O Retorno do Vírus Frankenstein

Por Ruben Rosenthal

Agora existe a possibilidade de criaturas microscópicas serem produzidas em laboratórios avançados, criadas por cientistas que poderão desencadear forças que não sejam capazes de controlar.

Ilustração digital do vírus da Covid-19
Ilustração digital do vírus da Covid-19 \ Arte: Andriy Onufriyenko / Getty Image

O Retorno do vírus Frankenstein parece um nome sugestivo para um filme B róliudiano. No livro da autora Mary Shelley, de 1818, o dr. Frankenstein deu vida a uma criatura em seu laboratório, juntando partes de diferentes corpos humanos e fazendo passar uma forte descarga elétrica. Mas o cientista arrogante desencadeou forças que não conseguiu controlar, e não teve um final feliz e glorioso.

O filme de 1931, com Boris Karloff no papel da criatura produzida em laboratório, se tornou um cult do terror. Na minha infância, assistir ao filme me fazia ver à noite, estranhas e ameaçadoras sombras na parede do meu quarto.

Agora existe a possibilidade de criaturas microscópicas serem produzidas em laboratórios avançados, criadas por cientistas que poderão desencadear forças que não sejam capazes de controlar.

Existe a suspeita de que o vírus SARS-CoV-2, causador da Covid-19, foi produzido em um laboratório na China, com a colaboração de pesquisadores e verbas dos EUA. Em março de 2018, foi apresentada pela EcoHealth Alliance (EHA), pesquisadores do Instituto de Virologia de Wuhan e da Universidade da Carolina do Norte uma solicitação de fundos à agência de pesquisa do Departamento de Defesa dos EUA.

O projeto consistia em alterar o código genético dos coronavírus de morcegos para inserir precisamente uma característica que faz parte do vírus SARS-CoV-2, conforme relatado em artigo dos professores Jeffrey Sachs e Neil Harrison, ambos da Universidade de Columbia. Embora a verba não tenha sido aprovada, a pesquisa pode ter prosseguido através de outros apoios financeiros.

Pesquisas de Ganho de Função

Nos estudos de ganho de função, vírus, bactérias ou outros patógenos são criados em laboratório, visando alcançar uma atividade maior que aquela observada na natureza, se tornando mais fatais ou contagiosos. A justificativa para tais pesquisas seria criar, preventivamente, novas vacinas e tratamentos, antecipando o surgimento por mutação de cepas mais potentes de um determinado patógeno. No entanto, caso escapassem do laboratório, algumas formas devastadoras de vírus poderiam se disseminar pelo mundo .

Tais tipos de estudo foram conduzidos há cerca de 10 anos com o vírus influenza H5N1, com fundos dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), setor do governo estadunidense responsável pelo financiamento da pesquisa biomédica.

Em 2014, o governo norte-americano baniu temporariamente pesquisas de ganho de função no vírus da gripe, e nos coronavírus MERS e SARS. O banimento foi suspenso em 2017, quando foram emitidas pelo DHSS, o Departamento de Saúde dos EUA, diretrizes para pesquisas envolvendo patógenos que apresentem risco potencial de causar pandemias, mas faltaria supervisão e fiscalização, e mesmo compreensão dos riscos envolvidos, por parte dos pesquisadores, segundo relatado em artigo no New York Times.

Um artigo publicado na Time,em outubro de 2022, relata a controvérsia gerada com a pré-publicação (preprint) por  cientistas da Universidade de Boston, do experimento no qual alteraram a variante Omicron do vírus da Covid-19.  A universidade alegou, no entanto, que as pesquisas não envolveram ganho de função e que a versão criada do vírus era 20% menos letal em ratos de laboratório do que a cepa original. Além disso, segundo o comunicado, não haviam sido utilizadas verbas do governo federal, e por este motivo não seria necessário notificar o NIH.

Nas palavras do professor David Ho, professor de microbiologia e imunologia da Universidade de Columbia, “existe uma área cinzenta no que diz respeito à fiscalização deste tipo de pesquisa”. Ele considera que a pesquisa da Universidade de Boston está no limite de ser caracterizada como ganho de função. As instruções para os cientistas de quais são estes limites não estão claras. Acrescente-se que se as pesquisas não forem financiadas pelo governo elas não precisam seguir as regras oficiais.

Ainda segundo o New York Times, a própria Federal Drug Administration (FDA), que é responsável pelo controle de alimentos e de setores da saúde nos EUA, parece ter apoiado pesquisas situadas nesta zona cinzenta. Em setembro de 2022, cientistas da instituição publicaram um artigo em que descrevem experimentos conduzidos em ratos, quando foi introduzido o coronavírus que fora manipulado para carregar a proteína spike da variante Omicron.

A agência alegou que não se tratou da criação de um vírus novo, e assim não estaria sujeita às diretrizes. No entanto, na opinião de especialistas independentes, mesmo se a intenção dos pesquisadores não é criar um vírus mais perigoso, a experiência não poderia passar por cima dos procedimentos de aprovação. Experimentos desta natureza foram feitos em outras universidades dos EUA.

A Pfizer na berlinda 

A poderosa farmacêutica Pfizer virou a bola da vez da controvérsia sobre pesquisas de ganho de função. A Pfizer teria planejado conduzir  pesquisas de manipulação genética no vírus SARS-CoV-2, para criar vírus mais potentes.  A motivação da farmacêutica seria manter a dianteira na disputa pelo desenvolvimento de vacinas para a Covid-19, sabidamente a galinha dos ovos de ouro da empresa.

A controvérsia foi ainda maior porque a denúncia partiu do grupo de extrema-direita Projeto Veritas, através de uma gravação de vídeo em que um alto executivo da Pfizer aparenta reconhecer que a empresa discutira a possibilidade de realizar tais pesquisas.

O grupo estadunidense Veritas foi fundado em 2010 pelo ativista político James O’Keefe, e é conhecido por propagar desinformação e teorias conspiratórias, inclusive através de manipulação na edição de vídeos. Como não foi divulgada a íntegra da gravação, mas apenas dois vídeos editados, com cerca de dez minutos cada, fica impossível afirmar se ocorreu ou não qualquer deturpação no sentido das falas durante a edição. Assim, as revelações que constam da gravação deveriam ser vistas com muita cautela, mas não ignoradas, segundo  analistas do programa Rising, no The Hill, possivelmente o canal mais prestigioso no meio político norte-americano.

Apesar de faltar credibilidade ao Projeto Veritas, parece não haver dúvidas que Jordan Tristan Walker estivesse de fato ocupando, na ocasião da gravação, o cargo de Diretor de Operações Estratégicas em P&D da Pfizer. Isso porque, no comunicado emitido pela Pfizer, afirmando que “não realizou pesquisas de ganho de função ou de evolução”, a empresa não negou em momento algum que Walker ocupasse o cargo de diretoria que fora explicitado no vídeo da gravação.

Sem saber que estava sendo gravado durante uma conversa de mesa de com um jornalista que ocultara sua identidade, Walker fez declarações altamente controversas sobre pesquisas de manipulação genética que a Pfizer pretenderia realizar. Algumas declarações parecem mesmo sugerir que tais experimentos já estariam ocorrendo, embora em outros momentos Walker declare que ocorreram apenas discussões sobre o assunto.

Durante a conversa com seu colega de copo, Walker se mostrou bastante animado, parecendo já ter ingerido uma boa dosagem de álcool. Em dado momento, perguntado sobre o que a Pfizer está fazendo para otimizar as vacinas, a resposta foi: “Bem, uma das coisas que estamos explorando é porque não fazemos nós mesmos as mutações, de forma a que possamos  desenvolver preventivamente   novas vacinas…. Vai existir um risco.” E continuando: “Como você pode imaginar, ninguém quer empresas farmacêuticas fazendo mutações em vírus filhos da p***.”

O jornalista perguntou a Walker como as pesquisas seriam realizadas. A resposta foi: “Primeiro em animais vivos….Prometa que não vai contar a ninguém. O modo como estamos pensando  é colocar o vírus em macacos  e fazer com que eles  continuem se infectando uns aos outros….Para ser honesto, suspeito que foi  dessa forma que o vírus começou em Wuhan.”

Quando foi perguntado sobre pesquisas de ganho de função, Walker se mostrou desconfiado que pudesse estar sendo gravado, mas mesmo assim ele prosseguiu nos relatos, talvez incentivado pelo álcool.

Walker respondeu que “a Pfizer, definitivamente, não faz pesquisas de ganho de função, mas que atualmente há pesquisas em andamento sobre mutações de estruturas selecionadas, para ver se conseguimos torná-las mais potentes”.  E acrescentou:  “Não sei  como isso vai funcionar. É melhor que não ocorram mais surtos, porque….Jesus Cristo!”

Em dado momento, o jornalista se ausentou da mesa e entrou em cena o diretor do Projeto Veritas, James O’ Keefe, que confrontou Walker sobre a Pfizer querer esconder do público que está pretendendo fazer pesquisas de mutação genética.  Walker alegou que tinha inventado mentiras para impressionar seu acompanhante de mesa, no terceiro encontro que mantinham.

A entrada em cena de O’Keefe causou forte abalo em Walker. Suas reações passaram da surpresa inicial, à indignação, desespero, raiva, violência. Walker chegou a ligar para a polícia, mas o pessoal do Veritas não esperou pela chegada da polícia.

Alguém que assista aos dois vídeos pode se perguntar se tudo não passaria de um grande teatro, e que Walker pudesse ser, na verdade, um ator encenando o papel que lhe foi atribuído, em mais uma Fake News produzida pelo Projeto Veritas. No entanto, o comunicado da Pfizer não negou que Walker tivesse um cargo de diretoria na empresa.

Ainda sobre o comunicado da Pfizer emitido em 27 de janeiro, a empresa afirma que “não realizou pesquisa de ganho de função ou de evolução”, e que o trabalho de pesquisa conduzido visa avaliar rapidamente a capacidade de uma vacina existente de induzir anticorpos que neutralizem uma variante que possa causar preocupação.

A Pfizer ressaltou também que “vale a pena observar que o Projeto Veritas, embora afirme conduzir jornalismo investigativo, tem uma longo histórico de recorrer a táticas eticamente duvidosas e editar vídeos de forma enganosa, para se encaixar em uma narrativa conservadora”.

Em artigo anterior publicado no blogue Chacolhando podem ser acessados os links para a íntegra dos dois vídeos disponibilizados pelo Projeto Veritas, de onde foram tirados os trechos dos diálogos que constam do atual artigo.

E quanto a nós, expectadores de um seriado em que nossos destinos são decididos em reuniões secretas de empresas corporativas ou de órgãos de governos, só nos resta esperar pelo próximo episódio de O Retorno do Vírus Frankenstein?

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, no canal da TV GGN.

Covid-19: a ética de inocular o vírus em cobaias humanas

Por Ruben Rosenthal

Mesmo com a aprovação do estudo do Imperial College pela Autoridade de Pesquisa em Saúde do Reino Unido, os testes com o vírus ativo da Covid-19 em voluntários estão gerando forte controvérsia.

Testes de inoculação em cobaias humanas com o vírus Sars-CoV2 ativo
Testes de desafio em humanos com vírus da Covid-19 \ Foto: Sigrid Gombert/Getty Images

O Imperial College de Londres está selecionando voluntários para se submeterem em breve a ensaios clínicos de “desafio em humanos” com o vírus Sars-CoV-2. Neste tipo de estudo clínico o corpo humano é desafiado pela inoculação do vírus ativo, não atenuado1.  

Os experimentos incluem aplicar em pacientes saudáveis uma vacina ainda sem eficácia comprovada, e então infectar deliberadamente os voluntários. No entanto, mesmo com a aprovação do estudo do Imperial College pela Autoridade de Pesquisa em Saúde, os testes com o vírus ativo da Covid-19 em voluntários estão gerando forte controvérsia. 

Os médicos utilizarão o vírus original que circula no Reino Unido desde março de 2020, por existirem menos informações disponíveis sobre as novas variantes. A pesquisa irá avaliar o desenvolvimento de anticorpos e a resistência à evolução da doença. Segundo o líder da pesquisa, o Dr. Chris Chiu do Departamento de Doenças Infecciosas do Imperial College, o objetivo final é testar rapidamente quais vacinas e tratamentos funcionam melhor no combate à Covid-19, acelerando seu desenvolvimento.  

Apoiada por um investimento do governo do Reino Unido de 33,6 milhões de libras esterlinas, a pesquisa será realizada por uma parceria entre Imperial College, Royal Free Hospital e a empresa clínica hVIVO. 

A investigação envolverá até 90 voluntários adultos saudáveis com idades entre 18 e 30 anos, por estes apresentarem “menor risco de complicações graves decorrentes do coronavírus”. A saúde dos participantes será monitorada em uma unidade de quarentena no Royal Free Hospital, em Londres. Os voluntários também serão acompanhados por um ano após a participação nos testes. 

A ética dos testes de desafio em cobaias humanas 

Estudos clínicos de desafio em humanos já foram realizados anteriormente para outros vírus, como o da cólera.  Existe a tendência de se considerar como éticos os estudos em que a adesão dos voluntários for espontânea, sem o cometimento de abusos ou de pressões sobre indivíduos ou outros países.  

No caso da pandemia da Covid-19, o professor e especialista em ética da Universidade de Oxford, Julian Savulescu, se declara a favor dos estudos de desafio, conforme relatado pela BBC-Brasil: “Em uma pandemia, tempo é vida. Até agora, mais de 1 milhão de pessoas morreram”.  

Por outro lado, o mesmo artigo da BBC-Brasil relata também que a professora de bioética da Escola de Medicina Albert Einstein de Nova Iorque, Ruth Macklin, considera que é eticamente injustificável “acelerar pesquisas envolvendo uma doença grave para a qual inexiste tratamento eficaz”. Esta posição é compartilhada por  Angela Rasmussen, virologista da Universidade de Columbia, que avalia que os estudos de desafio não trariam dados úteis para além do grupo participante do estudo.  

Para Christine Grady2, chefe do Departamento de Bioética do Centro Clínico no National Institutes of Health, “não está claro se os estudos clínicos de desafio irão mesmo apressar as pesquisas”, conforme artigo na Forbes.  

Willowbrook, a antítese da ética médica 

A história do desenvolvimento de vacinas no Ocidente, iniciada com a descoberta da vacina contra a varíola pelo britânico Edward Jenner em 1798, mostra que nem sempre foram atendidos os padrões éticos necessários. Uma das mais controversas pesquisas de desenvolvimento de vacinas com inoculação do vírus ativo ocorreu nos Estados Unidos, no período entre 1955 e 1970.  

Ainda segundo o mesmo artigo da Forbes, um experimento de inoculação do vírus da hepatite foi realizado em crianças com deficiências mentais da Escola Estadual de Willowbrook, Staten Island, Nova York. O estudo fora autorizado pelo Departamento de Higiene Mental do estado.  

Estudos de desafio em crianças com deficiência mental foram realizados na Escola Estadual Willowbrook, Nova Iorque
Crianças com deficiência mental serviram de cobaias em ensaios clínicos com vírus da hepatite \ Escola Estadual Willowbrook. Fotos: Bob Adelman

A busca pela vacina contra a hepatite assumira grande relevância para os Estados Unidos no começo da década de 50, com a constatação de que durante a Segunda Guerra Mundial cerca de 50.000 militares das tropas norte-americanas foram afetados pela doença causada pelos múltiplos vírus da hepatite. 

Segundo o relato da mãe de uma menina com grau severo de autismo, para conseguir uma vaga em Willowbrook, ela precisou consentir que a filha Nina se participasse dos testes de desenvolvimento da vacina contra a hepatite. A menina foi uma das 50 crianças submetidas aos estudos conduzidos pelo Dr. Saul Krugman, respeitado pediatra de Nova York. 

Os ensaios clínicos incluíram infectar as crianças, contaminando com vírus o leite achocolatado que era dado a elas. Os testes eram aplicados repetidas vezes em uma mesma criança, para avaliar o tempo para surgimento de sintomas após contágio e se a imunidade seria alcançada em caso de novas exposições ao vírus. Os resultados foram publicados no New England Journal of Medicine, na Lancet, e no Journal of the American Medical Association. 

Em 1966, o renomado médico Henry K. Beecher, especialista em ética médica, publicou um artigo em que citou Willowbrook como exemplo de experimento antiético, acrescentando “não ser correto prejudicar uma pessoa para benefício de outras”. Cinco anos depois, o comitê editorial da Lancet se desculpou “pela publicação de uma pesquisa que não traria benefício direto para as crianças infectadas”. 

O filho do Dr. Krugman, também um médico pediatra, defende o pai: “Ele certamente pensou que estava fazendo uma contribuição para a pesquisa de uma doença infecciosa”. De fato, a pesquisa realizada em Willowbrook acelerou a descoberta da vacina para a hepatite.   

No entanto, ao final da década de 60, o Dr. Baruch Blumberg descobriu de forma independente a vacina para a hepatite B, examinando amostras de sangue e testando as funções do fígado em crianças e adultos já infectados. A pesquisa rendeu a Blumberg o prêmio Nobel de Medicina.  

O experimento em Willowbrook representa apenas um dos vários estudos clínicos anti-éticos conduzidos em crianças, presidiários e grupos minoritários. Este foi o caso dos falsos tratamentos em Tuskedee para avaliar a evolução da sífilis, e que levaram à morte de centenas de negros portadores da doença, quando já existia a cura.  

Decorre então o questionamento se é realmente necessário ou correto arriscar a saúde de uns poucos para o benefício de muitos. Existe sempre o risco que motivações políticas possam relegar a um segundo plano a segurança dos voluntários envolvidos na pesquisa, na busca de resultados rápidos. Por outro lado, alguns médicos que se envolveram anteriormente nesta modalidade de ensaios clínicos com cobaias humanas cometeram abusos inaceitáveis.  

Para muitos, Saul Krugman fez a coisa certa com seus estudos em Willowbrook.  E ele recebeu a recompensa por seu trabalho, se tornando presidente da Sociedade Americana de Pediatria em 1972, mesmo após amplamente expostas  na mídia as denúncias sobre a pesquisa. 

Estudos clínicos de desafio humano deveriam requerer a aprovação e fiscalização por uma comissão de ética independente, para evitar eventuais ingerências políticas e desvios de conduta médica.  

Notas do autor 

  1. As vacinas fazem uso do vírus causador de uma doença, mas em sua forma atenuada ou inativada. 
  2. Christine Grady é esposa do Dr. Anthony Fauci, o renomado imunologista estadunidense. 

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

COVID-19: Quem tem medo de tomar a vacina?, por Ruben Rosenthal

Enquanto o mundo anseia por uma vacina que ponha fim à pandemia, libertários de direita e conspiracionistas fazem campanha contra a imunização em massa nos Estados Unidos.

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Acredite em Deus, não nas vacinas: hashtag diga não a bill gates  \  Foto: Mario Tama/Getty Images

Nas últimas semanas, setores opostos do espectro político norte-americano vêm se opondo à vacina de proteção contra a COVID-19. Em comum, estão as críticas a Bill Gates, embora por motivos diferentes. Estes vão desde a defesa do direito do indivíduo em recusar a obrigatoriedade da vacinação, a uma teoria conspiratória de que, através da vacina, seria implantado um microchip, como parte do projeto de identificação digital ID2020, do qual a Fundação Bill e Mellinda Gates é um dos principais idealizadores.

Gates, co-fundador da Microsoft, é o segundo maior contribuinte da Organização Mundial da Saúde (OMS), através da Bill & Melinda Gates Foundation. Se os Estados Unidos deixarem de contribuir, conforme anunciado por Donald Trump, então a Fundação passaria a ser o maior doador, à frente do Reino Unido.

Contrariamente às especulações de que a China, outra grande doadora da OMS, foi o principal responsável pela eleição de Tedros Adhanom para o cargo de diretor-geral da Organização, é provável que tenha sido Gates quem exerceu o papel preponderante na escolha do microbiologista etíope.

Mas para Trump, a China é um alvo mais fácil para disparar sua artilharia, e justificar as falhas de seu próprio governo, onde críticos sensatos são afastados e aduladores são prestigiados. E as falhas não foram poucas.

Segundo artigo no Wall Street Journal de 22 de abril, o Secretário de Serviços Humanos e de Saúde norte-americano, Alex Azar, foi alertado desde 3 de janeiro pelo CDC, o Centro de Prevenção e Controle de Doenças, sobre os riscos do coronavírus. Em 28 de janeiro o Secretário declarou que o vírus não traria impacto no dia-a-dia dos norte-americanos, e mesmo em 25 de fevereiro, quando o CDC alertou que já estava se preparando para uma pandemia, Azar informou à imprensa que o vírus estava “contido”.

O negacionista-mór da pandemia, Donald Trump, há poucos dias afastou o Dr. Rick Bright de seu cargo como chefe da Autoridade de Desenvolvimento e Pesquisa Biomédica Avançada, a agência governamental que está no centro dos esforços governamentais para obter um tratamento e uma vacina para o coronavírus. O cientista acredita que foi removido de sua função por ter insistido em impor limites ao uso da hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19, contrariando a Trump.

O afastamento do Dr. Rick Bright pode enfraquecer o papel da agência governamental que ele chefiava, em um momento crucial da busca por uma vacina para a prevenção da COVID-19. Neste contexto, cresce a relevância de entidades privadas como a Fundação Bill & Melinda Gates, o que deverá acirrar os ataques contra Gates, vindos de negacionistas da pandemia e da vacina, bem como dos adeptos de teorias conspiratórias.

Um dos principais projetos em que a Fundação está envolvida, já há alguns anos, é o da Aliança Global pelas Vacinas e Imunização, GAVI, na sigla em inglês.  O objetivo declarado da Aliança é o de “ajudar a vacinar a metade das crianças do mundo contra doenças infecciosas debilitantes e mortais”. Nas palavras de Bill Gates, “todas as vidas tem igual valor, …. não importa se ricas ou pobres”.

Vacina Gavi
Parceiros na Aliança Global pelas Vacinas e Imunização, GAVI

Os principais parceiros desta aliança incluem, além da Fundação Bill & Melinda Gates, a OMS, UNICEF, Banco Mundial. GAVI tem como doadores, diversos países e fundações privadas. Colaboram também, ONGs, fabricantes de vacinas, e institutos de pesquisa. Dentro do programa, a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) já produziu vacinas de baixo custo, através de parceria com a Fundação Bill & Mellinda Gates.

Para que se possa entender melhor a demonização de Bill Gates, falta abordar o “projeto ID2020”, também de iniciativa de sua Fundação. Em 2018, a “Aliança de Parceiros pelo ID2020”, em associação com o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR), lançou o Manifesto da Aliança ID2020, que argumenta em favor de uma identidade digital.

“Para enormes contingentes de refugiados, apátridas e outros grupos marginalizados, não é possível se recorrer a sistemas de identificação nacionais. Alguma forma alternativa necessita ser fornecida a estes indivíduos, para que possam acessar de forma segura e confiável os sistemas dos Estados. E que isto possa ser feito através de uma forma confiável, que possa ser verificada de forma física e online.”

Em setembro de 2019, a Aliança ID2020 realizou sua reunião de cúpula anual em Nova York. Na ocasião foi anunciado o lançamento de um programa de identidade digital entre o Governo de Bangladesh e GAVI, a Aliança pela Vacina.

“Reconhecendo a oportunidade que a imunização oferece para servir como plataforma para a identidade digital, o programa alavanca as operações de vacinação e de registro de nascimento, para oferecer aos recém-nascidos, uma identidade digital com associação biométrica, duradoura e portável.”

Em relação à biometria de crianças, o UNICEF, em associação com o Banco Mundial, já emitira dois documentos com diretrizes para uso biometria em crianças, alertando para certos riscos envolvidos. O UNICEF argumenta que a tecnologia biométrica, como no caso do reconhecimento facial, foi inicialmente projetada para uso em adultos, tornando-se mais sujeita a erros de reconhecimento quando usada em crianças, podendo ainda trazer “impactos negativos em comunidades vulneráveis”.  

A biometria se aplicaria a medidas faciais, impressões digitais, íris, impressões dos pés e das mãos. Ainda segundo o UNICEF, o uso destas tecnologias em crianças com menos de 5 anos de idade ainda requer mais pesquisas.

A associação da campanha de vacinação da GAVI com o programa de identificação digital contribuiu para alimentar teorias conspiratórias, e que podem interferir na questão do controle da pandemia e prevenção da COVID-19.

Este é, basicamente, o pano de fundo a partir do qual se alimentam as campanhas contra a vacinação em massa contra o coronavírus. Vamos ver como, nos Estados Unidos, os negacionistas da alta mortalidade do SARS-CoV-2, e adeptos de teorias conspiratórias,  fizeram de Bill Gates e seu projeto de desenvolver uma vacina para combater a pandemia, um alvo preferencial de suas críticas.

O negacionismo da pandemia e da vacinação. Um dos principais opositores da vacinação compulsória é o médico e ex-congressista Ron Paul, que através do Instituto que leva seu nome, dá voz a negacionistas, que comparam o número de vítimas fatais da atual pandemia à media de vítimas das gripes comuns no país.

Ron Paul faz parte dos libertários de direita nos Estados Unidos. Há menos de cinco anos ele estava bem alinhado com as teses do think tank Atlas Network1, um dos epicentros do ultraliberalismo no país, tendo se apresentado em 2015 como palestrante na Oitava Conferência do International Students for Liberty, entidade à qual o MBL estava ligado.

No entanto, em 2017, Ron Paul já renegara seu envolvimento anterior com a Atlas Network, reconhecendo o envolvimento da entidade na deposição de Dilma Roussef, ao afirmar que o MBL, de Kim Kataguiri, atuou segundo as instruções de Alexander Chafuen, o CEO da Atlas.  Paul denunciou também o envolvimento da Atlas com o lobby do tabaco2.

Mesmo se tornando crítico do principal think tank do ultraliberalismo norte- americano, Ron Paul continua a adotar uma política  de “libertarianismo de direita”, por vezes se alinhando com as posições de Trump. Ele é condescendente com o presidente em relação a algumas políticas, com a justificativa que os presidentes do país não conseguem suportar as pressões do “Deep State”.

Através de artigo na página de seu Instituto, Ron Paul questiona se as medidas adotadas em busca da cura não estão trazendo mais malefícios que a própria doença, por prejudicarem os negócios e trazerem desemprego. Ele defende ainda que os governos não têm o direito ou autoridade para definir que atividade é “essencial”.

Em alinhamento com a política disruptiva de Trump de solapar a quarentena, Paul dá força para as manifestações de protesto que se espalham pelo país, contra o que ele denomina de “prisão domiliciar”.

rifles de assalto Arizona capital
Manifestantes contra a quarentena com rifles de assalto, capital do Arizona \  Foto: Ross D. Franklin/AP

Agora Ron Paul investe contra a vacina para combater o coronavírus, alertando que as pessoas deveriam ficar “cautelosas” sobre a futura vacina. Ele alega que táticas de amedrontamento” estão sendo usadas para colocar pressão sobre as pessoas, para convencê-las de que deveriam se vacinar”. Em entrevista em áudio, Ron Paul declarou que Bill Gates  quer dominar o mundo através da vacinação compulsória3.

A dominação do mundo por Bill Gates é o elo de ligação entre negacionistas da pandemia e da vacinação compulsória da população, com os adeptos de teorias conspiratórias, de que um microchip ou cápsula será introduzido na vacina, e que supostamente possibilitaria formas de controle sobre as pessoas.

As teorias conspiratórias. Segundo a Agência Reuters, a teoria conspiratória surgiu a partir da deturpação de uma entrevista de Gates à rede de comunidades Reddit, e se espalhou em milhares de postagens pelo Facebook e TwitterNa entrevista ao Reddit, do tipo perguntas e respostas, Gates fez menção de que pode prever o uso de “certificados digitais associado à fichas clínicas”.   

Os boatos de implantação de chips surgiram a partir de 19 de março, com uma publicação no site Biohackinfo intitulada “Bill Gates irá usar implantes de microchips para combater o coronavírus”. O artigo acrescenta que, atualmente, a forma mais eficaz de implementar a identidade digital seria através de implantes de microchips, com identificação por radio-frequência. Entretanto, em nenhum momento da entrevista ao Reddit, Gates mencionou o uso de microchips implantados, seja no projeto do ID2020 ou na vacinação contra a COVID-19.

O artigo no Biohackinfo menciona um fato verídico, que é a tecnologia do “quantum dot dye” (corante ou tatuagem de ponto quântico), desenvolvida no prestigioso MITMassachusetts Institute of Technology.  O texto associa esta tecnologia aos certificados digitais a que Gates se referiu no projeto ID2020, para possibilitar que populações marginalizadas possuam documentos de identidade confiáveis. 

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Vacinação com microagulhas e implantação dos pontos quânticos \ Créditos: Second Bay Studios

Kevin McHugh, da Rice University, Texas, e especialista em bioengenharia, participou como co-líder na pesquisa do “quantum dot dye”, quando estava do MIT. Ele explicou em boletim técnico da Universidade de Rice, que pontos quânticos fluorescentes feitos de cobre são aplicados no corpo humano através de microagulhas de açúcar, contendo a vacina. As agulhas se dissolvem sob a pele, deixando os pontos quânticos encapsulados. O padrão dos pontos pode ser lido, para identificar qual vacina foi aplicada.

McHugh acrescenta que foi, de fato, procurado pela Fundação Bill & Mellinda Gates, que buscava formas de tornar mais efetivo o controle do histórico de vacinação de crianças. Não seria tão surpreendente, portanto, se a “tatuagem de pontos quânticos” estiver sendo considerada nos planos de Gates para o projeto de identificação digital ID2020, mas o aspecto ético deveria passar por ampla discussão prévia.

Segundo o Biohackinfo, alguns setores religiosos fundamentalistas se opõem à certos procedimentos  invasivos do corpo, mesmo se for para prevenir uma terrível pandemia. No caso de alguns grupos cristãos, esta rejeição se dá por acreditarem que estas novas tecnologias de identificação estariam associadas à chamada “marca de satã”, mencionada na Bíblia.

Enquanto isto, em uma aldeia no interior de Bangladesh, crianças estão sendo vacinadas no projeto da GAVI, e recebendo “certificados digitais” do ID2020. Serão elas precursoras de um “Admirável Mundo Novo”. Será utópica esta sociedade futura, ou distópica como no livro de Aldous Huxley?

Cidadãos norte-americanos estão sendo colocados diante de um dilema shakespeariano: “Tomar ou não tomar a vacina contra o coronavírus, eis a questão”. Mas a verdadeira decisão pode ser colocada de forma objetiva: “O valor da vida é maior que princípios (abstratos ou não) de liberdade, e que seus medos (infundados ou não) de ser constantemente controlado por alguma organização ou governo?” 

Notas do autor:

1. O ativismo da Atlas Network em prol do ultraliberalismo foi assunto de matéria anterior no blogue. 

2. O lobby internacional do tabaco foi abordado em artigo anterior. 

3. As acusações de dominação do mundo através de vacinas, feitas por Ron Paul a Bill Gates, foram também extensivas ao imunologista Anthony Fauci, que faz parte da força tarefa da Casa Branca de combate ao coronavírus, e uma das poucas mentes lúcidas na administração Trump.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense e responsável pelo Blogue Chacoalhando.