Farsa: TPI isenta britânicos de Crimes de Guerra no Iraque

Por Ruben Rosenthal

A Procuradoria do Tribunal Penal Internacional desconsiderou que as  autoridades britânicas obstruíram as investigações, apesar de diversas denúncias neste sentido constarem do relatório. 

Tropas britânicas no Iraque são acusadas de crimes de guerra
Tropas britânicas atuam em operações militares no Iraque desde 2003 \ Foto: Picture Alliance/PA

O Tribunal Penal Internacional encerrou em dezembro de 2020, o inquérito preliminar que conduzia contra militares britânicos por acusações de crimes de guerra no Iraque. O parecer da procuradora-chefe do TPI, a gambiana Fatou Bensouda, apesar de reconhecer que crimes de guerra foram de fato cometidos, desconsiderou que autoridades do Reino Unido obstruíram as investigações e acobertaram provas que incriminavam os militares.

O Estatuto de Roma, que rege o TPI, estabelece a inadmissibilidade da abertura de indiciamentos pela Corte de Haia quando um país promove os inquéritos internos de forma apropriada. Esta foi a justificativa usada por Bensouda para sustar o processo e que mostrou o caminho para que no futuro, crimes de guerra cometidos pelas grandes potências não sejam punidos.

Só que os procedimentos investigativos conduzidos no Reino Unido consistiram de um simulacro de justiça, uma completa farsa. Coincidentemente, o parecer da procuradora foi proferido no momento em que o governo de Sua Majestade está empenhado na aprovação da Overseas Operations Bill, legislação que protegeria seus militares de serem processados por quaisquer crimes cometidos há mais de cinco anos, incluindo crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

A Procuradoria perdeu a oportunidade de desmentir a narrativa que se consolida cada vez mais, de que o TPI é uma corte de justiça que condena apenas os adversários das potências ocidentais, como líderes e militares africanos. O mesmo ocorreu também com Slobodan Milosevic, ex-presidente da Sérvia, que só foi absolvido anos após sua morte no cárcere.

As acusações de crimes de guerra

As tropas britânicas fizeram parte da coalizão de países do Ocidente que em março de 2003 invadiram e ocuparam o Iraque, na sequência das acusações de que o regime de Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa. Entretanto, a existência de tais armas jamais foi comprovada, indicando que a acusação se tratara apenas de um pretexto para a deposição de Saddam e a exploração do petróleo país.

A própria invasão do Iraque poderia ser enquadrada como um crime de guerra que, entretanto, o TPI anteriormente optara por ignorar, sob a alegação de que na ocasião do conflito as guerras de agressão ilegais – sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, não estavam incluídas no Estatuto de Roma como crimes de guerra.

O ex-embaixador britânico e ativista de direitos humanos Craig Murray avalia, no entanto, que “guerras de agressão ilegais” já estavam então bem estabelecidas na lei internacional, tanto que formaram a base do julgamento de Nüremberg em 1945/46.  Assim, não seria necessária a menção específica no Estatuto, para a Corte de Haia abrir procedimentos jurídicos contra os invasores do Iraque. Para Murray, o ex-primeiro-ministro britânico deveria estar preso pela invasão do Iraque. 

Manifestantes com faixa pedem o julgamento de Tony Blair por crimes de guerra no Iraque e Afeganistão
Manifestantes pedem o julgamento de Tony Blair por crimes de guerra, residência de Blair, Londres, 2017 \ Foto: picture-alliance/PA Wire/J.Brady

O Centro Europeu para Direitos Humanos e Constitucionais (ECCHR, na sigla em inglês) submeteu a partir de 2014, vários dossiês com evidências de abusos sistemáticos praticados contra prisioneiros no Iraque pelas forças de ocupação britânicas. Finalmente, em dezembro 2017, a Procuradoria do TPI confirmou em parecer que havia uma base razoável para se acreditar que crimes de guerra haviam sido cometidos no Iraque, incluindo assassinatos, tortura, tratamento cruel e desumano, atentados à dignidade pessoal, estupros e outras formas de violência sexual. O inquérito teria então prosseguimento.

Falta de provas ou acobertamento?

Em julho de 2019 o ECCHR fez nova submissão de documentação, focando nas falhas do Reino Unido em levar adiante processos judiciais internos dos casos de tortura e de outros abusos cometidos por suas tropas. Em novembro de 2019, conforme relatado pela BBC-Brasil, uma investigação conduzida pelo programa Panorama, da BBC, e pelo jornal britânico Sunday Times revelou fortes evidências do envolvimento de tropas britânicas em crimes de guerra no Iraque e no Afeganistão.

As evidências apresentadas vieram do Time de Alegações Históricas do Iraque (IHAT, na sigla em inglês), grupo criado pelo próprio governo britânico para investigar as alegações de torturas e abusos cometidos por suas tropas. O já extinto IHAT era composto por investigadores e ex-investigadores da polícia, polícia militar e da marinha, e se deparou com tentativas de acobertamento de provas pelas autoridades militares e governo.

Em junho de 2020, o diretor do Service Prosecuting Authority (SPA, na sigla em inglês), órgão correspondente ao Ministério Público, comunicou à emissora BBC que apenas um único caso ainda permanecia sob investigação interna, sendo que as demais acusações haviam sido descartadas por falta de provas e pelo “baixo nível das infrações supostamente cometidas pelos militares britânicos”. O SPA é um órgão ligado ao Ministério da Defesa (MoD, na sigla em inglês), e principal autoridade de acusação na justiça britânica para o pessoal em serviço militar. 

O parecer tendencioso do TPI

Em 9 de dezembro de 2020 foram divulgadas as conclusões do inquérito promovido pelo TPI. O relatório de 184 páginas confirmou que centenas de prisioneiros iraquianos, muitos dos quais civis, foram submetidos a abusos de diversas naturezas por soldados britânicos, no período entre 2003 e 2008. Entretanto, segundo Fatou Bensouda, “A Procuradoria não pode concluir que os procedimentos não foram conduzidos pelas autoridades britânicas de forma independente e imparcial….e que as investigações tenham sido inconsistentes com a intenção de trazer os responsáveis à justiça”. Esta foi a justificativa apresentada pelo TPI para não indiciar militares britânicos.

O ex-embaixador Craig Murray, com o seu amplo conhecimento das artimanhas do MoD, percebeu que relatório do TPI fora escrito com a ótica das forças de ocupação. Os iraquianos que resistiram aos invasores são referidos como “insurgentes” no documento da Procuradoria. Murray alerta que em nenhum momento foi apresentado qualquer testemunho feito por vítimas iraquianas. O TPI baseou seu relatório inteiramente em entrevistas realizadas com autoridades britânicas. Nenhuma das 776 notas de pé de página se referem a documentos de origem árabe.

Apesar destas limitações evidentes, o inquérito concluiu que as tropas britânicas foram responsáveis por crimes de guerra em larga escala, tipificados no parágrafo 71 do relatório. No entanto, Murray salienta que nenhum dos crimes para os quais existem boas evidências, em função do trabalho realizado pelo IHAT, resultou em indiciamentos de militares na justiça britânica. As recusas se deram principalmente pela ação do SPA, ao qual o IHAT devia se reportar.

Murray salienta que ocorreram duas exceções, que apenas comprovaram a regra geral de que as autoridades britânicas procuraram a todo custo evitar a condenação de seus militares envolvidos em abusos de direitos humanos. Em uma das circunstâncias, como forma de obter “troféus” de guerra, um soldado fotografou seus colegas cometendo torturas e abusos sexuais contra prisioneiros. Os filmes foram enviados para revelação em uma loja, o que levou o atendente a fazer uma denúncia junto à polícia civil. O outro caso se tratou de uma confissão espontânea feita por um militar que estava com a consciência pesada (parágrafo 250 do relatório), mas seus colegas foram absolvidos.

Estas foram as únicas condenações pela justiça do Reino Unido por crimes de guerra cometidos no Iraque. O ex-embaixador Craig Murray avalia que, ao usar estas exceções como evidências de que o Reino Unido conduzira as investigações de forma apropriada, o TPI agiu de forma tendenciosa. A Procuradoria do Tribunal Penal Internacional desconsiderou que as  autoridades britânicas obstruíram as investigações, apesar de diversas denúncias neste sentido constarem do relatório. 

Obstrução das investigações

No relatório final da Procuradoria consta (parágrafos 380 a 385) que, para os investigadores do IHAT, as investigações não estavam passando para o estágio de formalização de acusações devido a obstruções, que só poderiam resultar de ações das chefias do próprio IHAT e do SPA. O SPA, sendo vinculado ao Ministério da Defesa, não poderia ser realmente imparcial em relação às forças armadas, segundo avaliação da equipe de campo do IHAT.

Diversos relatos vindos do IHAT mencionaram as dificuldades de obter evidências de posse do MoD e da Polícia Militar Real, que obstruíam o acesso aos arquivos. Caixas contendo evidências chegaram a ter a rotulagem trocada para dificultar a localização do material procurado.

Algumas passagens no relatório incluem citações, até mesmo de juízes que presidiram alguns dos casos que chegaram a ser levados à corte marcial, da ausência de depoimentos de testemunhas militares que presenciaram torturas e mortes (parágrafos 217, 219, 228, 331). Prevaleceu o comportamento corporativo de cerrar fileiras em defesa dos companheiros de farda, conforme mencionado nestas citações.

Para o ex-embaixador Craig Murray, não se pode mais argumentar que o TPI seja uma corte de justiça imparcial: “a autoridade moral (do TPI) foi totalmente perdida”, acrescentou.

Em 12 de fevereiro de 2021 foi eleito um novo procurador-chefe do TPI, o advogado britânico Karim Khan. Na nova gestão serão conduzidos, dentre outros, os inquéritos sobre as acusações de cometimento de crimes de guerra no Afeganistão por tropas norte-americanas, militares afegãos e pelo Talibã; de crimes cometidos por Israel e Hamas nos territórios palestinos ocupados; e a investigação das denúncias levantadas contra o presidente Jair Bolsonaro, de ter cometido genocídio e crimes contra a humanidade em território brasileiro.

Resta ver se Karim Khan dará motivos para o ex-embaixador Craig Murray rever sua avaliação de que os pareceres do TPI são favoráveis apenas aos interesses das potências ocidentais. 

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

Acuado, Netanyahu ameaça o Tribunal Penal Internacional com sanções

As ameaças de Benjamin Netanyahu se seguem à decisão do TPI de abrir investigação sobre crimes de guerra cometidos por Israel contra os Palestinos.

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Fatou Bensouda, promotora do TPI  /  Foto: Coalition for International Criminal Court

Em dezembro de 2019, a promotora do Tribunal, Fatou Bensouda1, anunciou a abertura de uma investigação sobre o cometimento de crimes de guerra contra palestinos na Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental, segundo relato no G1.

Uma investigação completa poderá levar à acusações contra indivíduos, já que Estados  não podem ser processados por aquela Corte. Assim, Netanyahu pode vir a ser indiciado como responsável pelas centenas de mortes de Palestinos nos conflitos com tropas israelenses.

Segundo relato do jornalista Noa Landau no periódico israelense Haaretz, o primeiro-ministro israelense declarou recentemente em entrevista à rede evangélica de TV, Trinity Broadcast Network, que a decisão do TPI representava um “amplo ataque frontal” na democracia e no direito do povo Judeu de viver em Israel.

A expectativa de Netanyahu era de aproveitar a realização, em Jerusalém, do Quinto Forum Mundial do Holocausto, em 23 de janeiro,  para angariar apoio de líderes mundiais na aplicação de sanções  contra o TPI, como forma de barrar as investigações.

A Palestina aderiu formalmente ao TPI em 2015, sob protestos de Netanyahu. O primeiro-ministro percebeu imediatamente que a medida abriria caminho para que, no futuro, autoridades israelenses pudessem ser acusadas de crimes de guerra e usurpação de territórios.

A promotora Fatou Bensouda já recebera, anteriormente, documento do presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, autorizando uma investigação preliminar de crimes  cometidos por Israel contra os Palestinos a partir de junho de 2014.

Embora Israel não seja membro do TPI, isto não impede que Netanyahu ou outras autoridades israelenses possam ser julgadas pelo Tribunal. Em 2018, Riyad al-Maliki,  ministro palestino das Relações Exteriores, solicitou oficialmente ao TPI, a abertura de investigação sobre crimes de guerra e de apartheid cometidos contra os palestinos.

Com a introdução do Estado-Nação Judaico em julho de 2018 (GGN), proliferaram as acusações de que Israel se tornara oficialmente um Estado racista, em que não-judeus passaram a ser cidadãos de segunda classe.

Também pode ser considerado como crime contra a humanidade, a implantação e expansão de assentamentos judaicos na Cisjordânia, reduzindo e separando as terras ocupadas pelos palestinos, recriando a execrável política dos bantustões, conduzida de 1940 a 1994 pelo regime de apartheid da África do Sul, e contra o qual Mandela liderou a resistência.

Os mapas da figura mostram a evolução temporal das terras ocupadas por judeus, partindo de umas poucas colônias ainda durante o mandato britânico, o mapa previsto pela ONU para a partilha de 1947 (Jerusalém em branco), o da independência do Estado de Israel, já com as terras conquistadas na guerra de 1948, e o mapa no ano 2000 , que mostra as terras que restavam na ocasião aos palestinos, como resultado da expansão dos assentamentos judaicos na Cisjordânia ocupada, que ainda prossegue nos dias atuais.

mapas palestina

Evolução da demografia na Palestina  / Fonte InfoPal 

Os relatos sobre os conflitos na fronteira entre Gaza e Israel, ocorridos em 2018, também foram analisados pela Promotora, para chegar a decisão recente de abrir a investigação sobre o cometimento de crimes de guerra. Estes conflitos decorreram em grande parte do bloqueio físico e econômico à Faixa de Gaza, como forma de deter o Hamas e impor a paz do vencedor.

O governo de Israel, no entanto, alega que o TPI só tem jurisdição quando petições são encaminhadas por Estados constituídos, o que não ocorre no caso dos palestinos, que não possuem seu Estado próprio.

Durante o evento do Holocausto, Netanyahu espera obter de líderes mundiais, como Macron, Putin e outros, apoio a sua tese de que o TPI não tem jurisdição sobre os territórios palestinos. No momento, o Tribunal está debatendo se possui ou não jurisdição para investigar crimes de guerra cometidos na Cisjordânia e em Gaza.

Notas do autor:

1. Fatou Bensouda, natural de Gâmbia, ocupará o cargo de promotora do TPI até junho de 2021.

2. A distinção de crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio e limpeza étnica está detalhada em documento da ONU.  

3. Em artigo anterior no blogue Chacoalhando foram analisadas as denúncias de  genocídio estar sendo atualmente cometido contra os povos indígenas no Brasil. Jair Bolsonaro e algumas autoridades brasileiras são fortes candidatos a seguirem os passos de Netanyahu, e terem contra si acusações feitas pelo Tribunal Penal Internacional.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e responsável pelo blogue Chacolhando.