopolítica internacional como um importante participante independente, em geral adversário dos Estados Unidos. Isto se tornou evidente com a intervenção na Ucrânia e na Síria, bem como no envio de tropas para a Venezuela, um desafio direto a Washington no Hemisfério Ocidental.

Esta é a tragédia da política do poder. Embora Trump e Putin pensem de forma semelhante, eles continuarão a competir em um mundo anárquico, mesmo com o risco de guerra. Seus países estão de lados opostos em quase tudo, incluindo guerra cibernética, proliferação nuclear, segurança regional na Europa e Oriente Médio, e, naturalmente, na questão da interferência russa nas eleições americanas. Mas eles concordam sobre Israel, ou pelo menos Putin e Trump concordam, e ambos simpatizam com Netanyahu.

Trump and Putin tiveram uma reunião de cúpula (em Helsinki, julho de 2018, N.T.), que terminou em relativo fracasso4 , além de quatro encontros curtos. Netanyahu teve cinco bem sucedidas reuniões com Trump em dois anos, e treze bem sucedidas reuniões com Putin em quatro anos. O primeiro-ministro persistiu em cultivar relações próximas com Putin, porque a Rússia é a única potência que tem diálogo aberto com cada um dos atores principais no Oriente médio, incluindo o Hamas e o Hezbollah, e mesmo com rivais regionais, como Irã e Arábia Saudita, além de Turquia e Egito.

Netanyahu soube explorar o interesse da Rússia de que Washington voltasse a reconhecer seu status de superpotência e suas áreas de influência, fazendo uso de sua relação especial com Trump, para com isto conseguir concessões de Putin, começando pela Síria. Parecendo rapidamente esquecer do papel de Israel no episódio da derrubada de um avião militar russo com morte de 15 oficiais, Putin concordou em estabelecer um grupo de trabalho com Israel visando a remoção de todas as forças estrangeiras da Síria. O presidente russo também aceitou as constantes violações do espaço aéreo da Síria por Israel e o bombardeamento de alvos iranianos lá.  O Kremlin ainda propôs a Netanyahu que ele mediasse um acordo entre Estados Unidos, Síria e Irã, para a retirada completa de tropas, mas como tal acordo levaria ao fim das sanções contra o Irã, Netanyahu se recusou.

Em algumas ocasiões, a atuação diplomática de Netanyahu se aproximou de um jogo de pôquer, mas que conseguiu obter de Trump o reconhecimento da anexação das Colinas de Golã por Israel, em desrespeito à legislação internacional e à política tradicional do país. Aparentemente, Putin não fez nada e deixou esta questão passar em branco quando se reuniu com Netanyahu.

Se para obter a adesão de Putin um flerte prévio foi necessário, Netanyahu não poderia ter sonhado em melhor parceiro na Casa Branca que Trump. Este abraçou completamente as posições de Israel no Irã, e a ocupação de Jerusalém5 e das Colinas de Golã. Em breve deverá vir a anexação de parte da Cisjordânia, conforme promessa de Netanyahu caso ganhasse as eleições. E novamente Trump deverá dar seu apoio e Putin emprestar seu silêncio. Desta forma o primeiro-ministro de Israel vem conseguindo redefinir as fronteiras e as alianças no Oriente Médio.

Notas do Tradutor

Pequenas modificações foram introduzidas no artigo, sejam explicativas (indicadas por N.T.), ou como forma de tentar agilizar à leitura de um texto longo, incluindo a supressão de algumas partes, sem com isto afetar as opiniões expressas pelo autor. O tradutor apresenta a seguir alguns comentários adicionais, observando-se a correspondência no texto com a numeração sobrescrita. 

  1.  O termo ‘nacionalismo’ pode ter conotações diferentes, dependendo do período e do país. As idéias nacionalistas já estiveram associadas  com teorias racistas no século XX, como na Alemanha (nacional-socialismo), na Itália (fascismo) e no Japão. No artigo, Marwan Bishara se refere a este nacionalismo que, ao exaltar de forma exacerbada os valores da pátria, se afasta do internacionalismo, entendido como uma política de cooperação entre as nações, podendo com isso levar ao xenofobismo.  Após a II Guerra Mundial, o nacionalismo que se manifesta em países do Terceiro Mundo está principalmente relacionado com a luta contra todas as formas neocolonialistas de exploração, embora a exaltação da pátria estava presente no Brasil do ‘ame-o ou deixe-o’, na época da ditadura militar, e reaparece no governo Bolsonaro, por exemplo, quando se exige dos alunos nas escolas públicas e privadas que cantem o hino nacional, ou se afastando da integração regional ao diminuir a prioridade do Mercosul. 
  2. O presidente da Hungria, Viktor Orbán, apoiado entusiasticamente por Netanyahu, é um político da extrema-direita, que defende e representa posições próximas às dos nazistas. Órban se omitiu quanto ao crescimento do antissemitismo no país, e até deu sua contribuição, com as críticas feitas a judeus proeminentes, além das declarações  xenófobas e racistas de seu partido  a refugiados.  
  3. Na tradução foi utilizado o termo ‘namoro’, para definir o relacionamento de Netanyahu com Putin e Trump, em substituição a ‘bromance’, expressão da língua inglesa que une as palavras brother e romance, para expressar  um relacionamento íntimo, não-sexual, entre dois (ou mais) homens.  
  4. Bishara não enumera que objetivos poderiam ter sido alcançados na cimeira de Helsinki para ela haver terminado em ‘relativo fracasso’.  Benjamim Netanyahu saudou as relações de Israel com a Rússia e Estados Unidos, após Trump e Putin declararem no encontro que a segurança do Estado Judaico fora discutida pelos dois presidentes. Do ponto de vista de Israel, as reuniões aparentemente trouxeram bons resultados. Vale lembrar ainda, que foi na cimeira de Helsinki que Trump criticou a comunidade de inteligência norte-americana (CNN), por esta afirmar que a Rússia havia intervindo nas eleição de 2016 que o conduzira à presidência. À esta declaração de Trump apoiando abertamente a Putin, líder de uma nação adversária, seguiu-se intenso bombardeio de críticas da mídia e do Partido Democrata, de Hillary Clinton. Ao final do encontro, ambos os líderes consideraram que a reunião fora ‘bem sucedida’, talvez por ter contribuído para cimentar as relações pessoais entre os dois.
  5. Na questão do expansionismo sionista, o relacionamento pessoal do presidente norte-americano com o líder israelense não deve ter sido decisivo no reconhecimento por Trump, da anexação de Jerusalém por Israel. Tal posicionamento decorreu principalmente das pressões dos evangélicos fundamentalistas (GGN), e do interesse de Trump  nos ganhos eleitorais que poderia obter com o apoio do  lobby evangélico.

 

 

Os Riscos do Lobby Pró-Israel

Poderá ser muito alta para o país, a conta a pagar pelo reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel em troca do apoio de evangélicos conservadores à eleição de Bolsonaro

 

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Muro das Lamentações e Domo da Mesquita de Omar

 

A atuação do movimento sionista levou à partilha decidida pela ONU em 1947 do território conhecido então como Palestina, e ao estabelecimento do Estado de Israel em 1948, sem que no entanto fosse efetivada a criação do Estado Palestino. Centenas de milhares de judeus acorreram para lá, incluindo muitos sobreviventes do Holocausto (estima-se que foram cerca de 600.000 nos três primeiros anos). Paralelamente, milhares de árabes palestinos fogem ou são desalojados e expulsos. Os países árabes não aceitaram a cessão de terras para a formação de Israel, invadindo a país recém formado. Um amplo conflito foi deflagrado, do qual Israel sai vitorioso, tomando cerca de 60% das terras previstas para o estado árabe-palestino. Como resultado da guerra, Israel ocupou o setor ocidental da cidade de Jerusalém, permanecendo a parte oriental, bem como a Cisjordânia, sob controle do reino Hachemita da Jordânia. Pela partilha, Jerusalém deveria ser internacionalizada, pelo caráter  sagrado para as três principais religiões monoteístas. As décadas seguintes foram de guerras, violentos conflitos e animosidade na região.

Com o fracasso do acordo de paz de Oslo de 1993 entre a OLP e Israel seguindo-se ao assassinato do líder israelense Yitzhak Rabin por um extremista judeu em 1995, a ascensão dos governos de direita de Ariel Sharon (2001-2006) e de Benjamin Netanyahu (a partir de 2009) só fez agravar a situação de beligerância na região. A questão do status de Jerusalém e a política de expansão dos assentamentos judaicos em terras da Cisjordânia solaparam a possibilidade de se chegar à solução de ‘Dois Estados’ preconizada pelo acordo de Oslo.

Os mapas da figura mostram a evolução temporal das terras ocupadas por judeus, partindo de umas poucas colônias ainda durante o mandato britânico, o mapa da partilha de 1947 pela ONU (Jerusalém em branco), o da independência do Estado de Israel, já com as terras conquistadas na guerra de 1948, e o mapa em 2000 , que mostra as terras que restavam aos palestinos, como resultado da expansão dos assentamentos judaicos na Cisjordânia ocupada. A veracidade deste último mapa não pôde ser confirmada por este blogue, mas a expansão dos assentamentos prossegue até os dias atuais.  O termo ‘bantustão’ é por vezes utilizado pelos mais críticos  de Israel, ao fazer a comparação com o antigo sistema do Apartheid na África do Sul, que, por segurança, confinava a população negra majoritária em regiões dispersas.

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Mais recentemente, o bloqueio asfixiante a Gaza e o ‘abate’ de manifestantes próximos às cercas da fronteira da Faixa geraram imagens que percorreram e chocaram o mundo.  A aprovação da Lei do Estado-Nação em 2018 reforçou as críticas, vindas até mesmo da parte judeus, de Israel ter se tornado um regime de Apartheid, por discriminar contra seus cidadãos não-judeus, principalmente os palestinos (Haaretz).

Os grupos de pressão pró-Israel têm atuado intensamente a nível mundial, buscando atenuar as críticas nos Fóruns Internacionais. Não se trata mais apenas de defender a existência de um ‘lar nacional’ onde os judeus estejam protegidos das perseguições que sofreram por séculos na Europa, da ameaça de vizinhos árabes hostis de empurrar judeus para o mar, e de movimentos extremistas. O poder militar e de dissuasão de Israel garante, atualmente, a sua existência pela força, mas não a paz duradoura. Trata-se, agora, de tentar se contrapor ao crescente movimento internacional pelos direitos do Povo Palestino, e que contribuiu para fortalecer o BDS, o boicote cultural e de bens e serviços, que vem prejudicando a economia e isolando culturalmente o país.

Os  antissionistas, críticos das políticas do expansionistas e dos excessos cometidos por Israel na repressão aos palestinos, passaram a ser indistintamente rotulados de ‘antissemitas’. É  o que vem ocorrendo intensamente na Inglaterra, com acusações  contra parlamentares do Partido Trabalhista (Chacoalhando). A pressão também aumenta contra parlamentares dos Democratas nos Estados Unidos, conforme este partido começa a se alinhar mais com teses simpáticas aos palestinos. Trump aproveitou para acusar os Democratas de serem um partido contra os judeus (Haaretz).

Da mesma forma que nos Estados Unidos, o principal grupo de pressão religioso pró-Israel no Brasil era tradicionalmente constituído por membros proeminentes e entidades da comunidade judaica, pela influência exercida na mídia e nos políticos. A narrativa do Holocausto sempre angariou no passado apoio a Israel na maior parte da mídia do então chamado Ocidente (países da OTAN, essencialmente), apoio este garantido também na época da ‘guerra fria’, por Israel ser considerado como um enclave da civilização ocidental no Oriente Médio, onde a então União Soviética buscava ampliar sua influência sobre os países árabes. E para que pudesse se defender e atuar como ponta de lança dos interesses do Ocidente, Israel recebia, e continua a receber modernos armamentos, além da ajuda econômica das entidades sionistas destes países. O Brasil, tradicionalmente alinhado com os Estados Unidos, não foi exceção.

No período dos governos do PT as políticas expansionistas de Israel não encontraram respaldo, chegando a surgir fortes atritos diplomáticos entre os dois países durante o governo de Dilma Rouseff.  A atuação do lobby judaico no país não era forte o suficiente para alterar o posicionamento dos governos petistas em favor da solução de Dois Estados e de resoluções da ONU contra o reconhecimento da ocupação de territórios obtidos por Israel pela força.

Era de se esperar, portanto, que instituições judaicas conservadores viessem a fazer oposição a qualquer futuro candidato presidencial do PT. Desta forma, apoiaram abertamente a candidatura de Jair Bolsonaro, apesar das amplas manifestações de judeus progressistas, alertando dos riscos que o candidato de extrema-direita representava para a democracia no país. A comunidade judaica ficou dividida, assim como o resto da nação.

menorah bolsonaro

O fortalecimento gradual da influência política dos evangélicos nos últimos anos no Brasil introduziu um novo fator na correlação de forças políticas. Eles passaram a se constituir, recentemente, no principal grupo de pressão pró-Israel no país, seguindo a mesma tendência que já se verificara nos Estados Unidos. Disto se aproveitou Bolsonaro, da mesma forma que Trump já vinha fazendo, para obter apoio político e dividendos eleitorais. Independente do jogo sujo na campanha eleitoral de 2018, pela ampla disseminação de notícias falsas (fake news), a questão do status de Jerusalém teve papel fundamental no apoio dos evangélicos a Bolsonaro, apoio este surpreendentemente fundamentado em uma profecia bíblica milenar.

Conforme cita a Dra. Diana Butler Bass, Ph.D. em estudos religiosos, (CNN), a Bíblia relata que sempre que o reino de Israel estendia suas fronteiras ou seu território de influência política pelas guerras, era pela vontade de Deus. Jerusalém passou a ser o coração espiritual de Israel no tempo do Rei Davi. Para muitos evangélicos conservadores a questão de Jerusalém não é política ou sobre planos de paz com Palestinos. Segundo a Dra. Bass, muitos evangélicos fundamentalistas seguem o chamado ‘pré-milenialismo dispensionalista’. Por esta doutrina, a ‘era da igreja cristã’, iniciada (por Deus) quando os judeus rejeitaram Jesus, terminará em breve. Os judeus serão então redimidos graças ao amor de Deus por eles, passando então por um grande renascimento religioso, quando será reconstruído o templo de Jerusalém.

Em seguida, ainda segundo a profecia, ocorrerá uma série de eventos cataclísmicos, culminando na Batalha de Armagedom, a última guerra da humanidade, com as tropas de Deus sendo lideradas pelo arcanjo Miguel (foto abaixo). Os judeus finalmente aceitarão Jesus como o Messias, seguindo-se o retorno de Jesus em glória e um reino de Deus com mil anos de paz. Todos estes eventos só poderão vir a ocorrer com Jerusalém pertencendo a Israel, daí a motivação dos evangélicos seguidores desta escatologia em ‘dar uma ajudinha’ para apressar o Armagedom.

miguel arcanjo

Originada nos Estados Unidos por volta de 1840 a partir de um pequeno movimento , o ‘dispensionalismo’ se popularizou através de livros best-sellers, se propagando também por meio de seminários teológicos, escolas, filmes, vídeos. Embora a maioria dos cristãos não compartilhe destas idéias, versões desta visão fundamentalista se disseminaram, influenciando por tabela a setores evangélicos no Brasil.

Importantes líderes evangélicos conservadores no país resolveram apoiar a campanha de Jair Bolsonaro à presidência da República, na condição do reconhecimento da mudança da capital de Israel para Jerusalém. Este reconhecimento, mais do que representar apenas outra faceta do atrelamento ideológico de Bolsonaro ao governo Trump, se tratou de uma estratégia do capitão para ganhar apoio eleitoral na significativa comunidade evangélica, e, naturalmente, também na judaica.

Eleito, Bolsonaro precisou logo fazer um recuo no reconhecimento de Jerusalém, pelas ameaças de retaliação econômica de países árabes, deixando insatisfeitas algumas lideranças evangélicas. O pastor Silas Malafaia, da Assembléia de Deus, foi taxativo ao declarar que Bolsonaro terá que cumprir o compromisso de campanha, ou a situação ‘ficará ruim’ para ele (Oglobo). Esta ameaça, mais do que velada, tem respaldo nas bancadas evangélica e da bala, pois a agronegócio (o terceiro B, da bancada BBB) não está nada satisfeito com a perspectiva do boicote  pelo mundo mulçumano. Provavelmente por não ser capaz de cumprir agora a promessa, o governo Bolsonaro rompeu com uma tradição da diplomacia brasileira, ao se posicionar no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas contrariamente à condenação de Israel ‘pelo uso de força ilegal e excessiva contra manifestantes palestinos’, se abstendo ainda em outra resolução contra a expansão das colônias israelenses nos territórios ocupados.

Na visita a Israel que acaba de concluir neste início de abril, Bolsonaro anunciou a abertura de um escritório comercial em Jerusalém, como forma de apaziguar parcialmente a bancada evangélica e, ao mesmo tempo, dando apoio à candidatura de Netanyahu nas eleições gerais de abril. Acompanhado de Netanyahu, Bolsonaro visitou o Muro das Lamentações, na Jerusalém Oriental, setor em que os palestinos pretendiam implantar a capital de seu futuro Estado. O Hamas, que governa a Faixa de Gaza, emitiu de imediato um comunicado, condenando tanto os planos de abertura do escritório como a visita à Jerusalém. Essa política não ajuda a estabilidade e a segurança da região, e ameaça os laços do Brasil com países árabes e muçulmanos’, salientou o comunicado do Hamas.

Continuando a se comportar como um ‘galinho de briga’, o senador Flávio Bolsonaro, ainda colocou mais lenha na fogueira ao mandar mensagem para o Hamas: ‘quero que se explodam’ (Valor). A continuar a política irresponsável nas relações exteriores, o Brasil poderá em breve sofrer retaliações comerciais de nações árabes e islâmicas em geral, bem como aumentará o risco do país se tornar alvo de atentados terroristas perpetrados por extremistas islâmicos. Chegamos a esta situação de risco graças a escatologia adotada pelos evangélicos.

Tudo indica que os setores evangélicos conservadores continuarão a apoiar a expansão territorial de Israel, como a recente anexação das colinas de Golã. Esperemos apenas que não esteja nos planos futuros de Israel alcançar a grandeza dos tempos dos reis Davi e Salomão, quando Damasco foi conquistada e pagava tributo ao reino.

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No mapa dos tempos bíblicos, a área em vermelho representa o território de Israel antes do reinado de Davi. Em laranja, as terras conquistadas por ele, que incluíram Damasco, na Síria, e herdadas por seu filho Salomão. Em amarelo, as regiões com forte influência econômica de Salomão, chegando até o Rio Eufrates.