Aborto nos EUA: a solução está no aumento de juízes da Suprema Corte?

Por Ruben Rosenthal

Restaurar o equilíbrio entre conservadores e liberais na Corte, talvez seja a única forma de reverter o progressivo aumento da cisão na sociedade norte-americana.

Abortion is a extremely divisive theme for the north-americanssive
Manifestantes contra e favor da legalização do aborto. A sociedade norte-americana se encontra dividida.

Conforme já era esperado, a Suprema Corte norte-americana decidiu por 5 a 4 reverter o caso Roe vs. Wade que estabelecera o direito constitucional ao aborto em 1973, com base na 4a e 14a emendas da Constituição. Agora os estados poderão estabelecer legislações específicas. Estima-se que em 26 estados do país o aborto será proibido ou terá severas restrições.

As mudanças afetarão principalmente mulheres de baixa renda, que não terão condições financeiras de viajar para outros estados para interromper a gravidez. Algumas empresas, como a Amazon e a Apple, já anunciaram que pagarão as despesas de suas funcionárias que precisarem viajar.

Mas outras liberdades civis também poderão ser afetadas com a nova interpretação da Corte de maioria conservadora. Voltam a surgir no país vozes de peso que defendem o aumento no número de juízes da Corte, de forma a restabelecer o equilíbrio entre liberais e conservadores.

As hesitações de Biden

Na sequência da decisão da corte, Biden se limitou a declarar que “os eleitores terão a palavra final”. Este posicionamento indicou que a intenção do presidente era de capitalizar em cima do drama de milhares de mulheres, visando atrair votos para o partido Democrata nas eleições legislativas de novembro próximo. Mas o presidente parece ter se dado conta que, ao contrário, este posicionamento dúbio estava trazendo imenso desgaste político, no momento em que seu apoio popular já se encontra bastante prejudicado pela alta inflação, que está próxima dos dois dígitos.

Em 30 de junho, após criticar o “comportamento vergonhoso” da Suprema Corte, Biden declarou que irá impedir que a oposição obstrua a votação no Senado que garantiria o direito ao aborto em todo o país: “Temos que codificar Roe vs. Wade na lei, e a forma de conseguir é garantindo que o Congresso faça isso”, disse Biden. “E se a obstrução (pela oposição) for atrapalhar, será como no (caso do) direito ao voto, nós criaremos….uma exceção à obstrução (específica) para essa ação.”

Só que Biden parece se esquecer que, no caso da votação da reforma eleitoral ocorrida em janeiro deste ano, dois senadores democratas “problemáticos”, Joe Manchin e Kyrsten Sinema, se posicionaram com os republicanos, e a legislação não foi aprovada. No caso da questão do aborto, Biden e a liderança democrata precisarão negociar muito para superar a dissidência interna no partido.

A 14a emenda

A 14a emenda foi criada em 1868, no pós-guerra civil nos EUA, para impor aos estados do Sul escravocrata direitos individuais aos ex-escravos.  Conforme lembrou o professor Rafael Ioris, no programa Agenda Mundo, ao longo do século 20, a 14a emenda foi interpretada para garantir a ampliação de direitos individuais, como a dessegregação nas escolas (1954), e estendeu o direito à privacidade (estabelecido pela 4a emenda) ao direito ao aborto (1973), e, posteriormente, ao do casamento entre pessoas do mesmo sexo (2015).

Ioris ressaltou ainda que estes direitos não estão explicitados na Constituição: “A interpretação que foi concedida do direito ao aborto nunca foi absoluta, tanto que possibilitou que os estados regulamentassem de forma diversa sua aplicação. Por se tratar de uma interpretação (da emenda), mudanças na composição da Suprema Corte podem rever decisões anteriores.”

Obama e Biden não cumpriram promessas de campanha

Conforme o ativista político e youtuber Jimmy Dore ressaltou em seu programa, quando das últimas eleições presidenciais em 2020 Biden declarou que, se eleito, enviaria imediatamente para votação no Congresso a codificação da decisão da Corte no caso Roe vs Wade, o que não ele não fez. A codificação da lei do aborto pela autoridade federal invalidaria quaisquer leis estaduais anti-aborto que estivessem em conflito com as cláusulas da lei federal.

Antes dele, Barack Obama também dissera que a primeira coisa que faria como presidente seria assinar o ato da “liberdade de escolha”. Naquela ocasião Obama dispunha de maioria expressiva tanto na Câmara como no Senado, o que não é o caso de Biden agora.

Atualmente, a maioria democrata na Câmara é de 220 a 210, enquanto que no Senado 50 assentos são ocupados pelos republicanos, 48 pelos democratas, e 2 por independentes que votam com os democratas. Em caso de empate 50-50, a decisão cabe ao voto da vice-presidente, Kamala Harris. No entanto, a atual maioria democrata no Senado é ilusória, já que os republicanos podem fazer uso do mecanismo de obstrução (filibuster, em inglês), válido para casos polêmicos.

A obstrução no Senado

Para que uma legislação seja aprovada no Senado sem sofrer obstrução pela oposição, é necessário que uma maioria qualificada de 60 votos seja alcançada. No passado, o mecanismo de obstrução já foi utilizado para barrar a aprovação de projetos de lei que visavam combater a discriminação racial, conforme relatado pelo Centro Brennan por Justiça (Brennan Center for Justice), um think tank progressista norte-americano da área advocatícia.

Quando o projeto de lei chega ao plenário para votação após a conclusão dos debates, basta uma maioria simples de 51 votos para aprová-lo. Entretanto, a oposição pode estender indefinidamente os debates, de forma obstrutiva, a não ser que o projeto alcance um mínimo de 60 votos. Biden anteriormente se posicionara contrariamente aos apelos vindos da ala liberal do Partido Democrata para que fosse abolido de vez o mecanismo da obstrução.

Por vezes, alguns tipos de leis foram isentadas da regra, como em acordos comerciais. Biden tentou criar uma exceção para o caso da reforma eleitoral e não conseguiu. E agora ele declara que vai garantir uma exceção para tornar lei federal o parecer do caso Roe vs Wade. Um possível complicador é que codificar Roe vs Wade significaria ignorar decisões da Suprema Corte posteriores a 1973, que possibilitaram a estados governados por conservadores impor algumas restrições ao aborto. É possível, e mesmo provável, que os senadores Manchin e Sinema não aceitem que Roe vs Wade se torne lei federal, se ficarem de fora as restrições posteriores aceitas pela Corte.

Existe um plano B?

Não está claro ainda se Biden está buscando alternativas, caso não consiga negociar um consenso com os dissidentes democratas. Enquanto esta situação não se define, uma alternativa relativamente simples de ser implementada a curto prazo foi sugerida pela congressista Alexandria Ocasio-Cortez: que nos estados em que o aborto seja totalmente proibido ou sofra fortes restrições, a interrupção da gravidez possa ser conduzida em clínicas estabelecidas em espaços que estejam sob jurisdição federal.

Esta seria evidentemente uma solução emergencial, pois é provável que um futuro presidente republicano viesse a reverter a medida. E esta é a perspectiva que se coloca já para 2024, caso os Democratas não consigam recuperar o apoio que vem perdendo desde a posse de Biden.

Mas a questão da proibição do aborto não é a único trauma que poderá afligir amplos setores da sociedade norte-americana. Com a nova interpretação da14a emenda pela Suprema Corte ficou também aberto o caminho para que outros direitos já estabelecidos sejam revertidos, como o casamento de pessoas do mesmo sexo e o controle de natalidade.

Falta legitimidade à Suprema Corte dos EUA

Na origem dos atuais problemas está a expressiva maioria conservadora na Suprema Corte (6 a 3), alcançada principalmente através de um lobby intenso de grupos bancados por bilionários, conforme detalhado em artigo anterior do blog.

No governo Obama, um doador desconhecido contribuiu com 17 milhões de dólares para barrar a indicação do juiz Merrick Garland para a Suprema Corte, e apoiar posteriormente a indicação de Neil Gorsuck para a mesma vaga, já na administração Trump. Em 2018, o grupo Judicial Crisis Network recebeu possivelmente do mesmo doador outros 17 milhões para intermediar apoio à indicação de Brett Kavanaugh, que precisou superar acusações de que cometera abusos sexuais na juventude.

Outro grupo atuante é a Federalist Society, uma influente organização de advogados conservadores e ultraliberais, com ligações próximas a juízes da Suprema Corte. O advogado Leonard Leo, então vice-presidente executivo da entidade, foi o principal articulador do plano para garantir a indicação de juízes conservadores para as cortes federais, como também para influenciar no desfecho de causas. Detalhes da estratégia adotada foram relatados pelo jornal The Washington Post, em artigo de maio de 2019.

Para a senadora democrata Elisabeth Warren, que foi pré-candidata nas eleições presidenciais de 2020, a solução estaria em expandir a Corte: “Acredito que precisamos restaurar a confiança em nossa Corte, e isso significa que precisamos de mais juízes na Suprema Corte dos Estados Unidos. Já aconteceu antes. Fizemos isso antes e precisamos fazê-lo novamente.”

De fato, isso já foi feito antes, por 7 vezes. O artigo 3 da Constituição dos Estados Unidos, na seção 1, concede esta autoridade ao Congresso. Restaurar o equilíbrio entre conservadores e liberais na Corte, talvez seja a única forma de reverter o progressivo aumento da cisão na sociedade norte-americana. Resta ver se Biden conseguirá se superar e estar à altura da gravidade do atual momento.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

EUA: Hora da verdade para o Partido Democrata e seus progressistas

Por Ruben Rosenthal

O atual bipartidarismo que vem prevalecendo nas eleições desde a fundação do país pode estar agora com os dias contados, com a formação  de novos partidos que atendam às demandas de setores de esquerda e de direita que não concordam com as políticas de Democratas ou Republicanos. 

Sem-teto descansam nos bancos no interior da Igreja de São Bonifácio, em São Francisco
Moradores de rua repousam nos bancos da Igreja de São Bonifácio, São Francisco \ Foto: David Levene / The Guardian

Caso os Democratas se omitam em relação a questões prioritárias que afligem amplos setores da população norte-americana, o caminho ficará aberto para a perda do controle de ambas as Casas do Legislativo em 2022, e para a volta de Trump em 2024 ou de alguém tão ou mais extremista que ele. O povo norte-americano não perdoará os Democratas, caso se sinta enganado por promessas não cumpridas. 

Superado o trauma da tomada do Capitólio pela turba de apoiadores de Trump, o Partido Democrata precisará lidar com a nova realidade política que prevalece agora no país, com o resultado das eleições de 2020. Acabaram os pretextos do Partido para não submeter projetos ou encaminhar votações que poderiam ser derrubadas pelos Republicanos no Senado, ou vetadas no Executivo.  

Entretanto, boa parte dos parlamentares Democratas tem tendência de centro ou de direita, e certamente não tomará a iniciativa de propor as medidas sociais e econômicas que são necessárias no momento. Por outro lado, os parlamentares que se assumem como progressistas deveriam defender as causas populares contra os interesses das grandes corporações.  Mas até que ponto é apenas performático o posicionamento de esquerda de alguns destes parlamentares? 

O jornalista Glenn Greenwald tuitou que um aspecto positivo dos Democratas assumirem o controle político do Executivo e do Legislativo é que isto irá mostrar com mais clareza a que eles realmente se propõem. “Poderão usar desculpas como em 2008-2010, mas o foco estará neles”, acrescentou Greenwald. No referido período, Barack Obama ocupava a Presidência e os Democratas tinham maioria no Congresso. 

A esquerda Democrata

Seguindo-se às recentes eleições e já definida a nova realidade do controle político nos Estados Unidos, a deputada progressistAlexandria Ocasio-Cortez (AOC) fez uso do Twitter para sugerir as principais questões que poderiam ser agora objeto de pressão. Ela elencou a retroatividade do auxílio-Covid, justiça climática, assistência à saúde, direito ao voto, fim da pena de morte e o cancelamento dos débitos estudantis. Mas algumas vozes do campo progressista têm questionado sobre o real comprometimento de AOC e de outros Democratas do campo progressista com as causas populares.   

AOC faz parte do chamado Esquadrão, cujos membros originais incluíam ainda as deputadas Ayanna Presley, Ilhan Omar e Rachida Tlaib, e que agora recebeu mais algumas adesões com as eleições de 2020.  O comitê de ação política Justice Democrats (Democratas da Justiça) ajudou a eleger AOC em 2018. O comitê está recrutando candidatos progressistas para as eleições de 2022, visando reformar o Partido Democrata através do crescimento do Esquadrão. Os Democratas da Justiça acreditam que é mais viável a tentativa de transformar o Partido de dentro, do que fundar um partido de esquerda que seja competitivo.   

No site do comitê, as duas primeiras propostas são o Green New Deal (Economia Verde) e o Medicare for All (Assistência de Saúde para Todos). O atual artigo irá focar nestas duas propostas, bem como em uma questão fundamental que o Esquadrão não está elencando como prioritária: a necessidade de se neutralizar o predomínio de juízes conservadores na Suprema Corte do país, alcançado através de doações ocultas de bilionários e de grandes corporações.  

Green New Deal

O projeto do Green New Deal se trata de uma ambiciosa proposta para uma Economia Verde, introduzida através da Resolução 109 na Câmara de Representantes por AOC, e no Senado (Resolução 59), por Edward J. Markey, também do Partido Democrata. 

Segundo relato no The New York Times, a expressão Green New Deal partiu do grupo ativista jovem Sunrise Movement, que promoveu uma ocupação em frente ao gabinete da deputada Democrata Nancy Pelosi. AOC se juntou aos manifestantes em apoio às propostas, que evoluíram para a Resolução 109. 

A proposta da Economia Verde defende o desenvolvimento sustentável sem degradação ambiental, com foco no aquecimento global e nos combustíveis limpos. Também está incluído o combate aos problemas de desigualdade econômica e à injustiça racial. Conforme explicitado na Resolução 109, uma sociedade gerida pela Economia Verde precisaria lidar com a opressão das comunidades vulneráveis, como povos indígenas, comunidades de cor, imigrantes, trabalhadores com baixos salários, mulheres, idosos, pessoas com formas de incapacitação e jovens. 

Com o Senado então sob o controle dos Republicanos, o líder da maioria Mitch McConnell encaminhou a votação da Resolução 59, sem conceder tempo para que as discussões fossem aprofundadas. Agora a Câmara e Senado poderão retomar a discussão. Durante a campanha, Joe Biden defendeu sua própria concepção de um plano para uma “Revolução de Energia Limpa e Justiça Ambiental”, mas sem incluir o aspecto social presente no Green New Deal.

No entanto, AOC agora parece defender o que ela chama de “justiça climática”. Trata-se de uma definição vaga, que não esclarece se a justiça social que era contemplada pelo Green New Deal também está incluída. 

Medicare for All

A proposta de um programa público de Assistência Médica para Todos foi encaminhada ao Senado por Bernnie Sanders, e à Câmara, pela deputada Pramila Jayapal, presidente da frente progressista no Congresso. Artigo recente no The New York Times defende que os Democratas deveriam se limitar a um projeto de saúde menos ambicioso, que não traga deficit ao orçamento. 

É fato bem conhecido que muitos congressistas Democratas defendem os interesses das grandes corporações, e não apoiariam um sistema público e universal de saúde. Documentos vazados de lobistas que foram publicados pelo The Intercept revelaram que a indústria da saúde interferiu junto ao Partido Democrata para que o plano Medicare for All ficasse de fora da plataforma eleitoral de 2020. Joe Biden e Kamala Harris receberam vultosas doações de campanha do setor privado de saúde. 

#ForceTheVote

Nos últimos meses de 2020 a líder da maioria na Câmara, a Democrata Nancy Pelosi, se recusou a colocar em votação no plenário o projeto do Medicare for All, com o argumento de que não haveria a menor possibilidade de aprovação. AOC concordou com Pelosi, defendendo que seria melhor focar no salário mínimo de 15 dólares/hora.

Conforme já relatado em artigo anterior, a questão vem dividindo o setor progressista, com fortes críticas ao Esquadrão  vindas do YouTuber Jimmy Dore  de Briahna J. Gray, ex-secretária de imprensa de Bernie Sanders. Dore ironiza no vídeo que AOC expressou no Twitter que “uma votação pode criar pressão política real para forçar eventos”, defendendo assim que o impeachment de Trump na Câmara poderia exercer pressão sobre os senadores a fazer o mesmo. Mas que ela foi contra pressionar por uma votação do Medicare for All, mesmo com uma maioria expressiva dos eleitores Democratas  se posicionando favoravelmente ao plano público de saúde.

Deputada AOC foi favorável a votar pelo impeachment de Trump usando de argumentos que poderiam valer também para por em votação o Medicare for All, que ela se recusou a apoiar.
YouTuber Jimmy Dore mostra as contradições da deputada Alexandria Ocasio-Cortez \ The Jimmy Dore Show.

Alexandria Ocasio-Cortez já foi defensora do Medicare for All, mas agora ela se coloca no Twitter a favor de algo genérico como “assistência à saúde”, sem prestar qualquer satisfação aos apoiadores da  campanha do #ForceTheVote, promovida por vários dos movimentos de base que a elegeram.  

Em relação à defesa que AOC faz do salário mínimo de 15 dólares/hora, faltou a deputada explicitar se este mesmo salário se aplicaria também aos prisioneiros, muitos deles submetidos a trabalho forçado em condições de escravidão moderna, com salários inferiores a 1 dólar/hora em média.

Reforma da Suprema Corte

Através de uma articulação cuidadosamente planejada e que já vinha sendo conduzida há cerca de 20 anos, os juízes conservadores poderão exercer total controle da Suprema Corte norte-americana pelas próximas décadas. Em artigo anterior do blog já foram apresentados diversos aspectos desta polêmica questão. 

O senador Whitehouse publicou em fevereiro de 2020 artigo no Harvard Law Journal  on Legislation (HLJL), mostrando como ao longo de vários anos a Federalist Society, a Judicial Crisis Network e uma série de doadores anônimos interferiram na nomeação de juízes favoráveis às grandes corporações e em julgamentos relevantes.  Grande parte do financiamento veio da bilionária família Mercer.

Os juízes conservadores John Roberts Jr. (atual presidente da Corte), Samuel Alito, Neil Gorsuck e  Brett Kavanaugh receberam apoio de doações secretas para chegarem à Suprema Corte. Dezenas de cortes federais pelo país foram também aparelhadas com juízes conservadores. 

A atual maioria conservadora de 6 a 3 na Suprema Corte representa uma ameaça para as causas trabalhistas, direitos das minorias e outras questões importantes, como o caso Roe vs. Wade sobre aborto. Já existe um movimento para que o número de juízes da Corte seja ampliado para possibilitar que Joe Biden indique juízes com tendência liberal, desta forma contrabalançando os efeitos do aparelhamento feito pelos Republicanos. 

No entanto, o senador Whitehouse não acredita que seja uma boa solução se acrescentar mais assentos à Corte ou limitar o tempo de mandato dos juízes, atualmente vitalício. Para ele, o melhor caminho seria tornar o Judiciário mais transparente, expondo os grandes doadores que procuram interferir nos julgamentos.  

Recentemente a Suprema Corte se posicionou por unanimidade contra as pretensões de Trump de reverter em alguns Estados, o resultado da contagem de votos da eleição presidencial de 2020. No entanto, este posicionamento imparcial não deve ser entendido como um compromisso de irrestrita isenção e integridade por parte da Corte. 

Pode ter se tratado de uma estratégia dos juízes conservadores para não acirrar os ânimos contra a Corte. Para as grandes corporações que aparelharam o Judiciário do país, melhor descartar Trump agora do que arriscar a perder décadas de influência na Suprema Corte.  Afinal, 2022 não está muito distante, e os Democratas conservadores farão o partido perder apoio popular.

Lutar a boa luta ou formar um novo partido?

Resta ver se o Esquadrão e os Democratas da Justiça vão ser combativos para tentar superar a resistência interna da direita do Partido, representada por Biden, Kamala Harris, Nancy  Pelosi, Chuck Schumer, dentre outros.  

Kyle Kulinsky, co-fundador do Justice Democrats, tem uma posição que não é compartilhada por boa parte de seus colegas progressistas: “Se você acredita em algo, você luta por isto. Se você perde, OK, mas o ato de fazer tudo ao seu alcance é a definição de moralidade”. 

O atual bipartidarismo que vem prevalecendo nas eleições desde a fundação do país pode estar agora com os dias contados, com a formação  de novos partidos que atendam às demandas de setores de esquerda e de direita que não concordam com as políticas de Democratas ou Republicanos. Cerca de 41 milhões de norte-americanos vivem em condições de pobreza, de acordo com o censo de 2016/17. O lado sombrio do sonho americano.

Com a descrença dos movimentos de base no Partido Democrata, poderá crescer o apoio ao “Movimento por um Partido do Povo” (Movement for a People’s Party), na expectativa de criar um partido que efetivamente lute por programas que beneficiem os setores vulneráveis da população. Por outro lado, com muitos trumpistas considerando não mais apoiar o Partido Republicano, poderá ser formado um partido de extrema-direita. O que acontecer nos Estados Unidos poderá ter reflexos em grande parte do mundo, para o bem e para o mal.

O autor é professor aposentado da UENF, e escreve artigos de análise política no  blogue Chacoalhando

Trump: contagem regressiva para o golpe, prisão ou fuga do país?

Os grandes interesses econômicos não hesitariam em apoiar uma intervenção no Colégio Eleitoral. A outra opção para Trump é deixar o país, para não ser preso por ilicitudes fiscais.

A forma correta de investigar Trump quando ele deixar a presidência, será uma decisão que espera Joe Biden.
Trump poderá ser indiciado quando deixar a presidência \ Ilustração: POLITICO / Getty/iStock

Por Ruben Rosenthal

Durante o processo eleitoral, Donald Trump  fez constantes acusações de fraude por parte do Partido Democrata. Confirmada sua derrota nas urnas, o presidente continua inabalável.  Trump será despejado à força da Casa Branca, como ironiza parte da imprensa? Uma vez fora do poder ele deverá provavelmente ser indiciado por diversos crimes, podendo ser preso. Dentre as alternativas estão fugir do país ou atentar  contra a democracia, em uma última cartada. 

Os Estados Unidos se encontram em uma situação sem precedentes em sua história, em decorrência das ações de Donald Trump na presidência: perda de prestígio internacional, notadamente pela política de negação climática; distúrbios nas cidades, em protesto contra um sistema policial e judicial entranhado de racismo e um presidente simpatizante de supremacistas brancos e incentivador milícias armadas; com o país assolado pela pandemia de um vírus que já causou cerca de 250 mil mortes e abalou a economia, seu líder máximo se mostra um completo negacionista da ciência. Para completar o cenário de caos, Trump se recusa a reconhecer sua derrota nas eleições.

Durante a campanha o presidente já questionava as regras do processo eleitoral, ao declarar que o voto postal conduziria à fraude em favor do candidato Joe Biden. Trump estava consciente de que sua rejeição aumentara muito com o alastramento da pandemia de Covid-19 pelo país. Sua liderança na condução do combate à pandemia fora simplesmente inepta, e mesmo criminosa.

Do outro lado, Biden sofreu alguns arranhões durante a campanha, com as acusações de ter se beneficiado da corrupção praticada por seu filho Hunter. Estas acusações foram ignoradas pela maioria da mídia corporativa, favorável ao candidato democrata. Mesmo na mídia independente, poucos jornalistas optaram por colocar em primeiro lugar a objetividade profissional, para não prejudicar a vitória de Biden que se configurava. 

A negação da derrota. A demora na apuração dos votos permitiu que Trump intensificasse as acusações de que diversas irregularidades estavam ocorrendo na contagem, como a inclusão de votos que teriam chegado após o dia da eleição, e que ele considerou como “ilegais”. Argumentavam também os Republicanos que seus fiscais não conseguiram acompanhar a apuração na Pensilvânia, estado controlado pelo Partido Democrata.

Assim, quando Biden ultrapassou a marca dos 270 votos no Colégio Eleitoral com a vitória na Pensilvânia, Trump se recusou a aceitar a derrota. Para ele, sua vitória era incontestável, e as Cortes iriam confirmar que diversas fraudes foram cometidas na eleição. Uma pesquisa mostrou que 70% dos apoiadores do Partido Republicano consideram que as eleições não foram honestas, sendo que o principal motivo alegado (78%) foi o sistema de votos pelos Correios. Os resultados na Pensilvânia são contestados por 62% dos republicanos, ainda segundo a pesquisa. No entanto, mesmo com eventuais correções da contagem obtidas em alguns estados, estas não serão suficientes para alterar os resultados finais da eleição presidencial, de 306 votos eleitorais para Biden contra 232 para Trump. 

 

Pesquisa indicou que  70% dos Republicanos não acreditam que as eleições tenha sido livres e justas
Apoiadores de Trump protestam por mais transparência nas eleições, Fênix, Arizona \ Foto: Matt York/AP

As motivações de Trump. Para muitos analistas políticos, as ações de Trump resultariam da intenção de tentar preservar sua influência no partido Republicano, bem como enfraquecer o futuro governo Biden.  Mesmo derrotado também na contagem total de votos, Trump conseguiu ultrapassar a impressionante marca de 70 milhões de votos, a segunda maior votação na história das eleições do país. Um trunfo nada desprezível, que poderá ainda render dividendos políticos ao atual presidente. Passar para seus correligionários a mensagem de que ele só foi derrotado porque as eleições foram fraudadas pelo partido do outro candidato, ajudaria Trump a manter seu poder político no Partido Republicano, o Great Old Party (GOP).

Até o momento os juízes das Cortes locais estão considerando como improcedentes a quase totalidade das reclamações levantadas pelos Republicanos. Desta forma, até mesmo a Suprema Corte, onde os conservadores têm maioria, não conseguiria justificar uma reverter a vitória de Biden. Entretanto, Trump prossegue tumultuando o processo eleitoral, abalando a respeitabilidade internacional da democracia norte-americana.

Para Trump, permanecer na presidência pode ser muito mais do que uma simples questão de apego ao poder.  Para Jane Mayer1, do The New Yorker, quando Trump deixar a presidência ele perderá sua imunidade. Atualmente ele enfrenta  mais de 12 investigações criminais e processos civis, que poderão levá-lo à prisão. A maioria destas acusações diz respeito a vários tipos de ilícitos cometidos antes de seu mandato, como fraude bancária, fraude de seguros, evasão de impostos, dentre outros. 

Ainda segundo Mayer, Trump poderia fazer como Richard Nixon que obteve o perdão presidencial de Gerald Ford em 1974. Bastaria ele se afastar provisoriamente, para o vice Mike Pence assumir e perdoá-lo, já que o auto-perdão seria bastante controverso. Entretanto, acusações estaduais não são abrangidas pelo perdão presidencial, como no caso pendente na cidade de Nova York, que se tratava originalmente de um caso federal contra o advogado de Trump, Michael Cohen e  o co-conspirador Indivíduo-1, que seria o próprio Trump. 

A fuga do do país seria uma alternativa. Para o professor Timothy Snyder, de Yale, é bem provável que Trump viaje na surdina para algum país sem tratado de extradição com os Estados Unidos. A menos que você seja um idiota, já terá um plano de voo pronto, acrescentou o professor.

Luxuoso Boeing 757 de Trump: o plano de voo já está pronto? \ Foto: AP

 

Trump também está extremamente endividado. Nos próximos anos ele deverá pagar mais de 300 milhões de dólares, principalmente para o Deutsche BankNa presidência, ele teria melhores condições de renegociar suas dívidas. Fora dela, a situação se torna mais difícil, porque suas propriedades estão desvalorizadas em face da pandemia. Mas ele sempre pode pedir a ajuda de algum oligarca com que tenha feito negócios, acrescenta Mayer.

Perante o mundo, o presidente norte-americano passa a imagem de ditador de uma república de bananas, ao continuar a contestar o resultado das urnas para se manter no poder. Mas poderiam ser as ações de Trump apenas uma cortina de fumaça para encobrir sua verdadeira estratégia para continuar na presidência? 

Em entrevista a Amy Goodman, do Democracy Now, a escritora e jornalista Dhalia Lithwick, colaboradora da Newsweek e editora da Slate, considerou que o objetivo real de Trump seria tumultuar ao máximo o processo eleitoral, para então “sugerir a governadores que eles poderiam encaminhar para o Colégio Eleitoral algumas pessoas que não foram escolhidas na eleição popular”. Se concretizado, isto equivaleria a um golpe nas instituições do país.

Cumplicidade dos Republicanos? Nos últimos dias, vozes importantes no GOP vêm dando apoio político às alegações de Trump de ocorrência de fraudes. Em minoria na Câmara, apesar de terem conseguido diminuir a diferença anterior para os Democratas, o GOP corre ainda o risco de perder o controle do Senado. Seria esta a motivação do partido para incorporar uma narrativa que não está sendo confirmada nas Cortes? 

No dia 5 de janeiro ocorrerá a eleição para as duas vagas do Senado ainda não preenchidas na Geórgia, o que poderá transferir o controle para os Democratas. Se Democratas e Independentes conseguirem somar o mesmo número de assentos (50) que Republicanos, o voto de desempate caberá ao vice-presidente do país. Com Biden na presidência,  seria de Kamala Harris o voto decisivo.

Desta forma, o Partido Democrata assumiria o controle das decisões políticas a nível federal, e poderia encontrar formas de reverter o domínio conservador na Suprema Corte. Este domínio foi alcançado exatamente durante a administração Trump, quando foram indicados três juízes conservadores para vagas abertas na Corte. A controvertida indicação da Juíza Amy Coney Barrett foi aprovada pelo Senado controlado pelos Republicanos quando as eleições de 2020 já haviam se iniciado.

Conforme já detalhado em artigo anterior do blog, ao longo de duas décadas bilionários e grandes corporações utilizaram doações anônimas para promover a indicação e aprovação de juízes comprometidos com seus interesses. Se os Democratas, além de conquistarem a Presidência conseguirem também alcançar o controle do Senado, haverá um movimento crescente no campo progressista a favor de ampliar o número de juízes da Suprema Corte, de forma a possibilitar o reestabelecimento do equilíbrio entre liberais e conservadores. Alguns políticos democratas, como o Senador Sheldon Whitehouse, consideram no entanto que o mais indicado seria tomar medidas para aumentar a transparência do Judiciário, de forma a prevenir que doadores anônimos continuem a interferir nas decisões da Corte. 

Diante de um cenário em que estejam ameaçados de perder a influência sobre a Suprema Corte, os grandes interesses econômicos não hesitariam em apoiar uma intervenção no Colégio Eleitoral. A outra opção para Trump é deixar o país, para não ser preso por ilicitudes fiscais.

As regras do Colégio Eleitoral. No período maio-agosto de 2020 foram indicadas por comitês ou convenções em cada Partido, as chapas com candidatos ao posto de eleitores do Colégio Eleitoral, em número igual ao de votos eleitorais do estado. A escolha ocorreu no mesmo dia da eleição presidencial, 3 de Novembro. Cabe aos governadores emitirem Certificados de Averiguação, listando os eleitores escolhidos.

Não ocorrendo alteração no calendário, em 14 de dezembro as diversas delegações estaduais do Colégio Eleitoral irão votar para a presidência e vice-presidência do país, respeitando a decisão do voto popular de 3 de Novembro. Serão então emitidos os Certificados de Votos Eleitorais para serem computados na Sessão Conjunta do Congresso de 6 de janeiro. No entanto, a Constituição federal não exige fidelidade do eleitor ao voto popular. Já ocorreram anteriormente diversos casos de “eleitores infiéis” agirem em não conformidade com as indicações do voto popular.

Trinta e três estados e o Distrito de Colúmbia possuem leis ou regras partidárias que exigem esta fidelidade, mas apenas cerca da metade destas jurisdições dispõe de mecanismos de imposição. Alguns estados, além de anularem o voto dissidente, podem impor penalidades como multas e mesmo prisão. Em julho de 2020 a Suprema Corte decidiu que são constitucionais as leis estaduais que penalizam ou substituem eleitores infiéis.

Uma conspiração em andamento?  Lithwick e alguns analistas temem que Trump esteja investindo no acirramento de tensões com o intuito de gerar um ambiente confuso, propício para a tentativa de interferir na decisão de algumas delegações do Colégio Eleitoral. Assim, não seria surpresa se forem retomadas em breve as acusações de corrupção contra Joe Biden, agitando ainda mais o país, já abalado pela crescente disseminação da Covid-19.

A data crítica será em 14 de dezembro, quando os eleitores do Colégio Eleitoral se reunirão em seus respectivos estados e no Distrito de Colúmbia (onde fica Washington). Se a conspiração for adiante, o resultado da votação presidencial poderá não corresponder à decisão do voto da nação em 3 de novembro, seja pela ação de governadores do GOP substituindo eleitores das delegações, ou pela ação de “eleitores infiéis” agindo por conta própria.

Se esta primeira fase da conspiração for bem sucedida, a consumação do golpe se daria em 6 de janeiro, quando em sessão conjunta do Congresso presidida pelo vice-presidente por Mike Pence, serão contados os votos recebidos dos estados. Durante a leitura da votação de cada estado poderão ser levantadas objeções pelos membros do Congresso. Mas para haver contestação de qualquer resultado é necessária a concordância de ambas as Casas. Como a eleição na Geórgia está prevista para ocorrer apenas em 5 de janeiro, os Republicanos ainda terão a maioria no Senado. 

Se prevalecer esta ou alguma outra manobra golpista, pode se antever a ocorrência de protestos generalizados pelo país. Talvez já antecipando esta possibilidade, Trump afastou há poucos dias o secretário de defesa Mark Esper, uma decisão inesperada para um governo em final de mandato. Esper se opusera ao uso de tropas militares no combate aos distúrbios internos que agitaram o país no verão. Para seu lugar foi nomeado Christopher Miller, que até recentemente estava a frente do Centro Nacional de Contraterrorismo.

Se as tropas não se recusarem a obedecer as ordens de atirar nos manifestantes, os eventos de 1989 na Praça da Paz Celestial (Tiananmen), na China, irão parecer brincadeiras de crianças em um playground. Para Trump, seria melhor deixar o país agora, para não precisar responder depois também por Crimes Contra  Humanidade.

Notas do autor:

1. Jane Mayer é autora do livro Dark Money, em que relata como grandes corporações e bilionários fazem uso de doações anônimas para interferir na indicação de juízes, e influir no resultado de processos judiciais.

O autor é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Estados Unidos: bilionários e grandes corporações capturaram a Suprema Corte, por Ruben Rosenthal

As ações de doadores anônimos infestaram as Cortes com um cheiro de podre que pode trazer danos duradouros ao Judiciário como instituição.

O peso do dinheiro \ Arte: kanvag/stock photo

Através de uma articulação cuidadosamente planejada e que já vinha sendo conduzida há duas décadas, os juízes conservadores poderão exercer total controle da Suprema Corte norte-americana pelas próximas décadas. Com a recente indicação e aprovação da juíza Amy Coney Barrett a maioria conservadora foi ampliada para 6 a 3. Um dos pilares que deveria garantir o equilíbrio dos três poderes em um Estado Democrático de Direito está agora com totalmente comprometido.  

Por trás deste “golpe político” que se consolidou lentamente estão bilionários e grandes corporações. A predominância dos conservadores trará consequências ainda imprevisíveis, mas que certamente afetarão causas trabalhistas e relacionadas com os direitos civis e humanos, colocando também em risco a atual legalidade do aborto e conquistas do movimento LGBT. No histórico de Barrett consta que ela atuou por três anos no conselho de administração de uma escola privada cristã que discriminava professores gays e lésbicas, e que não aceitava alunos com pais do mesmo sexo.

Nos últimos dias foram constantes as imagens da juíza Barrett sendo sabatinada em audiências no senado norte-americano, como parte do procedimento para ocupar a vaga aberta na Suprema Corte. Tendo sua aprovação previamente assegurada pela maioria Republicana, a juíza pôde se dar ao luxo de ser totalmente evasiva na maioria das respostas, mesmo quando questionada sobre eventuais violações da Constituição do país por parte de Donald Trump.

No meio de tanta desfaçatez por parte de Barrett e da hipocrisia de senadores Republicanos, que aceitaram fazer parte de uma completa farsa que apenas expõe ao mundo as falhas da democracia norte-americana, há que se destacar a sabatina conduzida por Sheldon Whitehouse, senador Democrata e ex-procurador geral pelo Estado de Rhode Island.

Whitehouse aproveitou a audiência para reforçar denúncias que dinheiro de origem anônima (dark money) vem sendo utilizado para solapar o sistema democrático nos Estados Unidos. Não é novidade que os lobistas das grandes corporações já possuíam enorme influência no Congresso norte-americano. Entretanto a integridade da Suprema Corte ainda permanecia inquestionável até poucos anos atrás. Agora não mais.

Em discurso de setembro de 2016 no senado (ver transcrição), Whitehouse já citara informações contidas no livro Dark Money, de Jane Mayer, para denunciar bilionários de direita como os irmãos Charles e David Koch (David faleceu em 2019) que estavam interferindo de forma oculta nas discussões sobre mudança climática que ocorriam então no Congresso. Entidades como Donors TrustDonors Capital Fund e Bradley Foundation foram peças centrais na cadeia promíscua de repasse de fundos para think tanks, grupos de interesse, associações de comércio, fundações e acadêmicos, com o objetivo de contestar evidências científicas que mostravam a relação dos combustíveis fósseis com mudanças climáticas.

Segundo Fact Check, um dos grupos de interesse conservadores mais influentes é Americans for Prosperity (AFP), fundado por David Koch. AFP foi uma força principal de apoio ao movimento ultraconservador Tea Party, na defesa de menores impostos, limitação de gastos do governo e da desregulamentação.

Senador Whitehouse sabatina a juíza Amy Barrett sobre a rede de doações anônimas que corrompeu o Judiciário \ Foto: Greg Nash/Pool via CnP/CNP via ZUMA Wire

Também partiram do grupo, fortes ataques ao Affordable Care Act, o programa de saúde mais acessível à população implantado por Obama em 2010. Mais de 407 milhões de dólares foram investidos nas eleições de 2012 pela rede de doadores apoiada por Koch, sendo o Obamacare um dos alvos da campanha. Conforme publicado no New York Times em 2013, cerca de 20 milhões de dólares seriam usados em ataques ao Obamacare visando as eleições de 2014. No livro de Jane Meyer é citado que Americans for Prosperity anunciara que iria investir 750 milhões na campanha eleitoral norte-americana de 2016.

Na estrutura da rede de influência dos irmãos Koch, o grupo Freedom Partners (atual Stand Together) faz o papel de banco secreto, encaminhando doações anônimas para promoção de causas conservadoras. Americans for Prosperity foi apenas um dos grupos de intermediação financiados pelo banco secreto dos Kochs. A NRANational Rifle Association, entidade lobista pró-armas, e a Câmara de Comércio dos Estados Unidos também se beneficiaram.

Em fevereiro de 2020 o senador Whitehouse publicou um extenso artigo no Harvard Law Journal on Legislation (HLJL), que tratou em profundidade como as doações anônimas foram usadas para corromper diversos setores da estrutura do Estado norte-americano.

Para o senador, as corporações manipulam o poder de comando na democracia norte-americana. “Este poder é frequentemente direcionado para que forças corporativas possam subverter o livre mercado em vantagem própria, proteger sua própria capacidade de influência e se esquivar da responsabilidade por danos causados ao público”.

Um exemplo citado no artigo é o da Câmara de Comércio dos Estados Unidos, que gastou 1,5 bilhão de dólares em atividades lobistas nas últimas duas décadas, atuando principalmente na negação climática, de políticas salariais igualitárias, e flexibilizando restrições ao comércio de tabaco. A entidade recebe financiamento do referido banco secreto dos Kochs.

Whitehouse relata ainda que após o “infame” caso Citizens  United v. FEC, em que o grupo conservador Citizens United, representando interesses corporativos, acionou na justiça a Comissão Eleitoral (Federal Election Commission, FEC), que impunha limites aos gastos nas campanhas eleitorais. Pela decisão de 2010, a Suprema Corte removeu as restrições de gastos por corporações, sindicatos e organizações sem fins lucrativos nas campanhas de mídia e de propaganda política, abrindo também o caminho para a ocultação da origem dos financiamentos.

Whitehouse denunciou que as corporações “capturaram” as agências reguladoras. Na administração Trump, a Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) passou a ser controlada por pessoal ligado diretamente à indústrias poluidoras. A Secretaria do Departamento Interior, responsável pela administração das terras federais, foi entregue a um lobista da área de petróleo e gás. O resultado não poderia ter sido outro que a concessão de imensas áreas à prospecção de fontes de energia não renovável e poluidoras do meio ambiente, além do atraso na aprovação de projetos de geração de energia eólica.

O senador relata no artigo do HLJL que ao longo de vários anos foi sendo também coordenada a nomeação de juízes pró-desregulamentação, favoráveis às corporações. Este aparelhamento das Cortes (court packing) foi obtido através da ação de grupos de fachada financiados secretamente por uma rede de doadores de direita. Como os juízes federais ocupam cargos vitalícios, “o efeito nefasto será sentido por várias décadas, principalmente porque os juízes, sob um manto de neutralidade, assumem o ônus de adotar decisões impopulares que muitos políticos não teriam coragem de assumir” perante os eleitores.

Judicial Crisis Network (JCN) é uma das organizações envolvidas no encaminhamento de doações anônimas para influenciar o Judiciário, citadas no artigo do HLJL.  A interferência pode se dar através de campanhas a favor ou contra os indicados.

No governo Obama, um “doador desconhecido” contribuiu com 17 milhões de dólares para barrar a indicação de Merrick Garland para a Suprema Corte, e apoiar posteriormente a indicação de Neil Gorsuck para a mesma vaga, já na administração Trump. Em 2018, JCN recebeu possivelmente do mesmo doador outros 17 milhões para a intermediação do apoio à indicação de Brett Kavanaugh, que precisou superar acusações de que cometera abusos sexuais na juventude.

Segundo Whitehouse, por trás destas campanhas estava o advogado Leonard Leo, 59, o principal articulador do plano para garantir a indicação de juízes conservadores para as Cortes federais, como também para influenciar no desfecho das causas. Detalhes da estratégia adotada foram relatados pelo jornal The Washington Post em artigo de maio de 2019.

Leo é vice-presidente executivo da Federalist Society, uma influente organização de advogados conservadores e libertários (ultraliberais), com ligações próximas com juízes da Suprema Corte. Ele atua também para solapar candidaturas que não atendam aos interesses defendidos pela Federalist Society.

Leo revelou na entrevista ao Post que conseguira prejudicar a indicação de Robert Bork para a Suprema Corte em 1987.  Em 2005 e 2006, liderou as campanhas para apoiar as indicações de John G. Roberts Jr., atual presidente da Corte, e de Samuel A. Alito, este indicado em substituição à candidatura de Harriet Miers, que fora contestada pelo próprio campo conservador. Foram gastos nas duas campanhas cerca de 15 milhões de dólares provenientes de doações anônimas.

Mesmo durante o período Obama, a influência e as conexões políticas de Leo continuaram a crescer. Entre 2014 e 2017 os grupos ligados a Leo arrecadaram mais de 250 milhões de dólares para investir nas campanhas de apoio à políticas conservadoras.

Ainda segundo o artigo do Post, em março de 2016 Leo se reuniu com Trump, quando este estava tentando ser indicado como candidato Republicano à presidência. Foi quando Leo conseguiu apoio de Trump para o objetivo de consolidar o domínio conservador nas Cortes federais. Durante a campanha presidencial, Leo se tornou presidente de três grupos­ que não têm funcionários nem dispõem de websitesBH Fund, Freedom and Opportunity Fund e  America Engaged. Todos os três grupos contrataram a empresa CRC Public Relations, que realizou uma campanha sofisticada de mídia.

Com a eleição de Trump, Leo levantou financiamento para as campanhas de Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh, com a participação dos três fundos presididos por ele. America Engaged doou 1 milhão de dólares para a campanha pró-armas da National Rifle Association. A NRA, por sua vez, repassou no mesmo ano 1 milhão de dólares em apoio à campanha de Gorsuch para a Suprema Corte. Estes exemplos mostram o modus operandi da rede de organizações que vem aparelhando as Cortes federais dos Estados Unidos.

Com a indicação e aprovação de Barret para ocupar a vaga aberta com o falecimento da juíza progressista Ruth Bader Ginsburg, as causas conservadoras ficaram reforçadas. Entretanto, o apoio aos valores “morais e éticos” abraçados pelo conservadorismo constituem apenas a ponta visível do iceberg.  Pode-se esperar também que os interesses das grandes fortunas sejam favorecidos em detrimento do cidadão comum nos julgamentos nas Cortes. 

Falando em aparelhamento da Corte \ Arte: Signe Wilkinson/Philadelphia Inquirer

O artigo de Sheldon Whitehouse no HLJL detalha como os interesses corporativos atuam para vencer as causas nas Cortes. Após a posse do juiz favorecido pela campanha da rede de influência conservadora, casos estratégicos serão direcionados para este juiz. Durante o julgamento, amici curiae (amigos da Corte) bancados pelos mesmos doadores anônimos irão se manifestar, ecoando estes interesses.

Whitehouse cita um caso em que 13 amici curiae foram financiados por entidades que também estavam financiando a Federalist Society.  Em outro caso, 16 fundações de direita doaram cerca de 69 milhões de dólares para grupos pressionarem a Suprema Corte a abolir o Centro de Proteção Financeira ao Consumidor.  

O juiz da Suprema Corte, John G. Roberts é mencionado no artigo de Whitehouse por atuar a serviço dos interesses do partido Republicano. Durante a gestão de Roberts à frente da Corte (iniciada em 2005), cerca de 80 decisões polêmicas foram tomadas pelo placar de 5 a 4, em que os votos se deram em bases estritamente partidárias (assistir Whitehouse em vídeo). O voto de minerva coube a Roberts, indicado para a Corte pelos Republicanos.

Estas decisões beneficiaram diretamente grandes corporações e interesses de doadores republicanos, incluindo autorizar gastos ilimitados em eleições, impedir normas de poluição, coibir direitos de votos das minorias, prejudicar o direito de organização sindical e o de trabalhadores acionarem os empregadores na justiça.

As ações de doadores anônimos infestaram as Cortes com um “cheiro de podre”, que pode trazer danos duradouros ao Judiciário como instituição. Cabe ao Congresso adotar passos para deter a erosão da confiança e trazer a Corte de volta ao seu papel constitucional”, acrescentou Whitehouse.

O senador não acredita que seja o caso de limitar o tempo de mandato ou de acrescentar mais assentos à Corte, como sugerido por alguns críticos da atual situação. Para ele, o primeiro passo lógico seria tomar medidas para tornar o Judiciário mais transparente. Whitehouse propõe então cinco ações principais para abrir a caixa preta do Judiciário.

-Introdução de legislação para revelar os grandes doadores que financiam os “amigos da Corte”, de forma a deter a influência dos interesses das corporações.

-Proibição de juízes receberem presentes ou terem despesas de passagem e hospedagem pagas como cortesia: “quando o juiz Scalia morreu em 2016, ele se encontrava hospedado em um alojamento de caça, com suas diárias de 700 dólares sendo bancadas por um empresário que fora favorecido em uma reclamação trabalhista na Suprema Corte”. 

-Transparência das agendas de reuniões de juízes com partes litigantes e amici curiae.

-Preservação dos arquivos pessoais dos juízes. Para o senador é de interesse público que tais arquivos sejam transferidos para o Arquivo Nacional após a morte do juiz.

-Regulamentação das doações relacionadas com as indicações de juízes. As despesas com as campanhas devem ser relatadas à Comissão Eleitoral Federal.

Mesmo que Trump perca as próximas eleições, já estão assegurados os interesses da minoria dos 10% mais ricos que detém 77% da riqueza do país. O Congresso norte-americano precisaria aprovar medidas que possam assegurar que as decisões do Judiciário não contribuam para ampliar ainda mais esta discrepância, e que idealmente consigam reduzir as disparidades. 

Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Reino Unido: Suprema Corte impede o golpe chancelado pela Rainha, por Ruben Rosenthal

Com poucas semanas de governo do primeiro ministro Boris Johnson, o país parece caminhar para o caos econômico e institucional, com o risco de ficarem comprometidos alguns dos fundamentos básicos da longeva democracia parlamentar.  

reopen parliament
Manifestantes protestam contra a ampliação  do Parlamento   /   Foto James Veysey / REX

Na seqüência ao artigo que abordou a corrupção no sistema de doações eleitorais, a série sobre o Reino Unido prossegue, tratando da crise institucional em que o país mergulhou quando as prerrogativas do Parlamento foram usurpadas, com a decisão do primeiro ministro Boris Johnson de ampliar o período de recesso do Parlamento.

Com pouco mais de um mês no governo, e com o aval da Rainha, Johnson  encaminhou  que o Parlamento tivesse suas atividades suspensas (derogation) no período começando em 9 ou 12 de setembro, e se estendendo até 14 de outubro.

A retomada dos trabalhos se daria, portanto, apenas 17 dias antes da data prevista para o país sair da UE, dificultando assim a ação dos parlamentares contrários a um “Brexit sem acordo”. Caso o acordo não seja alcançado, Johnson pretende forçar um “Brexit rígido”, apoiado por especuladores que apostaram bilhões em uma saída desordenada.

A imposição da suspensão forçada das atividades dos parlamentares só foi possível, por ter sido chancelada pela Rainha Elisabeth II. Existem  controvérsias sobre se a monarca poderia ter se recusado a aceitar o encaminhamento do primeiro ministro.

A reação dos opositores de Johnson foi imediata. John Bercow, que preside os debates na Câmara (speaker), declarou que o ato foi um “ultraje constitucional”. O chanceler de Theresa May, Philip Hammond, descreveu a medida como “profundamente anti-democrática”. O ex-primeiro ministro pelo Partido Conservador, John Major, afirmou que a motivação de Johnson foi “sem dúvida, passar por cima da soberania do Parlamento, que se opõe, (em sua maioria) à política de Johnson para o Brexit”. Já  o líder trabalhista Jeremy Corbyn, declarou que “existe o risco que a rainha esteja fazendo uso de sua “prerrogativa real”, contra a vontade da maioria do parlamento”.

O consentimento da rainha para a suspensão do parlamento, foi dado após Sua Majestade receber o requerimento de Boris Johnson, encaminhado por 3 membros do Conselho Privado (Privy Council). O conselho é um órgão que tem centenas de membros, todos vitalícios, e que aconselha a rainha no uso de sua “prerrogativa real”. Na cerimônia de posse, os novos membros devem beijar a mão da rainha, e jurar defender a monarca, o que se torna um sério problema para socialistas e republicanos, como Corbyn.

Na prática, basta a presença de três membros para o Conselho Privado funcionar, um seleto petit comité. Um destes três que estavam presentes no encontro com Elisabeth II, foi o líder do Partido Conservador na câmara, o ultra-direitista Jacob Rees-Mogg, que declarou que o recesso forçado do Parlamento foi “um procedimento constitucional completamente apropriado”.

No entanto, existe o argumento de que Boris Johnson está ocupando indevidamente a função de primeiro ministro. “Não é dever constitucional da rainha, indicar o líder do maior partido no Parlamento para assumir o cargo”, de acordo com o ex-embaixador britânico Craig Murray. “O correto seria indicar a pessoa que possa comandar uma maioria na Câmara dos Comuns”, acrescenta.  

bojo e rainha

Boris Johnson  faz a reverência protocolar  à rainha ao ser indicado para o cargo de primeiro ministro  /   Foto Victoria Jones / WPA Pool / Getty Images

Murray considera que Elisabeth II atuou de forma inconstitucional ao indicar Boris Johnson ao cargo, tendo em vista que já estava absolutamente claro que ele não alcançaria maioria em votações importantes no Parlamento. E de fato, Johnson já foi derrotado seis vezes, nos seis casos relevantes já postos em votação.

Ainda segundo o ex-embaixador, e ativo defensor da independência da Escócia, a monarca, ao invés de concordar com a longa suspensão do Parlamento, deveria ter obrigado Johnson a renunciar, e convocado o líder da oposição, para que este tentasse formar uma maioria capaz de governar.

No entanto, a posição predominante na mídia corporativa britânica é de que a rainha não poderia ter se negado a aceitar o encaminhamento do primeiro ministro. Na prática, a chamada “prerrogativa da monarquia” é uma fantasia, segundo o correspondente da BBC para assuntos da realeza. “Como uma monarca constitucional, ela deve seguir o aconselhamento formal vindo do primeiro ministro. Rejeitá-lo, teria trazido problemas constitucionais”.

Um grupo supra-partidário de 75 parlamentares recorreu à justiça, apelando para a Court of Session, de Edinburgo, a mais alta corte civil da Escócia. Na ocasião, a Corte de Londres encontrava-se de férias. Os parlamentares argumentaram que o primeiro ministro exorbitara de seus poderes constitucionais.   

O juiz que analisou inicialmente o caso em Edinburgo, deu parecer interino contrário aos reclamantes, ao considerar que a questão dizia respeito apenas aos parlamentares e eleitores, e não à justiça. Entretanto, os três juízes de apelação da Corte, concluíram, por unanimidade, que o governo extrapolara de suas atribuições, ao impedir que o Parlamento exercesse suas funções regulares de questionar o governo. A decisão de Edinburgo seria, automaticamente, vinculante a todo o Reino Unido.

Numa tentativa de reverter a implementação do parecer, o governo encaminhou uma apelação para a Suprema Corte do Reino Unido. A Suprema Corte não é uma instituição centenária como o Parlamento, existindo há apenas exatos 10 anos. Mas foi esta “criança” que impediu, por unanimidade, que um golpe institucional contra o Parlamento fosse perpetrado por Johnson.   Em 24 de setembro, a decisão unânime dos 11 juízes da Corte foi de que a suspensão do Parlamento havia sido ilegal. Segundo a presidente da Corte, Lady Hale, a decisão de ampliar o recesso do Parlamento tinha o “efeito de impedir que as atribuições constitucionais na casa fossem exercidas”. O “efeito sobre os fundamentos de nossa democracia foi extremo”, acrescentou. 

A general view shows Court One during the opening of the Supreme Court of the United Kingdom in London
Suprema Corte do Reino Unido em sessão

A leitura do memorável parecer, pela presidente da Suprema Corte do Reino Unido, pode ser assistida em vídeo (em inglês). É imperdível para os que acreditam que a justiça pode ser uma barreira contra os arbítrios de governos déspotas. E deveria ser obrigatoriamente assistido, como dever de casa, pelos membros do STF do Brasil. Os nossos ministros do Supremo poderiam se espelhar no exemplo dos 11 juízes da Corte, para se redimirem da complacência com o golpismo e violações à Constituição do país.

As decisões da Corte de Edinburgo e da Suprema Corte mudaram radicalmente o cenário legal no Reino Unido, ao introduzirem o precedente de judicialização de ações do executivo. No caso em questão, a intervenção do judiciário impediu o golpe institucional contra o Parlamento, demonstrando a férrea adesão aos princípios constitucionais pelos juízes de ambas as Cortes. No entanto, existe sempre o risco de que este precedente possa ser desvirtuado no futuro, com conseqüências que conhecemos bem no Brasil.

A decisão da Suprema Corte não impede, no entanto, que Boris Johnson encaminhe nova suspensão do Parlamento, desta vez de duração mais restrita. E é exatamente o que ele está ameaçando fazer, se conseguir mais uma vez contar com a concordância da rainha. O objetivo de Johnson é que a nova sessão legislativa comece a partir do “discurso da rainha”, em 14 de outubro, antecedendo em 3 dias apenas, a uma reunião crucial da União Européia.

O Brexit está marcado para ocorrer em 31 de outubro, caso o governo não peça outra prorrogação. Para tentar superar uma das principais dificuldades de se chegar a um acordo com a UE, que é a questão das fronteiras da Irlanda do Norte, o governo pretende propor uma solução “meia-sola”, na esperança que seja aceita por Bruxelas.

hard border no border

Cartaz contra fronteiras entre as Irlandas /   Foto Charles McQuillan  /  Getty Images 

À oposição não interessa forçar eleições gerais antes que o assunto da prorrogação da saída da UE esteja resolvido. Por uma lei recente aprovada no Parlamento, Johnson é obrigado a pedir um adiamento de 3 meses no Brexit, caso não se chegue a um acordo em 19 de outubro. Se ele tentar desobedecer, a rainha poderá demití-lo, segundo alertou o ex-procurador geral, Dominic Grieve. Johnson ficaria apenas com a opção de ceder e implorar por novo adiamento da data de saída.

Mas o primeiro ministro está determinado a permanecer no cargo e consumar o Brexit até o final do mês, mesmo se para isto, for preciso arrastar a rainha para uma gravíssima crise constitucional. Caso os parlamentares tentem derrubar seu governo através de um voto de confiança, para instalar um governo de unidade nacional, e com isto adiar a saída do Reino Unido da UE, Johnson estaria disposto desafiar a rainha a demití-lo.

Os próximos dias serão de máxima tensão na ilha. Segundo o Financial Times, não existe impedimento constitucional para a rainha convidar outro líder político a formar um governo de maioria, posição já defendida anteriormente por Craig Murray.

*Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacolhando.