Cenários para a guerra na Ucrânia em 2023

Por Scott Ritter*

Tradução e comentários por Ruben Rosenthal, do artigo publicado em 11 de janeiro de 2023 no Consortium News.

Dado o histórico enganoso dos Acordos de Minsk, é improvável que a Rússia possa ser dissuadida através de diplomacia a abrir mão de sua ofensiva militar. Assim, 2023 parece estar se configurando como um ano de confrontação violenta constante.

Ukrainian artillery fires in the fiercely-contested Bakhmut region of eastern Ukraine on November 8, 2022. Bulent Kilic/AFP via Getty Images
Disparos da artilharia ucraniana pelo controle da região de Bakhmut, leste da Ucrânia, novembro 2022 \ Foto: Bulent Kilic/AFP via Getty Images

 Depois de quase um ano de ações dramáticas, onde os avanços iniciais dos russos foram recebidos com impressionantes contraofensivas ucranianas, as linhas de frente no conflito em curso se estabilizaram, com ambos os lados envolvidos em sangrentos combates por posições, em uma brutal disputa de desgaste, enquanto aguardam pela próxima grande iniciativa de algum dos lados.

À medida que o aniversário de um ano da invasão da Ucrânia pela Rússia se aproxima, o fato de a Ucrânia ter chegado tão longe no conflito representa uma vitória moral e, em menor grau, militar. Assim como a chefia do Estado-Maior Conjunto dos EUA e a direção da CIA, a maioria dos altos oficiais militares e de inteligência do Ocidente avaliou no início de 2022 que uma grande ofensiva militar russa contra a Ucrânia resultaria em uma rápida e decisiva vitória russa.

A resiliência e a fortaleza dos militares ucranianos surpreenderam a todos, mesmo aos russos, cujo plano de ação inicial, incluindo a alocação de forças para o empreendimento, se mostrou inadequado para alcançar os objetivos pretendidos. Entretanto, é enganadora a percepção de uma vitória ucraniana.

Morte da diplomacia

Conforme a poeira assenta no campo de batalha, emerge um padrão em relação à visão estratégica por trás da decisão da Rússia de invadir a Ucrânia. Enquanto a narrativa ocidental dominante continuava a retratar a ação russa como um ato precipitado de agressão não provocada, surgiram fatos que sugerem que pode ter mérito a alegação russa de autodefesa coletiva preventiva, conforme o Artigo 51 da Carta das Nações Unidas

As recentes admissões por parte dos líderes de líderes responsáveis pela adoção dos Acordos de Minsk de 2014 e 2015 (o ex-presidente ucraniano Petro Poroshenko, o ex-presidente francês François Hollande e a ex-chanceler alemã Angela Merkel) mostram que se tratava de uma farsa que os acordos de Minsk visassem promover a resolução pacífica do conflito entre o governo ucraniano e os separatistas pró-russos, deflagrado  no Donbass após 2014.

De acordo com esta “troika”, os Acordos de Minsk foram pouco mais do que um meio de se ganhar tempo para que a Ucrânia pudesse construir, com ajuda da OTAN, um poder militar capaz de subjugar o Donbass e expulsar a Rússia da Crimeia.

Conversações do Acordo de Minsk, novembro de 2015
Presidente russo Vladimir Putin, Presidente francês François Hollande, Chanceler alemã Angela Merkel, Presidente ucraniano Petro Poroshenko: conversações no formato da Normandia em Minsk, Bielorrússia, Fevereiro de 2015 \ Fonte: Kremlin

Por esta ótica, o estabelecimento pelos EUA e pela OTAN de uma instalação permanente de treinamento no oeste da Ucrânia – onde foram treinados pelos padrões da OTAN cerca de 30 mil soldados ucranianos entre 2015 e 2022, com o único propósito de confrontar a Rússia no leste da Ucrânia – assume uma perspectiva totalmente nova.

A duplicidade admitida por Ucrânia, França e Alemanha contrasta com a insistência da Rússia, antes de sua decisão de 24 de fevereiro de 2022 de invadir a Ucrânia, de que os Acordos de Minsk fossem implementados na íntegra.

Em 2008, o ex-embaixador dos EUA na Rússia e atual diretor da CIA, William Burns, alertou que qualquer tentativa de ingresso da Ucrânia na OTAN seria visto pela Rússia como uma ameaça à sua segurança nacional, e que a determinação em concretizar tal filiação provocaria uma intervenção militar russa. O memorando de Burns fornece o contexto em que se deram as iniciativas da Rússia, de 17 de dezembro de 2021, de criar uma nova estrutura de segurança europeia, que manteria a Ucrânia fora da OTAN.

Simplificando, a meta da diplomacia russa foi de evitar o conflito. O mesmo não se pode dizer da Ucrânia ou de seus parceiros ocidentais, que buscaram uma política de expansão da OTAN, associada à resolução das crises do Donbass e da Crimeia através de meios militares.

A reação do governo russo ao fracasso de seus militares em derrotar a Ucrânia nas fases iniciais do conflito, fornece uma importante entendimento sobre o modo de pensar da liderança russa, em relação às suas metas e objetivos.

Negada uma vitória decisiva, os russos pareciam dispostos a aceitar um resultado que limitava os ganhos territoriais russos ao Donbass e à Crimeia, e a um acordo para a Ucrânia não aderir à OTAN. De fato, a Rússia e a Ucrânia estiveram à beira de formalizar um acordo nesse sentido, nas negociações programadas para ocorrer em Istambul, no início de abril de 2022.

No entanto, esta negociação naufragou após a intervenção do então primeiro-ministro britânico Boris Johnson, que condicionou a continuidade da assistência militar à Ucrânia, à disposição de Kiev em buscar a resolver o conflito no campo de batalha, em oposição a uma solução negociada. A intervenção de Johnson foi motivada pela avaliação, por parte da OTAN, que os fracassos iniciais dos militares russos eram indicativos de fraqueza.

O objetivo da OTAN foi de usar o conflito russo-ucraniano como uma guerra por procuração destinada a enfraquecer a Rússia, para que esta nunca mais procurasse empreender uma aventura militar semelhante à da Ucrânia. Associada à malfadada guerra econômica, o objetivo também foi remover Putin do poder, como admitido pelo presidente Joe Biden em março de 2022.

Reviravolta no jogo não traz vitória ucraniana

Os objetivos da OTAN se refletem nas declarações públicas de seu secretário-geral, o general Jens Stoltenberg: “Se Putin vencer, isso não significará apenas uma grande derrota para os ucranianos, mas também derrota e perigo para todos nós”. E também do secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin: “Queremos ver a Rússia enfraquecida, ao ponto em que jamais poderá novamente fazer o tipo de coisas que fez ao invadir a Ucrânia”.

Esta política serviu de impulso para injetar mais de 100 bilhões de dólares em assistência, incluindo dezenas de bilhões em equipamentos militares avançados para a Ucrânia. A infusão massiva de ajuda foi um evento que mudou o jogo, permitindo que o exército ucraniano fosse reconstituído, treinado, equipado e organizado segundo os padrões da OTAN. A Ucrânia fez a transição de uma postura principalmente defensiva para outra em que foram lançados contra-ataques em larga escala, que conseguiram expulsar as forças russas de grandes áreas da Ucrânia. Não foi, no entanto, uma estratégia que ganharia o jogo – longe disso.

As impressionantes realizações militares dos ucranianos, facilitadas através da prestação de ajuda militar pela OTAN, tiveram um enorme custo em vidas e materiais. Embora o cálculo exato das baixas sofridas por ambos os lados seja difícil de determinar, há um reconhecimento generalizado, mesmo dentro do governo da Ucrânia, de que as perdas ucranianas foram pesadas.

Matemática Militar

Com as linhas de batalha atualmente estabilizadas, a questão de qual lado do conflito a guerra vai favorecer a partir de agora se resume à matemática militar básica. Em suma, uma relação causal entre duas equações básicas que giram em torno das taxas de queima (com que rapidez as perdas ocorrem) versus as taxas de reabastecimento (com que rapidez essas perdas são repostas). O cálculo traz um mau presságio para a Ucrânia.

Nem a OTAN nem os Estados Unidos parecem capazes de sustentar a quantidade do armamento já entregue à Ucrânia, e que permitiu que as contraofensivas contra os russos fossem bem-sucedidas.

Estes equipamentos foram em grande parte destruídos e, apesar da insistência da Ucrânia em obter mais tanques, veículos de combate blindados, artilharia e defesa aérea, e de que a nova ajuda militar seja provável, esta demorará a chegar e virá em quantidade insuficiente para ter um impacto decisivo no confronto bélico.

Da mesma forma, o número de vítimas sofrido pela Ucrânia, que às vezes chegou a mais de mil homens por dia, excede em muito a sua capacidade de mobilizar e treinar substitutos. A Rússia, por outro lado, está no processo de finalizar a mobilização de mais de 300 mil homens, que parecem estar equipados com os sistemas de armas mais avançados do arsenal russo.

Quando a totalidade dessas forças estiver no campo de batalha – em algum momento até o final de janeiro –  a Ucrânia não terá resposta. Esta dura realidade, quando combinada com a anexação pela Rússia de mais de 20% do território da Ucrânia e danos à infraestrutura que se aproximam de 1 trilhão de dólares, traz um mau presságio para o futuro da Ucrânia.

Há um velho ditado russo que diz: “Um russo põe a sela devagar, mas cavalga rápido”. Isso parece ser o que está acontecendo em relação ao conflito russo-ucraniano.

Tanto a Ucrânia quanto seus parceiros ocidentais estão lutando para manter um conflito que iniciaram quando rejeitaram um possível acordo de paz em abril de 2022. A Rússia conseguiu se reagrupar em grande parte – após um período na defensiva – e parece estar pronta para retomar as operações ofensivas em larga escala, para as quais nem a Ucrânia e nem seus parceiros ocidentais terão uma resposta adequada.

Além disso, dado o histórico enganoso dos Acordos de Minsk, é improvável que a Rússia possa ser dissuadida através da diplomacia a abrir mão de sua ofensiva militar. Assim, 2023 parece estar se configurando como um ano de confrontação violenta constante, que levará a uma vitória militar russa decisiva.

Como a Rússia alavancará tal vitória militar para obter um acordo político sustentável que resulte em paz e segurança regionais é outra história, ainda a ser vista.

Comentários do tradutor: Resta ver se a antecipação feita por Scott Ritter de uma decisiva vitória russa leva em conta a determinação dos países aliados da Ucrânia de que este cenário não se concretize.  Cedendo a pressões de Kiev e de seus aliados, a Alemanha anunciou em 25 de janeiro que enviará 14 tanques de guerra do tipo Leopard-2-A6, provenientes do arsenal da Bundeswehr, as Forças Armadas do país, para reforçar a Ucrânia na luta contra as tropas russas.  A  Alemanha também autorizou que parceiros europeus possam repassar seus tanques Leopard à Ucrânia, de forma a montar rapidamente dois batalhões com estes blindados. Por outro lado, os Estados Unidos vão enviar tanques Abrams M1 para a Ucrânia, embora possa levar meses até que a entrega seja feita.

Assim, os cenários para a guerra na Ucrânia em 2023 podem não estar ainda definidos. A única certeza é o aumento no número de mortes de civis e militares dos dois lados. Lembrando que os 300 mil russos que foram recrutados para o campo de batalha também são civis, que tiveram que deixar suas famílias para ajudar no esforço de guerra. Uma guerra sem fim entre OTAN e Rússia?

*Scott Ritter é ex-oficial de inteligência do Corpo de Marines dos EUA, tendo servido na antiga União Soviética, implementando tratados de controle de armas; no Golfo Pérsico, durante a Operação Tempestade no Deserto; e no Iraque, na supervisão do desmantelamento das armas de destruição em massa. O seu livro mais recente é Disarmament in the Time of Perestroika, pela Clarity Press.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, no canal da TV GGN.

Ucranianos morrem para os Democratas não perderem votos

Por Ruben Rosenthal

Biden parece estar mais interessado em não prejudicar eleitoralmente o Partido Democrata do que nas mortes e sofrimento do povo ucraniano com o prolongamento da guerra que financia.

Xadrez da geopolítica EUA-Rússia
A Ucrânia é peça importante no xadrez da geopolítica Rússia-Estados Unidos / Foto: Relatório Rand Corporation

A desinformação propagada pela mídia ocidental, difundindo uma suposta incompetência dos militares russos, não consegue ocultar que as forças de combate russas estão próximas de expulsar das repúblicas separatistas do Donbass as tropas do governo central de Kiev, compostas principalmente de milícias de extrema-direita e mercenários estrangeiros. Ao mesmo tempo, foi conquistado um amplo corredor terrestre conectando Crimeia e Rússia.

Faltam ainda a ser alcançados outros objetivos estabelecidos inicialmente por Putin, como a desmilitarização e desnazificação da Ucrânia, bem como o não ingresso na OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, e a garantia de neutralidade do país com o qual a Rússia faz fronteira por uma extensão de cerca de 2.700 quilômetros.

A questão que se colocará em breve é se Moscou se dará por satisfeita com a liberação do Donbass e com outras metas já alcançadas, ou se o conflito entrará em uma nova fase, com consequências imprevisíveis para a Europa e para o mundo. A Rússia parece não ter sido profundamente afetada pelas sanções econômicas por parte do Ocidente, mas estas vêm causando aumento dos preços de combustíveis e escassez de alimentos em vários países.

No discurso de 24 de fevereiro ao povo russo, Putin ressaltou que as operações que se fizerem necessárias para expulsar as tropas ucranianas do Donbass estão de acordo com o Artigo 51 (capítulo VII) da Carta da ONU, e atenderam ao acordo de amizade e de assistência mútua com as repúblicas populares de Luhansk e Donetsk, que constituem o Donbass, cuja população é majoritariamente de origem russa. A escala das operações militares até o momento se faz com a autorização concedida pela Duma, o parlamento russo.

A ampliação das operações de combate necessárias para serem alcançados os objetivos originalmente pretendidos poderá fazer com que o conflito se espalhe para países vizinhos pertencentes a OTAN, avalia o analista Scott Ritter, ex-oficial de inteligência do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos.

Para melhor compreensão do cenário atual e do que poderá vir futuramente é necessário se ter em conta quais foram os antecedentes que levaram à intervenção russa em solo ucraniano.

O pavio do conflito. Os analistas independentes não hesitam em associar a origem do atual conflito ao golpe de 2014, apoiado por Barack Obama, que afastou o presidente eleito Viktor Yanukovych através do que ficou conhecido como a revolução colorida de Maidan (ver artigo anterior do blog)

Seguiu-se o referendo na Crimeia, com 97% dos votantes optando pela incorporação da península à Rússia. Na sequência, as regiões Luhansk e Donetsk demandaram um referendo de autodeterminação (autonomia), de forma a poder preservar a cultura russa, que se via ameaçada pelo novo governo. Não se tratava naquela ocasião de um movimento separatista.

A reação de Kiev levou à repressão contra diversas regiões de língua russa, e a massacres em Odessa e Mariupol.  Os autonomistas tomaram em armas para se defender. Conforme assinala artigo do analista Jacques Baud, ex-membro da inteligência estratégica suíça, os rebeldes não obtiveram suas armas da Rússia, e sim, de unidades ucranianas de fala russa. Baud lembra ainda que os acordos de Minsk 1 (setembro de 2014) e Minsk 2 (fevereiro de 2015) não concediam independência às Repúblicas de Luhansk e Donetsk, mas, um certo grau de autonomia.

O acordo deveria também incluir uma ampla anistia a todos os envolvidos no conflito, bem como o desmantelamento das organizações paramilitares de extrema direita que participaram do Maidan, e que também se envolveram nos confrontos bélicos. Entretanto, a Ucrânia não implementou quaisquer das  medidas estipuladas. A OSCE passou a monitorar a linha de separação entre as partes beligerantes, mas não tinha capacidade militar para intervir.

O estopim do conflito. Em 24 de março de 2021, o presidente ucraniano Volodymir Zelensky emitiu um decreto que reafirmava a soberania sobre a Crimeia e passou a estacionar tropas no sul do país. As tensões entre Rússia e Ucrânia escalaram no decorrer do ano.

A intenção explicitada por Zelensky  de que seu país entrasse para a OTAN, contou com a concordância de Joe Biden. O Ministério das Relações Exteriores russo pediu garantias por escrito de que a Ucrânia jamais ingressaria na OTAN. Em 17 de dezembro de 2021, Putin cobrou também que a área de influência militar da OTAN retrocedesse aos limites existentes em 1997, conforme o que havia sido então acordado entre EUA e Rússia quando do final da União Soviética.

Expansão da OTAN para o Leste da Europa
Expansão da OTAN no Leste da Europa após 1997; a adesão da Alemanha Oriental se deu com a reunificação do país em 1990 / Fonte: BBC

Em 27 de janeiro de 2022, o Secretário de Estado Antony Blinken declarou que Washington não daria garantias à Rússia de que a Ucrânia não ingressaria no bloco militar. Os EUA continuaram a agitar o cenário político, criando um clima de pânico de que a invasão russa era iminente, o que fez com que Zelensky pedisse moderação ao Ocidente, para não prejudicar a economia ucraniana.

Em 16 de fevereiro de 2022, a artilharia ucraniana iniciou um massivo bombardeio de regiões civis do Donbass sob controle dos rebeldes. Talvez isso explique porque Biden anunciou, em 17 de fevereiro, que a Rússia atacaria a Ucrânia nos próximos dias.

Os ataques devem ter partido provavelmente do batalhão Azov, que está vinculado à Guarda Nacional, que responde ao Ministério do Interior; já o Exército, está subordinado ao Ministério da Defesa.

Teria o batalhão Azov agido à revelia de Zelensky, incitado por Washington? Esta é uma hipótese bem plausível, considerando que aos EUA interessavam a deflagração de um conflito que desgastasse a economia russa. A estratégia está explicitada nas páginas 95 a 103 do manual de guerra híbrida da Rand Corporation, think tank financiado pelo exército norte-americano.

Vale lembrar que Zelensky fora eleito com uma proposta de selar a paz no Donbass. Mas segundo declaração do especialista em Rússia, Stephen Cohen (falecido recentemente), em entrevista ao jornalista Aaron Maté, Zelensky logo foi obrigado a recuar em face das ameaças de morte vindas da extrema-direita ucraniana, e por não ter recebido apoio de Washington. Mas, como todo ator que se preza, Zelensky assumiu e incorporou um novo personagem, que agora só usa como traje teatral, camisas T-shirt do exército ucraniano.

Em 19 de fevereiro de 2022, Zelensky fez um discurso na Conferência de Segurança de Munique, em que pede ao Ocidente que apoie a Ucrânia para impedir uma invasão russa. O presidente ucraniano ameaçou abandonar o Memorando de Budapeste de 1994, pelo qual a Ucrânia abrira mão de seu arsenal atômico com a garantia que teria preservada a integridade de suas fronteiras.  A declaração acirrou ainda mais as tensões com a Rússia.

Em 21 de fevereiro, Putin reconheceu a independência das Repúblicas de Luhansk e Donesk. Em 23 de fevereiro as duas repúblicas pediram ajuda militar à Rússia. No dia seguinte, Putin fez o discurso já mencionado, em que estabeleceu os objetivos da intervenção que se iniciava em solo ucraniano.   

A primeira fase da guerra. Nas primeiras semanas do conflito a capital ucraniana Kiev foi submetida a intenso bombardeio, ao mesmo tempo em que um longo comboio de blindados se dirigia para a capital. Para os analistas da mídia ocidental a estratégia russa era de tomar a capital ucraniana, afastando Zelensky da presidência.

Após um mês de luta as tropas russas se retiraram do norte da Ucrânia, e passaram a focar na conquista da região leste. Ritter cita em seu artigo a declaração feita em 25 de março pelo coronel-general Sergei Rudskoy, do Estado-Maior da Forças Armadas da Federação Russa: “Os objetivos principais da primeira fase de operações foram alcançados. A capacidade de combate das Forças Armadas da Ucrânia foi significativamente reduzida, o que nos permite de novo concentrar nossos esforços em alcançar o objetivo principal – a liberação do Donbass. Todas as 24 formações das forças terrestres (ucranianas)….sofreram perdas significativas.”

A segunda fase da guerra. Na batalha da informação, prevalecia o consenso estabelecido pela mídia do Ocidente, que demonizava Putin e procurava desmoralizar a eficácia das tropas russas, ecoando versões que a Ucrânia estava forçando os russos a recuarem, e que logo a Crimeia seria retomada.

De fato, a tarefa de derrotar as tropas ucranianas estacionadas no Donbass não seria fácil. Nos oito anos de guerra civil os militares do governo central de Kiev preparam um cinturão defensivo, consistindo de estruturas de concreto bem fortificadas, segundo declaração do general Rudskoy citada por Scott Ritter.

Ainda segundo Ritter, a vantagem russa na artilharia vem sendo um fator determinante do resultado vitorioso na fase 2 das operações, “pulverizando as defesas ucranianas e abrindo o caminho para a infantaria e blindados”. E acrescentou: “A vitória russa no leste da Ucrânia possibilita uma conexão por terra entre a Crimeia e o território da Federação Russa. A tomada de Kherson permite restabelecer o fornecimento de água à Crimeia, o que vinha sendo impedido pelo governo central desde o plebiscito de 2014.”

 A guerra entrará em uma terceira fase? Vários dos objetivos pretendidos por Putin não foram ainda alcançados, ressalta Scott Ritter. No campo político, a “operação especial militar” tinha como um dos principais objetivos, impedir o ingresso da Ucrânia na OTAN. No campo dos objetivos militares, faltava ainda desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia.

Desnazificação. A derrota do Batalhão Azov em Mariupol representou um sério revés para as milícias neonazistas. No entanto, milhares de combatentes neonazistas se encontram ainda em atividade no leste da Ucrânia.

Para Ritter, o objetivo só poderá ser alcançado com a  remoção de Zelensky da presidência, e sua substituição por uma liderança que esteja comprometida com a efetiva  erradicação da ideologia neonazista na Ucrânia.

Desmilitarização. Conforme relato de Jacques Baud, a desmilitarização seria alcançada através dos seguintes objetivos: destruição no solo da aviação, dos sistemas de defesa aérea e dos meios de reconhecimento; neutralização das estruturas de comando e inteligência, bem como das principais rotas logísticas no interior do território; cerco ao exército ucraniano concentrado no sudeste do país. 

No entanto, com a ajuda militar de dezenas de bilhões de dólares a Kiev pelos EUA e outros países da OTAN torna-se bem mais complicado para a Rússia conseguir completar os objetivos de desnazificar e desmilitarizar a Ucrânia.

Putin precisará avaliar muito bem se poderá continuar a perseguir estes objetivos, bem como a não filiação da Ucrânia à OTAN, fortalecida ainda mais com o ingresso esperado da Suécia e Finlândia, sendo que este último apresenta extensa fronteira comum com a Rússia. Para obter sucesso, a Rússia precisaria expandir as operações militares em regiões não ocupadas nas fases 1 e 2, avalia Ritter. Aos Estados Unidos interessam estender a duração do conflito, para desgastar ainda mais a economia russa.  

No entanto, importantes especialistas militares das Forças Armadas norte-americanas já consideram que, para a Ucrânia, é melhor negociar agora um acordo de paz com a Rússia, do que esperar mais tempo e entrar enfraquecida nas negociações. Em um painel organizado pelo think tank CFR, Council for Foreign Relations no final de maio, essa foi a opinião expressa pelo tenente-general Stephen Twitty, ex-comandante do Primeiro Exército dos EUA e ex-vice-comandante (2018-2020) do Comando Europeu dos EUA. Para Twitty, os ucranianos nunca conseguirão derrotar os russos: apesar da paridade numérica de ambas as tropas (nos cenários de operações), a Rússia tem um poder de combate bem maior que o dos ucranianos.

Ao participar de um seminário na Finlândia em 12 de junho, o secretário geral da OTAN, Jens Stoltemberg, também se mostrou realista sobre o encaminhamento da guerra, antecipando que a Ucrânia precisaria fazer concessões, ao declarar: “O apoio militar (a Kiev) é um caminho para fortalecer os ucranianos na mesa de negociações…(mas) a questão é: qual o preço a pagar pela paz? Quanto território? Quanta independência? Quanta soberania?”  

Para o presidente norte-americano Joe Biden, a capitulação da Ucrânia antes das eleições de novembro representaria um forte revés político, que seria explorado politicamente pelos republicanos. Biden parece estar mais interessado em não prejudicar as chances do Partido Democrata do que nas mortes e sofrimento do povo ucraniano com o prolongamento da guerra que financia.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

 

Rússia-Ucrânia: a geopolítica do novo mundo

Por Ruben Rosenthal

O processo-chave neste novo mundo será o chamado “confronto gerenciado” entre a Rússia e o Ocidente, impedindo a escalada espontânea em direção à guerra.

War in Ukraine
Guerra Rússia-Ucrânia: tensões no Leste da Europa. Foto montagem: Kirill Makarov

Tanto cutucaram o urso com vara curta que finalmente ele reagiu. A crise na Ucrânia, que culminou com a invasão russa de 24 de fevereiro, foi em verdade iniciada em 2014, com o golpe apoiado por Barack Obama e que afastou o presidente eleito Viktor Yanukovych através da revolução colorida de Maidan.

Seguiu-se o referendo na Criméia, com 97% dos votantes optando pela incorporação da península à Rússia. Na sequência  cresceu o movimento separatista no Donbass, onde parte significativa da população é de origem russa.

Nos meses recentes, as constantes violações do cessar-fogo entre os separatistas do Donbass e tropas do governo de ultranacionalista de Kiev contribuíram para a escalada das tensões entre Moscou e Kiev.

A intenção explicitada pelo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky,  de que seu país entrasse para a OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, bem como a concordância de Joe Biden, foram considerados por Vladimir Putin uma ameaça insustentável à segurança da Rússia.

A expansão da OTAN, seguindo-se ao fim da aliança militar do Pacto de Varsóvia (julho 1991) e da União Soviética (dezembro de 1992), já há muito alcançara a fronteira russa. Em dezembro de 2021, a imprensa do ocidente começou a gerar notícias de que uma invasão russa da Ucrânia era iminente.

NATO's eastern expansion
Mapa da expansão da OTAN para o leste da Europa. A Alemanha Oriental foi incluída com a reunificação do país em 1990. Fonte: OTAN

O desenrolar da crise da Ucrânia, desde seu início em 2014 até a escalada de tensões que antecedeu a invasão do território ucraniano, pode ser acompanhada em artigo anterior do blog. Aos Estados Unidos interessam forçar engajamentos militares da Rússia que sobrecarreguem a economia russa, da mesma forma que as sanções aplicadas pelo Ocidente. A receita está explicitada no manual de guerra híbrida da Rand Corporation, think tank financiado principalmente pelo exército norte-americano.

A invasão da Ucrânia tem o potencial de abalar a atual ordem geopolítica. Segundo o veículo informativo alemão Deutsche Welle (DW), analistas consideram que poderá ser revertido “o ordenamento pacífico” (grifo do blog) que muitos previam que iria prevalecer quando a OTAN e a União Europeia começaram a incorporar novos países-membros no Leste da Europa, com o colapso da União Soviética.

Para esses analistas, com a atual crise na Ucrânia os países europeus passariam a ser mais dependentes dos EUA para a defesa de seus territórios, assim como quando do período da Guerra Fria. Também aumentaria a militarização das regiões próximas à fronteira russa.

Para o New Statesman, as relações entre a Rússia e o Ocidente serão alteradas de tal forma que o cenário da geopolítica global poderá ser afetado. Os efeitos desestabilizadores do conflito chegariam a outras regiões na Europa Central, Bálcãs, Ásia Central e ao Pacífico. A questão China-Taiwan voltaria a ficar na ordem do dia, para o veículo de mídia britânico.

Os dois países beligerantes acertaram iniciar conversações na fronteira entre Ucrânia e Bielorússia (Belarus) em 28 e fevereiro. A Rússia certamente não aceitará menos do que a desmilitarização da Ucrânia e o compromisso de não filiação à OTAN.  Por outro lado, pode fazer parte das cartas de Putin que as regiões de Donetsk e Luhansk, no Donbass, voltem se integrar à Ucrânia, mas como repúblicas autônomas. O Protocolo de Minsk de 2014, que já previa a concessão de um certo grau de autonomia para estas regiões, foi então sabotado pela Ucrânia e pelos Estados Unidos.

No entanto, na visão do analista russo Andrey Sushentsov, decano da Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou (MGIMO), poderia estar nos planos de Putin que a Ucrânia venha a se tornar o terceiro membro de uma União de Estados entre Rússia e Bielorrússia. No entanto, considerando que as negociações para se criar a União de Estados entre Belarus e Rússia já se arrastam há mais de 20 anos, fica difícil imaginar como tal solução poderia ser implementada no caso da Ucrânia, senão através de uma adesão compulsória que não seria aceita por parte da população ucraniana.

O artigo de Sushentsov intitulado “Rússia-Ucrânia: Aonde Vais”, publicado em 26.02.2022 no Valdai Club, é apresentado a seguir em sua íntegra1, com tradução2 de Ruben Rosenthal. O autor prevê que o novo ordenamento geopolítico global que se anuncia buscará sua estabilidade através do “confronto gerenciado”.

Russia-Ukraine: Quo Vadis?, por Andrey Sushentsov

“Em 24 de fevereiro, terminou a era da busca da Rússia por seu lugar em um mundo centrado no Ocidente. Neste mundo, todas as iniciativas políticas vieram apenas do Ocidente. Os países ocidentais também determinaram as regras básicas e permitiram, a critério deles, que outros participantes compartilhassem os benefícios da ordem estabelecida.

Nas últimas três décadas, a Rússia procurou encontrar seu lugar neste mundo, de uma forma que estivesse de acordo com seus interesses. De início, com cautela e até timidamente, e depois de forma mais persistente, a Rússia sinalizou que ignorar seus interesses levaria a uma crise mundial.

Em resposta a isso, o Ocidente começou a considerar a Rússia o principal problema enfrentado pela segurança europeia. A questão principal foi estabelecer o grau de culpa da Rússia pelo que estava acontecendo na Europa Oriental – Moldávia, Bielorrússia, Donbass e Crimeia. Ao final de 2020, era rotineiro realizar provocações militares nas fronteiras da Rússia, testando a vontade política da liderança russa quase que diariamente.

A perigosa proximidade de navios militares, as manobras de frotas militares perto das fronteiras da Rússia, provocações no Donbass e na Crimeia, a pressão política constante, as sanções, os ataques cibernéticos, bem como a constante ameaça de escalada do conflito tornaram-se uma característica integral do chamado “diálogo” político com a Rússia.

Ao longo de todas essas décadas, o enfoque russo foi baseado na diplomacia. A resposta russa foi complexa, metódica, e apelou para o senso comum das principais elites do Ocidente. Em uma série de aparições públicas em grandes fóruns estrangeiros e através de uma lista de iniciativas para criar um novo regime de segurança na Europa – como o Tratado Europeu de Segurança – a Rússia buscou que uma sólida e indivisível arquitetura de segurança europeia fosse construída através de acordos e diplomacia.

Quando finalmente percebeu que essas tentativas não tinham sucesso, a Rússia adotou a lógica do Ocidente, segundo a qual a segurança europeia só tinha um problema (a própria Rússia, no entender do Ocidente). Moscou pensa agora também desta forma: o principal problema do sistema de segurança europeu está no ativismo militar dos EUA e da OTAN.

Depois de um tempo, diminuirão as emoções associadas à fase aguda atual da crise, e as negociações inevitavelmente serão retomadas. Mas de qualquer forma, será outro mundo. Neste mundo, a Rússia afastará a fronteira de segurança de suas fronteiras (físicas), para longe em direção ao Ocidente.

A Ucrânia terá um novo governo e será desmilitarizada, com certeza. É mais provável que a Ucrânia se torne o terceiro membro da União (de Estados) entre Rússia e Bielorrússia. Se a ameaça americana de criar um sistema de apoio para ações clandestinas ucranianas, com a implantação de campos no território dos estados da Europa Oriental começar a se materializar, a Rússia terá em mente uma resposta simétrica: forte pressão sobre países da Europa Oriental.

Com o tempo, este confronto híbrido deverá terminar, como terminou antes entre a Rússia e a Turquia, que usaram ferramentas semelhantes de influência uma contra a outra. No novo mundo, a Rússia não tolerará violações dos direitos das pessoas com identidade russa, onde quer que vivam: irá defendê-las com firmeza e persistência.

A troca de ataques cibernéticos se tornará comum em um mundo onde um conflito militar direto entre a Rússia e o Ocidente é impossível. Será relativamente rotineira, para demonstrar as intenções e o potencial militar. No caso do estacionamento de armas ofensivas em países da OTAN nas fronteiras russas, por exemplo, nos territórios dos Estados Bálticos ou da Polônia, a Rússia criará ameaças em lugares inesperados da Europa e do Hemisfério Ocidental.

O processo-chave neste novo mundo será o chamado “confronto gerenciado” (grifo do blog) entre a Rússia e o Ocidente, impedindo a escalada espontânea em direção à guerra. O objetivo da Rússia permanece inalterado – criar um sistema de segurança mais justo na Europa, que leve mais em conta os interesses russos. Este sistema deve basear-se nas regras de comportamento prudente e na recusa em criar ameaças militares mútuas.

A interdependência entre a Rússia e os países do Ocidente será menor, mas não cessará completamente. As entregas de recursos energéticos russos em troca de tecnologias ocidentais continuarão em demanda. Também não é possível excluir completamente a Rússia do sistema financeiro global. No entanto, as sanções impostas pelos EUA e pela UE acelerarão a retirada do dólar dos acordos internacionais.

Embora nas primeiras páginas da mídia mundial vejamos a percepção da crise atual através dos olhos do Ocidente, os atores importantes na situação atual são os estados do Oriente: a China escolheu uma linha cautelosa em relação ao que está acontecendo, e está enviando sinais de que é uma das partes interessadas em criar uma ordem mundial multipolar.

A posição de outros grupos de elite influentes também mostra que eles não estão solidários aos países do Ocidente, com o que está acontecendo. Irã, Azerbaijão, Turquia, Brasil e Paquistão demonstram que seus interesses nacionais são diferentes dos do Ocidente em relação à segurança europeia.

O caráter rotineiro da maior crise militar da Europa desde o ataque da OTAN a Belgrado mostra que as relações internacionais estão voltando ao seu padrão histórico: vários centros de iniciativa que competem entre si pela influência global. Há mais perigos neste mundo, mas também mais cautela.”

1 O blog não necessariamente compartilha de todos os pontos de vista expressos pelo analista russo.

2 Os termos entre parênteses foram acrescentados na tradução.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF e responsável pelo  blogue Chacoalhando.

Crise na Ucrânia: quem pisca primeiro, Biden ou Putin?

Por Ruben Rosenthal

O risco é que uma guerra possa irromper de forma inadvertida. A história está repleta de exemplos de provocações que saíram de controle.

Xadrez da geopolítica EUA-Rússia
    Xadrez da geopolítica Rússia-Estados Unidos \ Foto: Relatório da Rand Corporation

O Ocidente voltou a acusar a Rússia se estar prestes a invadir a Ucrânia, mas o Kremlin nega que tenha planos de invasão. Segundo a mídia ocidental, um contingente de cerca de 100 mil militares russos está estacionado há várias semanas nas proximidades das fronteiras da Ucrânia. Por seu lado, Moscou continua a exigir que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) cesse sua expansão para países do Leste Europeu.

As denúncias da iminência de uma invasão russa surgiram em 3 de dezembro. Segundo o Washington Post, “a inteligência norte-americana teria descoberto que o Kremlin está planejando uma ofensiva militar em várias frentes para o começo de 2022, envolvendo até 175 mil combatentes”.

Na verdade, a mídia Ocidental vem anunciando a proximidade de uma ação bélica russa desde abril de 2021. Naquela ocasião, o comandante do exército ucraniano, general Ruslan Khomchak, declarou que a Rússia estacionara 28 batalhões de grupos táticos na fronteira, totalizando de 20 a 25 mil militares (BBC News). Mas, ainda em abril, a agência Reuters inflou este número para 100 mil. Em 21 janeiro de 2022 o Financial Times “atualizou” o contingente russo para 106 mil.

Em 24 de janeiro, a OTAN anunciou que seus países-membros estavam colocando as tropas em prontidão e enviando navios e aviões de guerra para o Leste da Europa, pelo receio de uma invasão russa na Ucrânia (Reuters).

Estados Unidos e Reino Unido retiraram parte dos diplomatas da Ucrânia (BBC), ao mesmo tempo em que os EUA anunciaram que haviam colocado em alerta máximo um contingente de 8.500 militares para envio ao leste europeu.

Em 25 de janeiro, a Rússia conduziu manobras militares na Criméia e próximo à Ucrânia. As manobras teriam envolvido a participação de 6 mil militares em exercícios de combate com bombardeiros, sistemas antiaéreos, e navios das frotas do Mar Negro e do Cáspio (Agência France-Presse).

Poucos dias antes (18 de janeiro), ocorreram exercícios militares na Bielorússia, aliada da Rússia, que também faz fronteira com a Ucrânia. As manobras  envolveram sistemas de mísseis russos de defesa S-400 e Pantsir, segundo relato no Financial Times. Novas manobras conjuntas da Rússia com a Bielorússia estão previstas para fevereiro.

O atual recrudescimento da crise já era esperado, do momento em que a Rússia anunciou (17 dez. 2021) que não mais aceitaria que a OTAN prosseguisse em sua contínua expansão na direção da fronteira russa. O Ministério das Relações Exteriores russo pediu garantias por escrito de que a Ucrânia jamais ingressaria na OTAN. A Organização também deveria deixar de promover atividades militares na Ucrânia e em outros países que fazem fronteira com a Rússia (Moscow Times).

No entanto, o Secretário de Estado Antony Blinken declarou em 27 de janeiro de 2022, que Washington não daria tais garantias à Rússia (Folha de São Paulo, New York Times). Para Putin, os EUA estão tentando fazer com que Rússia ataque a Ucrânia, para que então sanções econômicas sejam impostas (BBC News).

Dentre as retaliações planejadas por Washington, caso ocorra uma intervenção militar russa na Ucrânia, estaria aplicar sanções aos títulos públicos russos. Também como retaliação, seria impedido o funcionamento do gasoduto Nord Stream 2, algo que no entanto também prejudicaria a  Alemanha.

Em outra frente de conversações, representantes da França, Alemanha, Rússia e Ucrânia concordaram em manter o acordo de cessar fogo no leste da Ucrânia, entre separatistas do Donbass e o governo central de Kiev (Deutsche-Welle). O enviado do Kremlin, Dmitry Kozak, disse que, “apesar de todas as diferenças nas interpretações, o cessar-fogo precisa ser mantido em linha com os acordos”.  Tratava-se de uma referência aos acordos de Minsk, que foram assinados na Normandia em 2014, pelos representantes dos quatro países.

Histórico da crise: Viktor Yanukovych, eleito presidente da Ucrânia em 2010, adotou com uma posição contrária a um desvantajoso acordo econômico com a União Europeia. O presidente optou então em fazer o acordo com a Rússia, o que desagradou Washington

Sobreveio então a revolução colorida de Maidan, em fevereiro de 2014 – apoiada pelo governo de Barack Obama – que afastou Yanukovych da presidência. Foi então instalado um governo pró-Ocidente em 2014, com a ajuda de grupos neonazistas ucranianos.

Como reação, a população ucraniana de origem russa na Criméia promoveu um referendo, com resultado favorável à anexação da península pela Rússia.  Movimentos separatistas em Luhansk e Donetsk, na região do Donbass no leste da Ucrânia, também defenderam a realização de um referendo, o que levou à confrontação bélica com as tropas de Kiev.

Protocolo de Minsk: As negociações de paz ocorreram na capital da Bielorússia, monitoradas por observadores da OSCE (a Organização para a Segurança e Cooperação Europeia), tendo como garantidores França, Alemanha e Rússia. Pelo acordo de 2015 esperava-se chegar à reconciliação política na Ucrânia através de uma série de etapas que conduziriam a eleições livres, à concessão de autonomia política ao Donbass e ao controle por Kiev da fronteira com a Rússia.

O acordo deveria também incluir uma ampla anistia a todos os envolvidos no conflito, bem como o desmantelamento das organizações paramilitares de extrema direita que participaram do Maidan, e que também se envolveram nos confrontos bélicos. Entretanto, a Ucrânia não implementou quaisquer destas medidas. A OSCE monitora desde então a linha de separação entre as partes beligerantes, mas não tem capacidade militar para intervir.

Região do conflito separatista do Donbass
O mapa mostra as regiões em Luhansk e Donetsk sob controle dos separatistas (região hachurada à direita) e do governo central. 

Um cessar-fogo foi implementado em 27 de julho de 2020, embora escaramuças entre separatistas e tropas do governo tenham ocorrido em algumas ocasiões. Estima-se que, desde o início da guerra, o número de mortes nos confrontos seja de 14 mil. O protocolo de Minsk permanece como base para um acordo futuro.

A expansão da OTAN e o cerco à Rússia

A crise na Ucrânia não pode ser entendida fora do contexto geopolítico que se seguiu ao fim da União Soviética e do Pacto de Varsóvia, segundo o professor russo Alexander Zhebit1 declarou em entrevista ao programa Agenda Mundo (Parte 1, Parte 2).

“Com a extinção do Pacto de Varsóvia em 1990, a Rússia retirou suas tropas – cerca de 350 mil – da Alemanha e da Europa Oriental, mas o aparato militar da OTAN existente ao final da Guerra Fria não foi desmontado”.

“O equilíbrio estratégico começou a mudar severamente contra a Rússia quando OTAN começou a se expandir, apesar das promessas de líderes ocidentais de que tal expansão não ocorreria”.

“Em 1999 ocorreu a adesão da Polônia, Hungria e República Checa à OTAN. Em 2004, a expansão se deu para a área da antiga União Soviética, chegando às fronteiras da Rússia, com a entrada da Lituânia, Letônia e Estônia na Organização. Na Europa centro-oriental, aderiram Eslovênia, Eslováquia, Bulgária e Romênia”.

Mais países ingressaram na OTAN nos anos seguintes, de forma que atualmente a Organização totaliza 30 estados membros. “Várias adesões se deram com base na “chantagem de que a adesão à OTAN seria uma etapa indispensável para ingressar na União Europeia”, lembra Zhebit.

A OTAN pretende expandir o bloco ainda mais, para incluir Ucrânia e Geórgia. Em uma reunião de cúpula da Organização realizada em 2008 em Bucareste, Romênia, o então presidente norte-americano George Bush propôs que Ucrânia e Geórgia passassem por um processo gradativo de ingresso na OTAN. Na ocasião, prevaleceu a posição contrária defendida pela chanceler Angela Merkel, que argumentou que tal ação iria levar ao aumento da fricção com a Rússia (The Guardian).

Quando a escalada da crise começou em abril de 2021, o analista político Mark Sleboda, norte-americano radicado na Rússia, avaliou que o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky estaria interessado em forçar uma intervenção russa, para que o projeto do gasoduto Nord Stream 2 fosse  sustado pela Alemanha. Isso porque, com o gasoduto concluído, a Ucrânia deixaria de receber pagamento pela passagem de suprimentos de gás por seu território, afetando bastante a economia do país.

Alexander Zhebit concorda com Sleboda, acrescentando ainda que “outros membros da União Europeia, como Polônia, Países Bálticos, República Checa e Romênia estariam também interessados em encorajar o agravamento do conflito em Donbass, para induzir a Rússia a alguma ação bélica”.

Entretanto, se esta era a intenção original de Zelensky, o tiro pode ter saído pela culatra, pois o  “pânico” gerado pelo Ocidente está  desestabilizando a economia do país, alertou o presidente ucraniano.

O professor Zhebit mostra como ações dos EUA e da OTAN geraram um clima de histeria : “Desde abril de 2021 vem ocorrendo uma escalada das tensões, causada pela realização de exercícios terrestres e navais no Mar Negro, com a participação da OTAN, inclusive no território ucraniano. A OTAN começou a massificar suas forças nos territórios dos países-membros na Europa Oriental”.

Zhebit associa as provocações da OTAN com as estratégias de guerra híbrida apresentadas no manual de guerra híbrida da Rand Corporation, think tank norte-americano financiado principalmente pelo exército dos EUA. Para os analistas da Rand, a melhor forma de combater a Rússia, seria combalir sua economia, fazendo com que ela se sobrecarregasse com engajamentos militares, que drenariam seus recursos financeiros.

A grande incógnita que se coloca é se a Rússia estaria disposta a enfrentar ameaças econômicas para impedir que a OTAN chegue a suas fronteiras com a Ucrânia.

Para Alexander Zhebit, a Rússia tem feito de tudo para evitar tal desenvolvimento. “Ela está tentando dissuadir a OTAN, advertindo que uma provocação resultaria em conflito. O conflito em si não se transformaria em uma Terceira Guerra Mundial, mas poderia levar a uma nova configuração das forças na Europa e a uma nova guerra fria, mais agressiva”, avalia ele.

“O risco é que uma guerra pode irromper de forma inadvertida. A história está repleta de exemplos de provocações que saíram de controle. Resta ver se o bom senso vai prevalecer em relação a conter o avanço da OTAN para o leste”,  completa Zhebit.

Notas do autor:

1 Alexander Zhebit possui doutorado e livre Docência em História das Relações Internacionais e Política Externa pela Academia Diplomática do Ministério das Relações Exteriores da Rússia. Atualmente, ele é professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Instituto de Relações Internacionais e Defesa.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Bielorrússia no xadrez da geopolítica: aumenta o cerco contra a Rússia

A queda da Bielorrússia colocaria um regime simpático à OTAN a cerca de 450 km de Moscou.

Xadrez da geopolítica EUA-Rússia
Xadrez da geopolítica Rússia-Estados Unidos \ Foto: Relatório Rand Corporation

O presidente Aleksandr Lukashenko pertence ao pequeno clube de governantes, do qual Jair Bolsonaro faz parte, que atuaram como negacionistas da pandemia de Covid-19. O bielorrusso declarou em abril de 2020 que vodka e sauna previnem a Covid-19. Há 27 anos no poder, ele é chamado pela mídia corporativa do Ocidente de o “último ditador da Europa”. No entanto, ao contrário do brasileiro, Lukashenko vem procurando garantir a soberania do país e proporcionar condições de vida satisfatórias à população.

Sua vitória na eleição presidencial de agosto de 2020 para um sexto mandato levou a denúncias de fraude e ao estabelecimento de sanções econômicas contra o país. As críticas aumentaram em maio de 2021, quando um avião da empresa irlandesa Ryanair foi forçado a descer no aeroporto da capital Minsk para que fosse detido o jornalista Roman Protasevich.

Desde então, o regime de Lukashenko vem enfrentando o acirramento dos protestos de setores da população e o aumento das sanções externas. O que a mídia ocidental vem omitindo, é que Protasevich era mais que um jornalista apenas empenhado na defesa dos direitos humanos. Ele já atuara como combatente no Batalhão Azov, a milícia neonazista ucraniana, contra os separatistas pró-Rússia da região do Donbas. E atualmente Roman é um ativista político engajado na derrubada do regime.

Michelle Bachelet, Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, denunciou em 15 de julho a prisão de opositores do governo bielorrusso, bem como invasões de escritórios de ONGs, de associações de jornalistas e de movimentos de oposição.

Para a Rússia, a desestabilização do país vizinho traz problemas de segurança, e poderia exacerbar as já difíceis relações com o Ocidente, avalia Ivan Timofeev, analista do think tank russo, Valdai Club.

No xadrez da geopolítica da Europa Oriental, as peças representadas pela Ucrânia e pela Moldávia já foram perdidas pela Rússia através de ações de guerra híbrida orquestradas principalmente por Washington e Londres. A queda da Bielorrússia colocaria um regime simpático à OTAN a cerca de 450 km de Moscou.

Qual é a história que a mídia não divulga sobre os protestos que nos últimos 12 meses vêm desestabilizando o país, e que levaram às recentes ações repressivas contra opositores, condenadas veementemente por Bachelet? E como a Rússia irá reagir se o Ocidente impuser uma revolução colorida para depor Lukashenko?

A integração da Bielorrússia com a Rússia

A Bielorrúsia era uma das 15 repúblicas da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, extinta em 1991. No poder desde 1994, Lukashenko tinha um pacto não explicitado com a população, em que esta usufruía de um estado de bem-estar social, enquanto abria mão de uma democracia no estilo ocidental.

Desde 1999, portanto oito anos após o fim da URSS, o país está envolvido em difíceis negociações com a Rússia visando uma ampla integração dos dois países, formando a União de Estados. Na ocasião da assinatura do tratado de intenções, Lukashenko já estava na presidência, enquanto Putin era o primeiro-ministro russo, em vias de assumir a presidência, em substituição a Boris Iéltsin.

De acordo com o relato da agência Tass, a criação de uma União de Estados entre a Federação Russa e República da Bielorrússia implica no estabelecimento de estruturas supranacionais, incluindo o parlamento bicameral, uma Constituição, corte de justiça, câmara de arbitragem, além de moeda única, sistemas energéticos unificados, sistema único de impostos e compatibilidade das políticas de comércio e aduaneiras.

Lukashenko vem procurando preservar os interesses e a soberania da Bielorrússia nas duras negociações com a Rússia. No início de 2021, permaneciam ainda cerca de 6 ou 7 questões a resolver, segundo a Tass.

Dentre as demandas de Minsk ainda pendentes de aceitação por Moscou estão preços mais baixos para o gás russo, compensações por perdas e a remoção de restrições a produtos da Bielorrússia.

Em outro artigo, Timofeev avalia que as sanções impostas pelo Ocidente podem enfraquecer a posição da Bielorrússia, forçando-a a fazer concessões nas negociações atuais, em troca de um apoio emergencial de Putin. No entanto, até o momento, Lukashenko vem mantendo suas condições para ir adiante com a integração, pelo menos nas declarações públicas.

O início da guerra híbrida contra a Bielorrússia

Um relatório de 2019 da Corporação Rand, um think tank financiado em grande parte pelas forças armadas norte-americanas, analisa as vantagens geopolíticas e ideológicas de se tentar “promover a mudança de regime na Bielorrússia”, dando apoio à oposição. Entretanto, o relatório menciona também que a população estaria menos interessada em liberdade do que em melhores condições vida.

O relatório cita uma pesquisa independente conduzida em 2015, que revelou que 70% dos entrevistados não queriam uma revolução no estilo da que havia ocorrido na Ucrânia em 2014. E que 78% não querem que ocorra derramamento de sangue no país.

Para os analistas da Rand, mesmo que as tentativas de se mudar o regime falhassem, haveria ganhos políticos por forçar Moscou a se sobrecarregar ao “empregar recursos – inclusive militares – para preservar sua posição na Bielorrússia. Os EUA e seus aliados europeus responderiam, então, com o endurecimento das sanções”. No entanto, “haveria o risco de ocorrer a deterioração geral do ambiente de segurança na Europa, o que representaria um revés para a política dos EUA”, avalia o relatório.

Segundo relato no Covert Action Magazine, interferências do Ocidente em questões internas da Bielorrússia vem ocorrendo desde 2016.  Um dos recipientes dos financiamentos para desestabilizar o regime bielorrusso foi o canal de televisão Belsat, baseado na Polônia.

Tanto a Polônia como a Lituânia são favoráveis à presença de tanques dos EUA no leste Europeu, posição que não é compartilhada pela Bielorrússia. Segundo Andrey Sushentsov, analista do Valdai Club, a competição estratégica entre a OTAN e a OTSC, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva, levaria ao aumento – indesejável para Minsk – da presença militar russa na região, e à escalada de tensões.

Sushentov avalia que a crise econômica de 2014 e a queda do preço do petróleo afetaram fortemente a economia Bielorrússia, dependente do mercado russo. Neste contexto de taxas de crescimento baixas, ou mesmo negativas, diminuiu o apoio ao governo, com a queda no padrão de vida da população.

A oposição liberal aproveitou para contestar a estratégia de promover a integração com a Rússia, acusando ainda o governo de fazer concessões a Moscou em troca de apoio na crise econômica e política. Este era o clima interno do país em 2020, ano eleitoral

As eleições presidenciais de agosto de 2020

Durante a campanha, a liderança bielorrussa teria cometido um erro político, segundo sustenta Sushentsov em outro artigo, ao adotar a narrativa de que o país se encontrava sitiado pela Rússia.

Em um confuso incidente ocorrido poucas semanas antes das eleições, 33 russos – supostamente mercenários – foram detidos nas proximidades da capital Minsk. Dentre as muitas versões difundidas, incluía-se a de que o grupo pretendia fazer atos de provocação com o intuito de causar tumultos em massa.

Por alguns dias, o presidente fez uso de retórica anti-russa, para depois retomar o tradicional discurso da amizade entre os dois países. No entanto, Lukashenko pode ter contribuído para causar desorientação em seus eleitores, avalia Sushentsov. Os resultados das eleições de agosto, que indicaram a vitória de Lukashenko para um sexto mandato, foram contestados no Ocidente.

A candidata da oposição, Svetlana Tsikhanouskaya, buscou refúgio na Lituânia, na sequência da repressão aos manifestantes que protestaram contra o que alegam terem sido eleições fraudulentas. Tsikhanouskaya concorrera à presidência em substituição a seu marido, Sergei, que fora impedido de se candidatar e se encontra preso.

protests against Lukashenko after the presidential elections of August 2020
Protestos contra Lukashenko em Minsk, setembro de 2020 \ Foto: AFP

Em abril de 2021, os EUA aplicaram sanções a nove empresas estatais, enquanto Tikhanovskaya conclamou o congresso norte-americano a apoiar organizações da sociedade civil e veículos de mídia de oposição.

A pegadinha que expôs as ações subversivas de Washington

Duas pessoas brincalhonas enganaram altos funcionários da National Endowment for Democracy (NED), órgão do governo norte-americano ligado a CIA, que financia atividades visando mudança de regime em países-alvo.

A coordenadora sênior da NED para a Europa, Nina Ognianova, e o presidente da instituição, Carl Gershman, foram enganados e levados a pensar que estavam conversando ao telefone com a líder oposicionista Svetlana Tsikhanouskaya (acesse o vídeo com a gravação).

Nas conversas que ocorreram em 17 de maio deste ano, ambos falaram abertamente do envolvimento da NED no financiamento e treinamento da oposição bielorrussa. Mencionaram também os apoios dados a sindicatos independentes, jornalistas, e as relações estabelecidas com o setor privado. Mais detalhes da pegadinha são apresentados no artigo de Ben Norton, no The Grayzone.

O desvio do voo 4978 da Ryanair

Em 23 de maio, um avião da empresa irlandesa Ryanair, ao sobrevoar o espaço aéreo da Bielorrússia, foi desviado de sua rota e forçado a pousar em Minsk, quando então foram detidos o jornalista Roman Protasevich e sua namorada. A aeronave estava no trajeto de Atenas para Vilnius, na Lituânia, base do governo paralelo de Tikhanovskaya.

aircraft with Protasevich diverted to Minsk
Rota do avião com Protasevich desviado para Minsk \ Arte editada: BBC 

Embora a detenção de Protasevich tenha sido discricionária, por outro lado pode-se argumentar que não foram realmente violadas normas internacionais.

O desvio do curso do voo e a prisão de Protasevich receberam o repúdio unânime da mídia do Ocidente, cuja memória seletiva convenientemente se esqueceu de mencionar um precedente bem mais sério, que realmente violou normas internacionais.

Em 2013, o avião que conduzia o presidente boliviano Evo Moralez de Moscou a La Paz fora proibido de sobrevoar o espaço aéreo de vários países europeus, e teve que permanecer por horas no aeroporto de Viena. A intenção dos países da OTAN era a de capturar Edward Snowden, responsável pelo vazamento de informações secretas da NSA (a Agência Nacional de Segurança norte-americana). No entanto, Snowden não se encontrava a bordo.

Mas quem é realmente Roman Protasevich?

Ele é apresentado na mídia ocidental como um heróico defensor de direitos humanos, atuando contra a brutal ditadura de Lukashenko. Entretanto, no mesmo artigo do The Grayzone, Ben Norton apresenta uma faceta menos conhecida do jornalista.

Protasevich trabalhou na Rádio Europa Livre/Rádio Liberdade fundada pela CIA, originalmente um veículo de propaganda contra a União Soviética, e agora atuando contra a Rússia.

Do exterior, Protasevich organizou protestos e operações de desestabilização do governo bielorrusso. Ele trabalhou com a Rádio Européia para a Bielorrússia, um veículo de direita financiado pelos governos dos EUA, Polônia, Holanda e Lituânia. Na Polônia, Protasevich operou o canal Nexta, do Telegram.

Envolvimentos anteriores de Protasevich, também expostos no artigo The Grayzone,  mostram que ele não se limitou apenas a atividades de mídia e de propaganda política. Ele participou de operações militares do Batalhão Azov, a notória milícia neonazista ucraniana. Esta participação parece não ter se limitado ao serviço de imprensa da milícia. Um líder do Azov reconheceu publicamente que Roman atuou também como combatente.

Activist Roman Protasevich wearing combat uniform of neo-nazi Azov Batallion
Protasevich em suas atividades extra-jornalismo: no Departamento de Estado, Washington, em abril 2018/usando uniforme com a insígnia neonazista do batalhão Azov/na capa de uma publicação do Azov/com um rifle de assalto \ Fotomontagem: The Grayzone

Diversas fotos mostram Roman em uniforme militar, inclusive portando um rifle. Ele também aparece usando camisas com a suástica neonazista.  Segundo relatado no The Grayzone, o próprio Protasevich admitiu que passou 1 ano lutando contra forças pró-russas na região separatista do Donbas, ao leste da Ucrânia.

As novas sanções contra a Bielorrússia

Em 25 de maio, os líderes dos países da União Européia aprovaram uma resolução demandando a aplicação de novas medidas contra a Bielorrússia. Estas iriam desde sanções contra indivíduos, a medidas capazes de afetar a economia do país.

Outro analista do Valdai Club, Ivan Timofeev, considera que o Ocidente deveria ter o cuidado de não tornar o governo de Minsk muito dependente de Moscou, mas não foi isto que ocorreu, pois duras sanções foram impostas. Talvez tenha prevalecido a visão apresentada no relatório da Rand Corporation, de que haveria ganhos para o Ocidente em forçar Moscou a se desgastar no empenho de apoiar Lukashenko.

Em 21 de junho, os ministros de relações exteriores dos países da União Européia aprovaram em Luxemburgo as novas sanções contra a Bielorrússia. Segundo relato no Deutsche Welle, serão afetados importantes setores da economia, como as exportações de fertilizantes, a indústria do tabaco, produtos petrolíferos e petroquímicos, além do setor financeiro.

Estados Unidos, Canadá e Reino Unido também aplicaram novas sanções. Os EUA congelaram os bens de dezenas de funcionários do governo bielorrusso. Tikhanovskaya aproveitou para pedir pela libertação de presos políticos, inclusive de seu marido Sergei.

As duras sanções irão estimular uma maior integração dos sistemas de pagamento nas transações entre Minsk e Moscou, avalia Timofeev em outro artigo. Mas será provavelmente inevitável a queda no nível de vida dos bielorrussos, com efeito imprevisível na estabilidade do país.

Em face das novas sanções impostas pelo Ocidente, Putin já determinou em 15 de julho que o governo russo ajude a Bielorrússia. Moscou parece disposta a não permitir que o Ocidente tome sua torre de defesa no tabuleiro de xadrez.

Concluindo

A Rússia deverá continuar a garantir a estabilidade da Bielorrússia. E a população do país precisará encontrar formas de resolver seus problemas, sem interferência externa.

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

 

Presidente da Ucrânia aposta suas cartas em invasão russa?

Por Ruben Rosenthal

Se os russos intervierem, Zelensky tentará convencer o governo alemão a sustar o acordo do gasoduto Nord Stream 2. O novo gasoduto representará um baque devastador na economia da Ucrânia.

Ukrainian serviceman stands in position on the front line with separatists in Donetsk region on February 19, 2021.
Militar ucraniano na linha de frente em Donetsk,  fevereiro de 2021 \ Foto: Anatolii Stepanov / AFP via Getty Images

Relatos recentes sobre a crise na Ucrânia na mídia do Ocidente alertaram sobre o estacionamento de tropas russas na fronteira com a Ucrânia. BBC News: Acúmulo de tropas russas próximo à Ucrânia alarma a Otan. New York Times: Movimento de tropas russas e fala de intervenção causa apreensão na Ucrânia. Wall Street Journal: Imagens de satélite mostram expansão  da presença da Rússia na Ucrânia. 

A mídia do Ocidente especulou  sobre a motivação para as ações de Moscou. Testar a nova administração Biden? Desviar a atenção da prisão de Navalny? Forçar que a Ucrânia restabeleça o fornecimento de água a Criméia, cortado após a união com a Rússia? Ou seria uma retaliação pela perda de influência na Ucrânia? 

Repercutiu também na mídia ocidental a perturbadora previsão do “analista militar” russo, Pavel Felgenhauer, de que com a chegada das tropas russas à fronteira, a crise passou a ter potencial de escalar para uma guerra pan-européia ou mesmo para uma III Guerra Mundial.

Ainda no mês de abril, o cônsul ucraniano em São Petersburgo foi detido sob a acusação de receber informações secretas. As tensões aumentaram ainda mais com o anúncio da Rússia irá restringir por seis meses a navegação no Mar Negro para navios de guerra estrangeiros, com início em 24 de abril.

A atual crise mantém aceso o pavio do conflito iniciado com a revolução colorida de Maidan em fevereiro de 2014 – apoiada pela governo de Barack Obama, e que afastou Viktor Yanukovych, o presidente eleito da Ucrânia. Como reação, vieram na sequência o referendo pró-Rússia na Criméia e os movimentos separatistas na região do Donbass, no leste do país. Desde então já ocorreram cerca de 13.000 mortes nos confrontos de forças de Kiev com os separatistas.

Embora nos últimos dias Putin tenha anunciado a retirada de tropas da fronteira, não há sinais de que a crise tenha se esvaziado. O governo de Kiev vem se recusando sistematicamente a respeitar o Protocolo de Minsk, que deveria levar a um cessar-fogo permanente e à autonomia política do Donbass.

Quando não houver menção em contrário, as análises apresentadas  neste artigo foram extraídas da entrevista concedida pelo analista internacional Mark Sleboda, sediado em Moscou, para a jornalista Anya Parampil, do The Grayzone.

Região do conflito separatista do Donbass
O mapa mostra as regiões sob controle dos separatistas (região hachurada direita) e do governo central, em Luhansk e Donetsk

Ucrânia, um país com profundas divisões históricas

Os ucranianos do oeste do país têm um forte sentimento anti-russo; sua história passa pela Comunidade Polaco-Lituana e pelo Império Austro-Húngaro. Durante a II Guerra Mundial houve colaboração com os nazistas e com o holocausto. Já o leste da Ucrânia, juntamente com a Bielorússia, tem um forte vínculo histórico e cultural com a Rússia, incluindo o uso da mesma língua. Estas divisões históricas se refletiram no mapa dos resultados eleitorais das últimas duas décadas.

Em comum, tanto no leste como no oeste do país, é a forte a influência política dos oligarcas. Ao contrário do que aconteceu na Rússia, onde Putin restringiu a ação dos oligarcas ao campo econômico, afastando-os de interferência na política, na Ucrânia umas poucas famílias dominam a política, controlando os partidos políticos. E isto não mudou com o Maidan.

Maidan, revolução colorida ou golpe?

O presidente Viktor Yanukovych, eleito democraticamente em 2010, era corrupto como corruptos foram todos os seus antecessores. Ele era um líder oriundo da região de Donbass, leste da Ucrânia. Quando procurou um acordo econômico com a União Européia, a contrapartida exigida foi uma terapia de choque neoliberal, que incluía privatizações em massa e alto desemprego, segundo Mark Sleboda.

Ele então tentou obter uma compensação de pelo menos 15 bilhões de dólares para aliviar os efeitos da “terapia”, sem nada conseguir. Com a economia em má situação, Yanukovych procurou os russos, atraindo desta forma a ira dos Estados Unidos, ainda segundo Sleboda,  Seu governo foi então derrubado em fevereiro de 2014, a partir dos protestos iniciados na Praça Maidan, pelo chamado Movimento Euromaidan. 

Após a tomada do poder, as novas autoridades baniram o partido Comunista e todos os partidos de esquerda do país. A intenção era de reorientar a geopolítica da Ucrânia a favor do Ocidente. Para tanto, era necessário derrotar a representação política do leste da Ucrânia, pró-Rússia, através de uma aliança de liberais pró-Ocidente com os ultra-nacionalistas fascistas, que consistiam a vanguarda do Maidan. 

Na sequência da deposição do presidente ocorreram dezenas de milhares de deserções de militares para o Donbass ou para a Criméia. De acordo com o analista russo Ruslan Pukhov, diretor do Centro para Análises de Estratégias e Tecnologias e editor do jornal Moscow Defense Brief, os militares russos conseguiram convencer oitenta por cento das forças ucranianas na Criméia a desertar. 

Em março de 2014, a população da Criméia votou por avassaladora maioria (96,8%) pela união com a Rússia. Em abril, as regiões administrativas de Donetsk e Luhansk que constituem o Donbass, se proclamaram repúblicas independentes.

Ainda em abril, Kiev enviou tropas para o leste da Ucrânia, colocando o país a beira de uma guerra civil generalizada. Para tentar encerrar o conflito, em 2 de setembro de 2014 foi assinado um acordo entre o regime de Kiev e as autoridades políticas do Donbass.

O Protocolo de Minsk       

Esperava-se chegar à reconciliação política através de uma série de etapas que conduziriam a eleições livres, à  concessão de autonomia política ao Donbass, e ao controle por Kiev da fronteira com a Rússia. As negociações ocorreram na Biolorússia, monitoradas por observadores da OSCE (a Organização para a Segurança e Cooperação Européia), tendo como garantidores, França, Alemanha e Rússia.

O acordo deveria também incluir uma ampla anistia a todos os envolvidos no conflito, bem como o desmantelamento das organizações paramilitares de extrema direita que participaram do Maidan, e que também se envolveram nos confrontos no Donbass. 

Kiev não implementou quaisquer destas medidas, de forma que o conflito armado permanece. Para Mark Sleboda, a liderança de Kiev não tem a menor intenção de se encontrar com as autoridades políticas do Donbass, até porque sua própria legitimidade poderia ser colocada em questão. Entretanto, o protocolo de Minsk permanece como base para um acordo futuro.

Ukraine's President Volodymyr Zelenskiy visits positions of armed forces in Donbass region
Zelensky visita tropas na frente do Donbass, Ucrânia 9 de abril 2021. Serviço da Imprensa Presidencial / EPA

O governo Zelensky

Em 2019 foi eleito o comediante Volodymyr Zelensky para a presidência da Ucrânia, apoiado pelo oligarca Ihor Kolomoisky. Saiu derrotado por larga margem o então presidente e também oligarca, Petro Poroshenko.  Zelensky não conseguiu diminuir a corrupção no país, nem terminar a guerra no Donbass, como também fracassou no combate a pandemia do coronavírus. Ele está confrontando a corte constitucional do país para tentar impor as draconianas reformas requeridas pelo FMI.

Sua taxa de aprovação baixou de 75 para 30%, assim como a popularidade de seu partido, “Servidores do Povo”. Por outro lado, o partido mais popular do país atualmente é o que representa o leste da Ucrânia, “Plataforma de Oposição – Pela Vida”, também liderado por um oligarca – Viktor Medvedchuk.

Zelensky então fechou veículos de mídia, incluindo estações de TV, e está processando Medvedchuk por traição. Tudo para impedir o ressurgimento da oposição política no leste da Ucrânia.

Motivações dos EUA: geopolítica e o gasoduto Nord Stream 2

A administração Biden pode estar apoiando o acirramento da crise, mesmo ao custo de muitas vidas serem perdidas na Ucrânia, acredita Sleboda. Os EUA trouxeram recentemente para Odessa 350 toneladas de equipamentos militares, aumentando as tensões.

O aumento da influência política do leste da Ucrânia representa ao mesmo tempo o aumento da influência russa. Esta mudança geopolítica é algo que certamente a admistração Biden gostaria de evitar. Por outro lado, aos EUA interessaria controlar a segurança energética da Europa e, para tanto, a questão do gasoduto Nord Stream 2 é fator determinante.

Trata-se do segundo gasoduto ligando Rússia e Alemanha, e que possibilitará também a distribuição de energia a outras partes da Europa. Estando praticamente concluído, ele passa sob o Mar Báltico, dispensando as atuais linhas terrestres que atravessam a Ucrânia e Polônia, construídas ao tempo da União Soviética. Estas linhas possibilitaram que por anos Kiev exercesse pressão política sobre a Rússia.

Não apenas Kiev, mas também a Polônia e os Países Bálticos se aliaram aos EUA para impedir a implementação do Nord Stream 2. Os norte-americanos estão impondo sanções às empresas russas e alemãs envolvidas na construção do gasoduto. Empresas de energia européias que investiram na obra também sairiam prejudicadas.

As acusações contra a Rússia, de ter usado o agente neurológico novichok contra o opositor de Putin, Alexei Navalny, foram utilizadas sem sucesso para convencer a Alemanha a cancelar o gasoduto.  

Motivações da Rússia: ofensivas ou defensivas?

Para a Rússia, é de máxima importância a segurança das centenas de milhares de cidadãos do Donbass que têm dupla nacionalidade, bem como a dos 2 a 3 milhões de refugiados do leste da Ucrânia que acolheu quando os conflitos irromperam. Atualmente, como não existe fronteira entre a Rússia e o Donbass, seria muito mais fácil para a Rússia enviar tropas e armas para o leste Ucrânia do que para os EUA armarem o regime de Kiev.

Na primeira quinzena de março, Kiev começou a mover contingentes militares para a fronteira do Donbass, incluindo tanques, sistemas de artilharia, mísseis balísticos, bem como milhares de recrutas. Toda esta movimentação não foi noticiada na mídia do Ocidente, mas não passou despercebida em Moscou. Como dissuasão, a Rússia enviou cerca de 4 mil militares como parte de manobras na fronteira com a Ucrânia, acrescentando ao efetivo de 25 a 30 mil russos lá posicionados desde 2014.

O Centro para a Nova Segurança Americana (CNAS, na sigla em inglês), think tank em Washington, promoveu um debate no podcast Brussels Sprouts (Couve de Bruxelas) sobre o tema das tropas russas na fronteira com a Ucrânia. Os especialistas Michael Kofman e Maxim Samorukov admitiram que os efetivos russos colocados na fronteira com a Ucrânia não tinham uma postura ofensiva.

Sobre as opiniões alarmantes expressas por Pavel Felgenhauer, Sleboda as considera exageradas: “Felgenhauer não é especialista em estudos militares ou de segurança, embora ele se proclame um analista militar. A mídia ocidental recorre a ele quando quer apresentar pontos negativos, em geral falsos, sobre a Rússia”.

Motivações de Kiev: autopreservação do regime

Segundo Sleboda, o motivo real para Zelensky querer ampliar o conflito armado no leste da Ucrânia é fazer com que a Rússia intervenha para proteger o Donbass. A morte de milhares de recrutas ucranianos levaria provavelmente a um rompimento duradouro entre os dois países, o que seria no interesse de Kiev.

Ukrainian soldiers in a trench on the front lines facing Russian-backed separatists near the town of Zolote april 2021
Soldados ucranianos na trincheira, próximo à cidade de Zolote, no leste do país / Foto: AFP/Getty Images

Se os russos intervierem, Zelensky tentará convencer o governo alemão a sustar o acordo do gasoduto Nord Stream 2. O novo gasoduto representará um baque devastador na economia da Ucrânia. Cerca de 18% do orçamento nacional de Kiev é oriundo de taxas recebidas da Rússia e da Alemanha, pela passagem terrestre do gás em território ucraniano por meio das antigas linhas, que perderiam relevância.

O presidente e seu partido passam por uma fase de baixa aprovação. O acirramento da crise com a Rússia poderia trazer mais apoio popular, com um apelo ao nacionalismo extremado. Ao mesmo tempo, ele poderia reprimir a representação política da oposição política do leste do país.

Zelensky deve saber que não conseguirá recuperar o Donbass pela via militar, e provavelmente nem tem interesse nisto. Incorporar novamente ao país cerca de quatro a oito milhões de eleitores significaria fazer o pêndulo do poder político pender a favor dos ucranianos do leste, em um momento de baixa popularidade do presidente e de seu partido. 

Finalizando

Pode ser tentador para Zelensky apelar para um conflito militar interno para resolver seus problemas políticos e econômicos, quando muitas mortes de ucranianos poderiam ocorrer. Mas, mesmo considerando de um lado, o apoio do Ocidente e da Otan ao regime de Kiev, e de outro, o apoio ao Donbass pela Rússia, é bem pouco provável que a Rússia entre em conflito direto com os Estados Unidos e a Otan. A exceção seria caso a Ucrânia fosse incorporada à Otan, o que é inaceitável para Moscou. Resta ver se as tensões de abril irão retroceder ou inflamar a região.

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Envenenamento de opositor de Putin faz parte da guerra híbrida contra a Rússia?

Por Craig Murray, tradução de Ruben Rosenthal

Em um texto repleto de uma fina ironia, o ex-embaixador do Reino Unido e ativista de direitos humanos faz a pergunta essencial sobre o suposto envenenamento do oposicionista russo: Cui Bono (a quem interessa)?

prisão de navalny the guardian
Detenção de Alexei Navalny no protesto de maio de 2018 em Moscou    Foto: TASS / Barcroft Images

O artigo publicado no blogue Chacoalhando é uma tradução comentada por Ruben Rosenthal, do texto de 3 de setembro de 2020 de autoria de Craig Murray1, intitulado  “Novichok,  Navalny, Nordstream, Nonsense”. As palavras colocadas entre parênteses ao longo do texto foram acrescentadas pelo tradutor.

Segundo o analista político Mark Sleboda, Alexei Navalvy é considerado no Ocidente como líder da oposição, mas isto talvez seja dar a ele um crédito que não possui em seu país, pois as pesquisas de opinião costumam indicar que sua aprovação é em torno de 2%. Ele tem uma posição “liberal pró-Ocidente, ultranacionalista de direita, racista, e islamofóbica”.

Navalny começou a a passar mal em um voo de Tomsk, na Sibéria, a Moscou. O avião foi redirecionado para Omsk, para um atendimento de emergência no hospital local. Seus apoiadores levantaram suspeitas que ele fora envenenado ainda no aeroporto em Tomsk, ao tomar uma xícara de chá. A Rússia foi pressionada para autorizar que Navalny fosse transferido para um hospital na Alemanha, o que veio a ocorrer em poucos dias.

Craig Murray: Se Putin quisesse matar Navalny, ele já estaria morto

Com a chegada de Navalny a Berlim, era apenas uma questão de tempo antes que saísse a declaração que extasiou os “russofóbicos” (do periódico britânico The Guardian), de como (o oposicionista russo) havia sido envenenado com o agente neurotóxico novichok. Isto naturalmente elimina qualquer vestígio de dúvida sobre o que aconteceu com os Skripals2, e prova que a Rússia deve ser isolada e submetida a sanções até sucumbir, e que nós (britânicos) devemos gastar bilhões em armas e serviços de segurança. Devemos também aumentar a vigilância interna e reprimir opiniões dissidentes na internet. Também fica assim provado que Donald Trump é um fantoche russo e que o Brexit é uma conspiração russa.

Eu irei provar com toda certeza que sou um troll (provocador) russo por fazer a pergunta: Cui Bono? (a quem interessa?), e (por este motivo fui) desmascarado de forma brilhante3 pela “Iniciativa Integridade”, de Ben Nimmo4, como uma evidência concreta da influência russa.

Devo declarar que não tenho qualquer dificuldade em aceitar que um oligarca poderoso ou algum órgão do Estado russo possa ter tentado assassinar Navalny. Ele causa (apenas uma) pequena irritação, sendo bem mais famoso aqui (no Reino Unido) do que na Rússia; mas não representar uma grande ameaça não protege ninguém contra assassinato político na Rússia.

Mas eu realmente tenho dificuldade com a noção de que Putin ou outros russos do alto escalão quisessem Navalny morto. Se assim fosse, o opositor russo não teria sobrevivido a um ataque quando estava na Sibéria, e não estaria hoje na Alemanha. Se Putin quisesse matar Navalny, ele já estaria morto.

Craig Murray: o agente neurotóxico novichok não parece ser indicado para assassinatos

Vamos primeiro tratar da arma usada no ataque. Algo que sei com certeza é que o agente neurotóxico novichok não parece ser indicado para assassinatos. A coitada da Dawn Sturgess5 se trata da única pessoa que foi alegadamente morta com novichok, mas de forma acidental segundo a narrativa oficial. Os Skripals, que seriam o verdadeiro alvo, não morreram. Se Putin quisesse ver Navalny morto, ele tentaria algo que funcionasse, como uma bala na cabeça ou um veneno letal.

Novichok não é um produto químico específico. Trata-se de um tipo de arma química projetada para ser improvisada em campo, partindo de precursores6 domésticos ou industriais. Faz algum sentido usá-la em solo estrangeiro, já que não seria necessário transportar o agente de nervos já pronto, e é possível se adquirir localmente os ingredientes (necessários). Mas não faz qualquer sentido (usá-lo) na própria Rússia, onde agentes da FSB ou GRU (inteligência russa) poderiam circular a vontade com qualquer arma mortal que desejassem, ao invés de ficar preparando armas neurotóxicas caseiras na pia. Por alguém faria isto?

Além disto, (a mídia corporativa) espera que acreditemos que o Estado russo, tendo envenenado Navalny, então permitiria que o avião em que ele viajava em um voo doméstico fosse desviado para outro aeroporto, e fazer um pouso de emergência, de modo a permitir o atendimento de urgência no hospital. Se os serviços secretos tivessem envenenado Navalny ainda no aeroporto antes do embarque, conforme alegado, por que (as autoridades russas) não insistiriam que o avião permanecesse em sua rota original e deixar que Navalny morresse durante o voo? Era previsível o que ocorreria ao avião (a mudança de rota).

Em seguida, devemos acreditar que o Estado russo, tendo envenenado Navalny, não foi capaz armar sua morte na unidade de cuidado intensivo de um hospital estatal russo. E que o maligno Estado russo foi capaz de falsificar todos os testes de toxicologia e impedir que os médicos falassem a verdade sobre o envenenamento; mas que o mesmo Estado maligno não dispunha de poder para desligar o respirador por alguns minutos ou introduzir algo (mortal) no gotejamento do soro.

Devemos também acreditar que após envenenar Navalny com novichok, Putin permitiu que ele fosse para a Alemanha para ser salvo, o que possibilitaria a descoberta do uso do agente neurotóxico? E que Putin fez isto porque estava preocupado que Angela Merkel estivesse zangada, não compreendendo que ela ficaria ainda mais zangada quando descobrisse que ele, Putin, havia sido o responsável?

Existe esta série de pontos que são impossíveis de se acreditar, para que alguém possa aceitar como válida a narrativa apresentada no Ocidente. Pessoalmente não acredito em qualquer um destes pontos, mas então quem sabe eu seja um traidor pró-Rússia.

Crraig Murray: Os EUA querem impedir a conclusão do gasoduto Nord Stream 2

Os EUA querem impedir a conclusão do gasoduto Nord Stream 2, que irá fornecer gás russo para a Alemanha em uma escala massiva, suficiente para suprir 40% da geração de energia elétrica do país. Pessoalmente, eu sou contrário ao Nord Stream 2, por questões ambientais e estratégicas.

Eu preferiria bem mais que a Alemanha investisse sua formidável força em (energias) renováveis e auto-suficiência. Mas meus motivos são bem diferentes daqueles dos Estados Unidos, que estão mais preocupados em tomar o mercado europeu de gás liquefeito para a produção norte-americana e dos aliados do Golfo (Pérsico). Decisões-chave sobre a conclusão do Nord Stream 2 estão agora acontecendo na Alemanha.

E respondendo à pergunta “Cui Bono?” que fizera, Craig Murray acrescentou: “os Estados Unidos e a Arábia Saudita têm todos os motivos para instigar uma cisão entre Alemanha e Rússia neste momento. Navalny é certamente vítima da política internacional. Eu tendo a duvidar que ele seja uma vítima de Putin”.

Ao final do artigo, Murray fez um apelo por contribuições para arrecadar fundos para custear despesas legais, conforme se aproxima a data de seu julgamento pela acusação de desacato à Corte. Conforme relatado em artigo anterior do blogue, Murray será julgado por haver denunciado as armações feitas para incriminar o ex-primeiro-ministro da Escócia, Alex Salmond. O julgamento está marcado para outubro. Nas palavras de Murray, “o Reino Unido está tentando silenciar uma pequena bolha de dissidência, me encarcerando. Serei extremamente grato a quem puder contribuir para o fundo de defesa ou apoiar meu blog”.

Notas do Tradutor: 1

1. O escocês Craig Murray atuou como embaixador do Reino Unido em diversos países, até ser compulsoriamente afastado do Foreign Office, quando servia no Uzbequistão, por ter denunciado as torturas cometidas a mando do presidente Karimov. Murray atua como ativista de direitos humanos e é um vigoroso defensor da independência da Escócia.

2. No caso do envenenamento do ex-agente russo Sergei Skripal e de sua filha Julia com o uso do agente químico Novichok, o governo britânico acusou a Rússia de tentativa de assassinato, chegando a expulsar diplomatas. No entanto, foram levantadas suspeitas sobre o comportamento da BBC, cujo correspondente havia mantido reuniões secretas com Sergei Skripal poucos meses antes do incidente com o novichok. Questionada por Craig Murray, a BBC se recusou a dar explicações públicas.

3. Ben Nimmo e David Leask colaboraram em um texto de ataque pesado no Herald, identificando individualmente apoiadores do Partido Nacionalista Escocês como “bots/robôs russos”. Nimmo é o homem que declarou que quem faz uso da expressão “Cui bono” é um provável troll russo. Ele também acusou muitos apoiadores da independência da Escócia de serem trolls russos.

4. Ben Nimmo atua junto ao Digital Forensic Research Lab, do Atlantic Council. Ele é um analista de defesa e segurança internacional, especializado em desinformação e guerra híbrida. Em artigo anterior do blogue Chacolhando já foi abordado o papel nefasto que o Atlantic Coucil exerce em outros países, em defesa dos interesses econômicos dos Estados Unidos.

5. A inverossímil narrativa oficial do governo britânico para explicar a morte de Dawn Sturgess, foi de que os dois russos que envenenaram os Skripals fizeram uso do agente novichok em um frasco de perfume, que foi posteriormente selado com celofane, e colocado em uma cesta para caridade.

6. Em Química, precursor é todo composto que faz parte de uma reação química para formar novo composto.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Netanyahu, Trump e Putin: uma História de Amor

Tradução informal e comentada, do artigo publicado em 8 de abril no Al Jazeera, de autoria do analista sênior, Marwan Bishara. Ruben Rosenthal

Com os resultados finais da eleição para o parlamento de Israel indicando que o partido do atual primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu conseguiu 36 dos 120 assentos, tudo indica que ele será o líder do governo de coalizão da direita. Será seu quinto mandato, caso os problemas de corrupção não o impeçam de assumir. Com ele no poder, pode-se prever que em breve virá a anexação de parte da Cisjordânia. Odiado por muitos, por sua responsabilidade no sofrimento e nas mortes de milhares de palestinos desde que assumiu o governo em 2009, Bibi é reconhecidamente um magistral enxadrista em geopolítica. Marwan Bishara nos explica como atua o polêmico político.

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Podem chamar Netanyahu de trapaceiro e belicista, mas que outro líder pode se gabar de ter conseguido se reunir com Trump e com Putin no prazo tão curto de duas semanas antecedendo eleições gerais. A motivação imediata desta diplomacia foi certamente o ganho eleitoral, mas as implicações estratégicas de sua vitória podem resultar na reconfiguração do Oriente Médio. Breve deverá vir a anexação de partes da Cisjordânia, prometida na campanha eleitoral. E novamente Trump deverá dar seu apoio, e Putin, emprestar seu silêncio. Como isto foi possível?

Netanyahu aproveitou sua ida, em setembro de 2016, à reunião de cúpula anual das Nações Unidas em Nova Iorque, para um primeiro encontro, na Trump Tower, com o então candidato presidencial republicano. Segundo Steve Bannon, então conselheiro de Trump, o novato na política recebeu uma aula do mestre de xadrez da geopolítica mundial, particularmente sobre a importância das relações entre os Estados Unidos e Israel, face às realidades do Oriente Médio.

Netanyahu contribuiu para que Trump pudesse colocar de forma racional seus instintos sobre segurança, imigração, terrorismo, Islã, e mesmo as vantagens de um muro na fronteira (idéia que Trump deve ter aproveitado como sua ‘solução’ para a imigração através da fronteira com o México, N.T.). Mas a grande jogada de Netanyahu foi fazer o foco da conversa convergir para uma fórmula simples: ‘o Irã, e não a Rússia, é o principal inimigo’ de ambos, e que o presidente russo tem uma posição privilegiada na ajuda contra os aiatolás e o Islã radical.  Isto soou como música aos ouvidos de Trump, pois ele já vinha cortejando Putin, para horror de seus detratores em casa e na Europa. Graças a Netanyahu, Trump pôde se municiar de uma doutrina estratégica que envolvia forjar novas alianças e parcerias com lideranças fortes.

A nível pessoal, foi uma aliança tranquila de se estabelecer. Benjamin, Donald e Vladimir realmente pareciam se gostar. Com passados e estilos distintos, eles, no entanto, tem um mesmo perfil. Homens brancos, já de certa idade, adotando estereótipos do macho, nacionalistas1 com um traço de malignidade, os três são personalidades que polarizam. São vistos como enganadores, com um ‘jeitinho’ para agir com impunidade. Não gostam da liberdade de imprensa e de um judiciário independente e ativo.

O principal inimigo em comum do trio é nenhum outro que o ex-presidente americano Barack Obama, e tudo o que ele representava, seja o multiculturalismo, os ideais liberais e uma política externa liberal. Assim que assumiu a presidência, Trump começou a destruir o que Obama construiu no país e no exterior, sem se importar em violar leis e acordos internacionais, saudado por seus dois camaradas e por um número crescente de fãs pelo mundo. Ele deixou o Acordo de Paris e o acordo nuclear com o Irã, além de dar seu apoio incondicional aos mais repressivos regimes no Oriente Médio, dentre outros.  

O trio atraiu e inspirou uma nova cepa de líderes agressivos hiper-nacionalistas1 que veneram o poder, como Mohammed bin Salman, da Arábia Saudita, Abdel Fattah el-Sisi, do Egito, Viktor Orbán2 , da Hungria e Jair Bolsonaro, do Brasil.  Trump e Putin podem ser os líderes do grupo, mas foi Netanyahu,  o entusiástico apoiador desta nova leva de governantes (Haaretz), mostrando sua afinidade com os mesmos, contrariamente ao que se esperaria do líder de uma nação fundada por vítimas de perseguição étnica. 

Orban-Netanyahu-Israel-Hungary
Netanyahu e o húngaro Viktor Órban

Os três líderes procuraram substituir o pensamento progressista e o liberalismo pela plutocracia. Mas se o namoro3 dos três foi bem sucedido em gerar uma tendência mundial pelo populismo, por outro lado, não conseguiu produzir relações mais próximas e amigáveis entre os governos russo e norte-americano. Nem Trump nem Netanyahu conseguiram convencer o establishment da política externa americana a abraçar Putin, nem mesmo como forma de conter o Irã. Este país é visto como um ator de nível regional a ser combatido, mas Democratas e Republicanos consideram a Rússia como um perigoso inimigo global.  Isto porque a Rússia de Putin conseguiu retornar ao cenário da geopolítica internacional como um importante participante independente, em geral adversário dos Estados Unidos. Isto se tornou evidente com a intervenção na Ucrânia e na Síria, bem como no envio de tropas para a Venezuela, um desafio direto a Washington no Hemisfério Ocidental.

Esta é a tragédia da política do poder. Embora Trump e Putin pensem de forma semelhante, eles continuarão a competir em um mundo anárquico, mesmo com o risco de guerra. Seus países estão de lados opostos em quase tudo, incluindo guerra cibernética, proliferação nuclear, segurança regional na Europa e Oriente Médio, e, naturalmente, na questão da interferência russa nas eleições americanas. Mas eles concordam sobre Israel, ou pelo menos Putin e Trump concordam, e ambos simpatizam com Netanyahu.

Trump and Putin tiveram uma reunião de cúpula (em Helsinki, julho de 2018, N.T.), que terminou em relativo fracasso4 , além de quatro encontros curtos. Netanyahu teve cinco bem sucedidas reuniões com Trump em dois anos, e treze bem sucedidas reuniões com Putin em quatro anos. O primeiro-ministro persistiu em cultivar relações próximas com Putin, porque a Rússia é a única potência que tem diálogo aberto com cada um dos atores principais no Oriente médio, incluindo o Hamas e o Hezbollah, e mesmo com rivais regionais, como Irã e Arábia Saudita, além de Turquia e Egito.

Netanyahu soube explorar o interesse da Rússia de que Washington voltasse a reconhecer seu status de superpotência e suas áreas de influência, fazendo uso de sua relação especial com Trump, para com isto conseguir concessões de Putin, começando pela Síria. Parecendo rapidamente esquecer do papel de Israel no episódio da derrubada de um avião militar russo com morte de 15 oficiais, Putin concordou em estabelecer um grupo de trabalho com Israel visando a remoção de todas as forças estrangeiras da Síria. O presidente russo também aceitou as constantes violações do espaço aéreo da Síria por Israel e o bombardeamento de alvos iranianos lá.  O Kremlin ainda propôs a Netanyahu que ele mediasse um acordo entre Estados Unidos, Síria e Irã, para a retirada completa de tropas, mas como tal acordo levaria ao fim das sanções contra o Irã, Netanyahu se recusou.

Em algumas ocasiões, a atuação diplomática de Netanyahu se aproximou de um jogo de pôquer, mas que conseguiu obter de Trump o reconhecimento da anexação das Colinas de Golã por Israel, em desrespeito à legislação internacional e à política tradicional do país. Aparentemente, Putin não fez nada e deixou esta questão passar em branco quando se reuniu com Netanyahu.

Se para obter a adesão de Putin um flerte prévio foi necessário, Netanyahu não poderia ter sonhado em melhor parceiro na Casa Branca que Trump. Este abraçou completamente as posições de Israel no Irã, e a ocupação de Jerusalém5 e das Colinas de Golã. Em breve deverá vir a anexação de parte da Cisjordânia, conforme promessa de Netanyahu caso ganhasse as eleições. E novamente Trump deverá dar seu apoio e Putin emprestar seu silêncio. Desta forma o primeiro-ministro de Israel vem conseguindo redefinir as fronteiras e as alianças no Oriente Médio.

Notas do Tradutor

Pequenas modificações foram introduzidas no artigo, sejam explicativas (indicadas por N.T.), ou como forma de tentar agilizar à leitura de um texto longo, incluindo a supressão de algumas partes, sem com isto afetar as opiniões expressas pelo autor. O tradutor apresenta a seguir alguns comentários adicionais, observando-se a correspondência no texto com a numeração sobrescrita. 

  1.  O termo ‘nacionalismo’ pode ter conotações diferentes, dependendo do período e do país. As idéias nacionalistas já estiveram associadas  com teorias racistas no século XX, como na Alemanha (nacional-socialismo), na Itália (fascismo) e no Japão. No artigo, Marwan Bishara se refere a este nacionalismo que, ao exaltar de forma exacerbada os valores da pátria, se afasta do internacionalismo, entendido como uma política de cooperação entre as nações, podendo com isso levar ao xenofobismo.  Após a II Guerra Mundial, o nacionalismo que se manifesta em países do Terceiro Mundo está principalmente relacionado com a luta contra todas as formas neocolonialistas de exploração, embora a exaltação da pátria estava presente no Brasil do ‘ame-o ou deixe-o’, na época da ditadura militar, e reaparece no governo Bolsonaro, por exemplo, quando se exige dos alunos nas escolas públicas e privadas que cantem o hino nacional, ou se afastando da integração regional ao diminuir a prioridade do Mercosul. 
  2. O presidente da Hungria, Viktor Orbán, apoiado entusiasticamente por Netanyahu, é um político da extrema-direita, que defende e representa posições próximas às dos nazistas. Órban se omitiu quanto ao crescimento do antissemitismo no país, e até deu sua contribuição, com as críticas feitas a judeus proeminentes, além das declarações  xenófobas e racistas de seu partido  a refugiados.  
  3. Na tradução foi utilizado o termo ‘namoro’, para definir o relacionamento de Netanyahu com Putin e Trump, em substituição a ‘bromance’, expressão da língua inglesa que une as palavras brother e romance, para expressar  um relacionamento íntimo, não-sexual, entre dois (ou mais) homens.  
  4. Bishara não enumera que objetivos poderiam ter sido alcançados na cimeira de Helsinki para ela haver terminado em ‘relativo fracasso’.  Benjamim Netanyahu saudou as relações de Israel com a Rússia e Estados Unidos, após Trump e Putin declararem no encontro que a segurança do Estado Judaico fora discutida pelos dois presidentes. Do ponto de vista de Israel, as reuniões aparentemente trouxeram bons resultados. Vale lembrar ainda, que foi na cimeira de Helsinki que Trump criticou a comunidade de inteligência norte-americana (CNN), por esta afirmar que a Rússia havia intervindo nas eleição de 2016 que o conduzira à presidência. À esta declaração de Trump apoiando abertamente a Putin, líder de uma nação adversária, seguiu-se intenso bombardeio de críticas da mídia e do Partido Democrata, de Hillary Clinton. Ao final do encontro, ambos os líderes consideraram que a reunião fora ‘bem sucedida’, talvez por ter contribuído para cimentar as relações pessoais entre os dois.
  5. Na questão do expansionismo sionista, o relacionamento pessoal do presidente norte-americano com o líder israelense não deve ter sido decisivo no reconhecimento por Trump, da anexação de Jerusalém por Israel. Tal posicionamento decorreu principalmente das pressões dos evangélicos fundamentalistas (GGN), e do interesse de Trump  nos ganhos eleitorais que poderia obter com o apoio do  lobby evangélico.