Entrevistando Gideon Levy no programa Agenda Mundo

por Ruben Rosenthal

Para Gideon Levy, o caminho que ainda resta para se alcançar a paz definitiva entre judeus e palestinos é através da implementação da solução de um único Estado, com direitos iguais para todos.

Gideon Levy no Museu da Palestina, EUA, 2023 \ Foto: Palestine Museum US Corp.

Na terça dia 5, foi iniciada a temporada 2024 do programa Agenda Mundo, com a entrevista de Gideon Levy, do jornal israelense Haaretz. Ele é uma das poucas vozes em seu país a defender os direitos dos palestinos. Acredito que esta talvez tenha sido a primeira entrevista de Gideon a um veículo de mídia audiovisual no Brasil. Em vídeo anterior do programa, foi apresentado um mini documentário, com inserção de pequenos trechos de entrevista de Gideon Levy a um programa internacional.

Havíamos encerrado o ano de 2023 trazendo Bruno Huberman, judeu não sionista, professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC-SP. Tratamos na ocasião de várias questões, incluindo o massivo bombardeio indiscriminado à Gaza, na sequência do mortífero ataque surpresa do Hamas de 7 de outubro. Desde então, a situação dos palestinos na Faixa de Gaza se agravou de tal forma, que a África do Sul entrou com uma acusação de genocídio contra Israel na Corte Internacional de Justiça.

A ideia de de entrevistar Gideon Levy me ocorreu após publicar a tradução de um artigo de opinião no Haaretz, em que Gideon alertava para a catástrofe humanitária que resultaria caso tropas israelenses entrassem em Rafah, na Faixa de Gaza. Até então todas as entrevistas no Agenda Mundo haviam sido conduzidas em português, incluindo a de estrangeiros residentes no Brasil. Isso ocorreu com a do jornalista Glenn Greenwald, que inaugurou o programa, e do professor russo Alexander Zhebit (parte 1, parte 2), que na ocasião abordou a questão Rússia-Ucrânia, quando os principais analistas ainda acreditavam que não ocorreria um conflito militar entre os dois países.

Me pergunto o motivo do Gideon ter aceitado o convite, sem conhecer o programa e o entrevistador. Talvez tenha sido a necessidade de aproveitar cada oportunidade que surgisse, para denunciar os crimes cometidos por Israel contra os palestinos. Talvez o fato do entrevistador ser também de origem judaica tenha contado a favor, pois é do meio judaico que precisa partir o movimento que derrube de vez a falácia propagada por Israel de que o antissionismo é uma expressão de antissemitismo.

E é essa falácia que mantém reféns de Israel, a maioria de governantes e políticos dos Estados Unidos e da Europa, que se borram de medo de ver suas carreiras políticas destruídas pela ação do poderoso lobby pró-Israel. Abordamos o papel coercitivo desempenhado pelas entidades judaicas em diversos países, atuando no sentido de abafar críticas às ações de Israel. Jornalistas independentes também são atacados, como ocorreu com o Breno Altman, que está sendo processado pela CONIB, a Confederação Israelita do Brasil.

Um dos temas principais foi a questão do regime de Apartheid, a que palestinos de Gaza e da Cisjordânia vêm sendo submetido há décadas. Gideon relatou como a esquerda sionista foi também responsável por negar aos palestinos o direito à autodeterminação em um Estado próprio, antes mesmo de Netanyahu chegar ao poder. E de como a presença de ministros neonazistas na atual coalização que mantém Netanyahu no poder, levou a extremos a opressão aos palestinos.

O jornalista analisou a questão do impasse para se encontrar uma solução que leve ao cessar-fogo em Gaza, e a tolerância dos Estados Unidos com o genocídio em andamento. Foi abordada também a situação ao norte de Israel, com a possível escalada do conflito com o Hezbollah, e as perspectivas de se um dia se chegar a um acordo de paz com a Síria, que leve à devolução das Colinas de Golã.

Uma questão central discutida foi a aplicação de sanções contra Israel através do movimento BDS- boicote, desinvestimento e sanções. Gideon considera de máxima importância a participação dos países do Sul Global e dos jovens nos países do Ocidente, notadamente nos EUA.

Conversamos também sobre Marwan Barghouti, importante liderança palestina que se encontra encarcerada, cumprindo uma sentença de prisão perpétua. Barghouti foi o tema de um artigo recente no blogue Chacolhando. Segundo Gideon, Barghouti seria talvez o único que poderia atualmente conduzir os palestinos no caminho da paz com Israel.

Perguntei ao Gideon, se a melhor forma de se resolver a questão da autodeterminação dos palestinos seria através da formação de uma confederação de duas nações. Para ele, o caminho que ainda resta para se alcançar a paz definitiva entre judeus e palestinos é através da implementação da solução de um único Estado, com direitos iguais para todos.

Ele está ciente das dificuldades que surgirão, mas considera que esta é a única solução viável, pois avalia que seria impossível remover a ocupação ilegal exercida por cerca de 700 mil colonos judeus presentes na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, o que inviabilizaria completamente a solução de dois Estados.

Em retrospectiva, considero que ele poderia ter incluído em sua resposta uma análise sobre a confederação, a qual não entra necessariamente em contradição com a solução de um Estado. A confederação poderia ser a forma de implementar a solução de dois Estados, sem precisar remover os colonos judeus, como também poderia evoluir gradualmente para a solução de um Estado preconizada por Gideon, possivelmente de forma menos traumática que a implementação direta desta solução. Avalio agora que eu deveria ter insistido mais nesse ponto.

Deixei para o final do artigo, comentar sobre o começo da entrevista. Fiz questão de iniciar a entrevista procurando saber um pouco mais sobre a vida pessoal do entrevistado. Sobre os pais, que chegaram a Israel fugindo do nazismo, e sobre possíveis ameaças sofridas pelo jornalista, em função das posições defendidas por ele, principalmente agora, em que o ministério da segurança do país está nas mãos de um extremista de direita, como Itamar Ben-Gvir.

Para concluir, posso dizer que entrevistar Gideon Levy foi para mim foi uma experiência marcante.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, veiculado no canal da TV GGN e da TV Chacoalhando.

Liberdade para o Mandela palestino, Marwan Barghouti

por Ruben Rosenthal

A relutância de Israel em conceder liberdade a Marwan Barghouti não parece estar relacionada à visão de que ele se trata de perigoso terrorista, embora esta versão já tenha sido por vezes veiculada .

Marwan Barghouti
Patrulha de soldados israelenses no posto de checagem de Qalandiyah, em frente a um mural de Marwan Barghouti, pintado na barreira de separação da Cisjordânia\ Foto: Nasser Shiyoukhi/AP

Assim como Mandela, Marwan Barghouti achou necessário recorrer às armas para livrar o povo da opressão e dominação por forças coloniais. Como Mandela, ele foi condenado por terrorismo, e manteve forte liderança junto a seu povo. Resta ver, se assim como Mandela se tornou o primeiro presidente de uma África do Sul livre do regime racista de Apartheid, Barghouti irá se tornar o primeiro presidente eleito de um Estado Palestino independente e soberano, liberto das amarras do Apartheid imposto por Israel.

Marwan Barghouti se encontra encarcerado há mais de 20 anos, sentenciado à prisão perpétua cinco vezes, e mais 40 anos de detenção. Atualmente ele se encontra no presídio de Ofer, na Cisjordânia Ocupada, para onde foi transferido em setembro de 2023. Ele foi responsabilizado por ataques terroristas do grupo que chefiava, e que causaram a morte de quatro israelenses e um monge grego, em 2001 e 2002.

Seu nome está incluído em destaque na lista de prisioneiros palestinos que o Hamas deseja ver livres, como parte das negociações com Israel pela liberação dos reféns que ainda estão mantidos em Gaza. Barghouti pode vir a representar a união das forças políticas de Gaza e da Cisjordânia, fortalecendo o movimento pela tão almejada autodeterminação palestina.

Mas criação de um Estado Palestino representa uma heresia para Israel. E isso, não apenas para Netanyahu e seus apoiadores da extrema direita fundamentalista, mas também para um amplo espectro de políticos de centro e mesmo de esquerda, que sempre adiaram a solução da questão palestina.

Barghouti, entre a política e a luta armada

Informações sobre Marwan Barghouti aqui contidas foram obtidas principalmente de artigos do periódico israelense Haaretz, notadamente de matéria da jornalista Rachel Fink.

Em 1974, aos 15 anos de idade, Marwan se juntou ao movimento Fatah liderado por Yasser Arafat, tendo participado da fundação do Movimento Fatah Jovem, na Cisjordânia. Sua primeira prisão ocorreu aos 19 anos, por participar de um grupo armado, o que lhe custou uma sentença de sete anos. Ele aproveitou para completar o curso secundário e aprender hebraico, a língua dos opressores.

Ao final da década de 80, Barghouti participou da primeira intifada. Ele foi detido e deportado para a Jordânia, só retornando à Cisjordânia após sete anos, em 1994, com os acordos de Oslo.

Em 1996, Marwan foi eleito para o novo parlamento da Autoridade Palestina, o Conselho Legislativo Palestino. Ele se colocou contra os abusos de direitos humanos praticados pelos serviços de segurança de Arafat e a corrupção na Autoridade Palestina. Nesta fase, ele manteve contatos com políticos israelenses e ativistas do movimento pela paz de Israel.

A desilusão com a possibilidade de se alcançar a autodeterminação palestina de forma pacífica veio com o colapso das negociações de Camp David, Estados Unidos, de julho de 2000. Na ocasião, o fracasso foi atribuído na mídia à intransigência de Arafat, quando o que ocorrera – sabe-se agora – foi uma manobra do primeiro ministro israelense, Ehud Barak, com o apoio de Bill Clinton, então presidente dos EUA, de tentar impor condições bastante desfavoráveis aos palestinos, praticamente uma capitulação.

Barghouti participou então da segunda intifada, que eclodiu em setembro de 2000. Ele se tornou líder do Fatah na Cisjordânia, e chefe do braço armado, Tanzim, passando a defender a expulsão dos israelenses da Cisjordânia e da Faixa de Gaza1.

Após ter escapado de um atentado israelense, Marwan foi preso em Ramallah, julgado e condenado à prisão perpétua por cinco mortes cometidas pelo Tanzim. Mesmo não tendo participação direta nas mortes, Marwan teria sido responsável por ordenar os atentados. No entanto, seu encarceramento não representou o ocaso de sua influência política, pelo contrário.  Ele teve um papel decisivo no processo de mediação entre Hamas e Autoridade Palestina em 2007, seguindo-se aos confrontos sangrentos que ocorreram após o processo eleitoral que levara à vitória do Hamas.

O aumento do prestígio de Barghouti já era previsto por Ehud Barak. Nas palavras do então ex-primeiro-ministro israelense: “Ele lutará pela liderança de dentro da prisão, sem precisar provar nada. O mito crescerá constantemente, por si só.”

Ariel Sharon, que assumira a chefia do governo israelense, viu a possibilidade de usar Barghouti como moeda de troca com o governo norte-americano, para obter a libertação do espião Jonathan Pollard. Ao final, a troca não se concretizou, e o líder palestino permaneceu preso. Pollard foi libertado em 2015, após encarceramento por 30 anos nos EUA.

Em 2017, Barghouti organizou uma greve de fome de prisioneiros palestinos, que durou 40 dias. A greve conseguiu restabelecer o direito a duas visitas mensais, que as autoridades israelenses haviam reduzido a uma única visita. Esta é outra semelhança com Mandela, que de sua cela liderou greves para obter melhores condições para os prisioneiros, em um movimento que ganhou reconhecimento das Nações Unidas.

Assim, mesmo encarcerado, Barghouti, manteve sua influência política. Em 2021, em oposição a Abbas, ele apresentou uma lista independente de candidatos parlamentares à Comissão Eleitoral Central da Autoridade Palestina. Com isso, ocorreria uma grande mudança no mapa político palestino nas eleições que seriam realizadas em maio daquele ano.

O primeiro nome da chapa era de um sobrinho de Yasser Arafat, vindo na sequência, o nome da esposa de Barghouti, Fadwa. Temendo então que o prestígio crescente de Barghouti desafiasse sua presidência da Autoridade Palestina,  Abbas adiou indefinidamente as eleições previstas, sob o pretexto da recusa de Israel em permitir a inclusão de Jerusalém Oriental no processo eleitoral.

Agora, com os conflitos em Gaza, apesar de sua impopularidade com os palestinos,  Abbas espera que os israelenses lhe entreguem o comando da Faixa de Gaza, em um imaginado cenário de derrota e eliminação do Hamas.

Já as atuais lideranças do Hamas parecem não temer o prestígio que Barghouti goza entre os palestinos, confirmado pelas pesquisas de opinião. De fato, uma sondagem de dezembro de 2023 realizada pelo Palestinian Center for Policy and Survey Research (PSR), indicou que 55% dos palestinos na Cisjordânia e em Gaza votariam em Barghouti, ficando assim à frente de Ismail Haniyeh, do Hamas, e de Mahmoud Abbas.

Ao pedir a libertação de Barghouti, as lideranças do Hamas querem passar uma imagem de responsabilidade e de representatividade, já pensando no período que se seguirá ao fim da era Abbas no comando da Autoridade Palestina.

Liberdade para Marwan Barghouti

O Hamas já havia tentando libertar Barghouti, quando das negociações para a libertação do soldado israelense Gilad Shalit, em 2011. Ao final, foi obtida a soltura de 1.027 prisioneiros palestinos, mas Barghouti foi um dos prisioneiros que Israel não aceitou incluir na lista.

A relutância de Israel em conceder liberdade a Marwan Barghouti não parece estar relacionada à visão de que ele se trata de perigoso terrorista, embora esta versão já tenha sido por vezes veiculada. Ao contrário, Barghouti é visto como um moderado por vários setores em Israel, e representaria um contraponto ao extremismo do Hamas. No passado, antes de se tornar presidente de Israel, Shimon Peres chegou a declarar que, se eleito, ele concederia o perdão a Barghouti. Mas Peres não cumpriu a promessa durante os sete anos em que esteve na presidência.

A atual crise dos reféns em Gaza traz novamente a questão da libertação de Barghouti para o centro da agenda de discussões. Para o ex-chefe do Shin Bet, Ami Ayalon, Barghouti deveria ser libertado como parte de um acordo de libertação de todos os reféns mantidos pelo Hamas: “Ele é o único que pode conduzir uma liderança palestina unida e legítima no caminho de uma separação de Israel, mutuamente acordada”.

De sua cela na prisão, Barghouti não faz concessões. Em dezembro do ano passado, na comemoração do aniversário da primeira intifada, ele fez um chamamento a todos os palestinos para que participassem da campanha de libertação: “Devemos fazer de cada lar palestino um reduto da revolução, e de cada homem, um soldado nesta campanha. Devemos nos unir e provar ao mundo que somos uma força inquebrantável, em nossa longa e contínua campanha heróica, criada pela resistência, e que está lançando uma nova etapa na história da nossa nação.”

Barghouti foi colocado em confinamento solitário, segundo foi noticiado ontem, 14 de fevereiro. O ministro israelense de segurança nacional, o extremista de direita Itamar Ben-Gvir, declarou que o motivo da segregação foi a obtenção de “informação sobre o planejamento de agitação”.  A ação do governo poderá inflamar as tensões, avalia o noticiário.

Notas:

1 O desengajamento militar israelense de Gaza veio a ocorrer em 2005, promovido pelo primeiro-ministro Ariel Sharon.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, veiculado no canal da TV GGN e da TV Chacoalhando.

Haaretz: Incursão israelense em Rafah, Gaza, será uma catástrofe humanitária sem precedentes

Por Gideon Levy1, 11 de fevereiro de 2024 \ Tradução por Ruben Rosenthal

Os norte-americanos precisam bloquear a invasão de Rafah com ações, e não com palavras. Só eles podem deter Israel.

Rafah, Gaza
Meninos palestinos no campo de tendas em Rafah, sul de Gaza, fev. 2024\Foto: Ibraheem Abu Mustafa/Reuters

Tudo o que podemos fazer agora é pedir, implorar, gritar: Não entrem em Rafah! Uma incursão israelense em Rafah será um ataque ao maior campo de pessoas desalojadas do mundo. Arrastará os militares israelitas a cometerem crimes de guerra de uma gravidade que nem eles ainda cometeram. É impossível invadir Rafah agora sem cometer crimes de guerra. Se as Forças de Defesa de Israel entrarem em Rafah, a cidade se tornará um cemitério.

Cerca de 1,4 milhões de pessoas deslocadas estão agora em Rafah, abrigadas em alguns casos sob sacos plásticos que foram transformados em tendas. A administração americana, suposta guardiã da lei e da consciência israelita, condicionou a invasão de Rafah a um plano para evacuar a cidade. Não existe e não tem como existir tal plano, mesmo que Israel consiga apresentar um.

É impossível transportar um milhão de pessoas totalmente desamparadas, algumas das quais já foram desalojadas duas ou três vezes, de um lugar “seguro” para outro, e que sempre se transformam em locais de matança. É impossível transladar milhões de pessoas como se fossem bezerros. Mesmo os bezerros não podem ser transportados com tanta crueldade.

Também não há lugar para levar estas milhões de pessoas. Na devastada Faixa de Gaza não há mais para onde ir. Se os refugiados de Rafah forem transferidos para Al-Mawasi, como as FDI irão propor em seu plano humanitário, Al-Mawasi vai se tornar o local de um desastre humanitário como nunca visto na Faixa.

Yarden Michaeli1 e Avi Scharf1 relatam que toda a população da Faixa de Gaza, 2,3 milhões de pessoas, seria evacuada para uma área de 16 quilômetros quadrados, aproximadamente o tamanho do Aeroporto Internacional Ben-Gurion. Imagine só, a população inteira de Gaza [contida] na área do aeroporto.

Amira Hass1 calculou que se apenas um milhão de pessoas forem para Al-Mawasi, a densidade populacional será de 62.500 pessoas por quilômetro quadrado. Não há nada em Al-Mawasi: nem infra-estrutura, nem água, nem eletricidade, nem casas. Só areia e mais areia para absorver o sangue, o esgoto e as epidemias. Pensar nisso não é apenas assustador, mas também mostra o nível de desumanização que Israel atingiu em seu planejamento.

Rafah, south of Gaza Strip
Pessoas em uma rua principal lotada de Rafah, sul da Faixa de Gaza, fev. 2024\Foto: Mohammed Abed/AFP

Sangue será derramado em Al-Mawasi, como ocorreu recentemente em Rafah, o penúltimo porto seguro oferecido por Israel. O serviço de segurança Shin Bet irá encontrar um oficial ligado ao Hamas que deve ser eliminado, lançando-se uma bomba de uma tonelada no novo acampamento de tendas. Vinte transeuntes, a maioria crianças, serão mortos.

Os correspondentes militares irão relatar, com os olhos brilhando, sobre o maravilhoso trabalho que as FDI estão realizando para liquidar o alto comando do Hamas. A vitória total está próxima, e os israelitas ficarão saciados mais uma vez. Mas, mesmo com toda esta imposição [de propaganda de guerra], o público israelense deve acordar, e, com ele, a administração Biden. Trata-se de uma emergência mais terrível do que qualquer outra durante esta guerra. Os norte-americanos precisam bloquear a invasão de Rafah com ações, e não com palavras. Só eles podem deter Israel.

O setor consciente do público israelense busca outras fontes de informação, além das estações pró-militares, que aqui se autodenominam canais de notícias. Veja as fotos de Rafah em qualquer rede estrangeira – você não encontrará nada em Israel – e entenderá por que a região não pode ser evacuada. Imagine Al-Mawasi com os dois milhões de pessoas deslocadas, e compreenderá que crimes de guerra não poderão ser freados.

No sábado, foi encontrado o corpo de Hind Hamada (também chamada de Hind Rajab), de seis anos. A menina ficou conhecida no mundo todo, após os momentos de terror pelo qual ela e sua família passaram, no dia 29 de janeiro, diante de um tanque israelense. Estes momentos ficaram registrados em uma ligação telefônica2 com o Crescente Vermelho Palestino, até que os gritos de terror cessaram. Sete membros da família estavam mortos; apenas a pequena Hind se encontrava ainda com vida, mas seu destino permanecera um mistério desde então.

Hind foi encontrada morta no carro queimado de sua tia, em um posto de gasolina, em Khan Yunis. Ela havia sido ferida, e ficara coberta pelos sete corpos de seus parentes, sangrando até a morte sem que conseguisse sair do veículo.

Hind e sua família haviam respondido ao apelo “humanitário” de Israel para evacuar. Quem quiser mais milhares de Hinds, deveria invadir Rafah, cuja população será evacuada para Al-Mawasi.

Notas do tradutor:

1jornalistas do periódico israelense Haaretz

2vídeo da CNN, contendo a gravação com o pedido de ajuda

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, veiculado no canal da TV GGN e da TV Chacoalhando.

Decisão do Tribunal Internacional é um cartão amarelo para Israel

Editorial do Haaretz* de 28.01.2024\Tradução por Ruben Rosenthal

Israel deve cumprir as leis da guerra, e tomar todas as medidas para reduzir os danos aos civis e garantir que a ajuda humanitária chegue aos civis.

TJI julga caso de genocídio: África do Sul vs Israel
Audiência inicial no Tribunal Internacional de Justiça no caso África do Sul vs. Israel \ Foto: © ONU/TIJ/ Frank van Beek

O Tribunal Internacional de Justiça de Haia rejeitou nesta sexta-feira o pedido da África do Sul para que fosse ordenado o fim dos combates na Faixa de Gaza, com base [na ocorrência] de genocídio, e determinou várias medidas provisórias que exigem que Israel previna [que ocorra] genocídio.

No entanto, a gravidade da situação não pode ser subestimada: não devemos ignorar o fato de que o tribunal concordou em examinar a alegação de genocídio. O governo, o [parlamento] Knesset, o presidente, as Forças de Defesa de Israel e o público em Israel devem ver a decisão como um aviso severo e cumprir suas diretrizes.

As medidas provisórias exigem que Israel tome todas as medidas possíveis para evitar [que ocorra] genocídio, mortes e danos {à saúde] de civis,  e prejudicar nascimentos, conforme estipulado na Convenção sobre Genocídio. As ordens instruem ainda Israel a permitir a entrada de ajuda humanitária na Faixa.

Além disso, o tribunal ordenou que Israel punisse a incitação ao genocídio contra os habitantes de Gaza. O tribunal não contestou o direito de Israel de se defender, mas, ao mesmo tempo, descreveu os danos graves aos civis que Israel deve evitar com os meios à sua disposição. Isso significa que Israel deve cumprir as leis da guerra, e tomar todas as medidas para reduzir os males causados aos civis e garantir que a ajuda humanitária chegue aos civis.

A negligência da procuradora-geral [de Israel] Gali Baharav-Miara e do procurador Amit Aisman ao lidar com inúmeras declarações inflamatórias e perigosas do presidente, do primeiro-ministro, de membros do gabinete, legisladores e outras figuras públicas teve um alto preço. A petição contra Israel citava comentários abundantes, derivando destes e do fracasso do Judiciário em punir os incitadores, a intenção genocida.

Em sua decisão, o Tribunal citou o aviso da [procuradora-geral] Baharav-Miara, poucos dias antes da audiência sobre a petição [da África do Sul], de que ela havia começado a agir contra declarações inflamatórias vindas de altos funcionários.

A procuradora-geral deve persistir nisso e punir os incitadores. A decisão do Tribunal [de Haia] de citar declarações do presidente Isaac Herzog, do ministro da Defesa, Yoav Gallant, e do ministro das Relações Exteriores, Israel Katz, é extremamente importante.

Isso indica que o Tribunal leva muito a sério as observações feitas por altos funcionários do Estado, e não está disposto a tratá-los como são tratados em Israel: isto é, a colocar a mancha moral [apenas] em legisladores como Nissim Vaturi, Tally Gotliv e outros da mesma laia, sob o argumento de que estes, supostamente, não representam a política israelense, e fechar os olhos [para os que estão no comando].

Toda a liderança israelense deve mudar a forma como se expressa e, se não o fizer, a procuradora-geral deve lidar com eles com firmeza. Mas, além das palavras, é mais importante fazer todo o possível para mitigar os danos aos civis e permitir condições de vida razoáveis em Gaza. Não só por temor à [Corte de] Haia, mas, principalmente, para manter a nossa própria humanidade.

*O Haaretz é um periódico israelense com enfoque de esquerda e liberal.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, veiculado no canal da TV GGN e da TV Chacoalhando.

Israel teme condenação por genocídio

Por Ruben Rosenthal

O caso contra Israel no TribunaI Internacional de Justiça pode levar vários anos até a obtenção da sentença final, mas medidas provisórias de efeito vinculante podem ser adotadas em curto prazo.

Tribunal Internacional de Justiça / Foto: Frank van Beek

O Ministério das Relações Exteriores de Israel instruiu suas embaixadas em diversos países, no sentido de pressionarem políticos e diplomatas destes países a emitir declarações contrárias às acusações levadas pela África do Sul ao Tribunal Internacional de Justiça, de que Israel cometeu genocídio em Gaza. O julgamento de Israel no TIJ ocorrerá nos dias 11 e 12 deste mês.

A expectativa de Israel é pressionar o Tribunal, para evitar que no curto prazo seja emitida uma ordem de suspensão dos ataques a Gaza. Uma eventual condenação de Israel ao final de um julgamento que pode levar vários anos representaria um duro golpe na imagem de Israel. Israel ainda usufrui de um legado de simpatia, por ter sido um país em cuja formação participaram judeus que fugiram de perseguições dos nazistas e sobreviventes do Holocausto.

O telegrama de 4 de janeiro contendo as instruções do ministério israelense foi vazado para o site norte-americano de notícias Axios. Em seu conteúdo consta que o “objetivo estratégico” de Israel é que o tribunal rejeite o pedido de liminar, se abstenha de determinar que Israel está cometendo genocídio em Gaza e reconheça que os militares israelenses estão operando em Gaza de acordo com o direito internacional.

Consta ainda do telegrama: “uma decisão do tribunal pode ter implicações potenciais significativas, que não estão apenas no campo jurídico, mas têm ramificações práticas bilaterais, multilaterais, econômicas e de segurança”.

As embaixadas israelenses foram instruídas a pedir a diplomatas e autoridades do mais alto nível de vários países, “que reconheçam publicamente que Israel está trabalhando [em conjunto com atores internacionais] para aumentar a ajuda humanitária a Gaza, bem como minimizar os danos aos civis, enquanto agem em legítima defesa após o horrível ataque de 7 de outubro [cometido] por uma organização terrorista genocida”. E que rejeitem “as alegações absurdas e infundadas feitas contra Israel”.

As acusações contra Israel por genocídio em Gaza

O genocídio constitui crime imprescritível pela legislação internacional, conforme decisão de 1948 da Assembleia Geral das Nações Unidas, com definições precisas estipuladas na Convenção da Prevenção e Punição do Crime de Genocídio.

Da petição de 84 páginas submetida ao TIJ, são citadas a seguir oito alegações colocadas pela África do Sul para apoiar sua acusação de que Israel está cometendo genocídio em Gaza, conforme relatadas no site de notícias TruthOut:

(1) Matar palestinos em Gaza, incluindo uma grande proporção de mulheres e crianças (aproximadamente 70%) das mais de 21.110 mortes, algumas destas parecendo resultar de execução sumária;

(2) Causar graves danos mentais e corporais aos palestinos em Gaza, incluindo mutilação, trauma psicológico e tratamento desumano e degradante;

(3) Causar a evacuação forçada e o deslocamento de cerca de 85% dos palestinos em Gaza – incluindo crianças, idosos, enfermos, doentes e feridos. Israel está também causando a destruição maciça de casas, aldeias, cidades, campos de refugiados e áreas inteiras palestinas, o que impede o regresso de uma parte significativa do povo palestino às suas residências;

(4) Causar fome, inanição e desidratação generalizadas aos palestinos sitiados em Gaza, impedindo assistência humanitária suficiente, cortando alimentos, água, combustível e eletricidade suficientes, e destruindo padarias, moinhos, terras agrícolas e outros meios de produção e sustento;

(5) Não fornecer e restringir o fornecimento de vestuário, abrigo, higiene e saneamento adequados aos palestinos em Gaza, incluindo 1,9 milhões de deslocados internos. Isto os obrigou a viver em situações perigosas de miséria, em conjunto com a rotineira destruição de locais de abrigo, alvos de ataques, causando morte e ferimento de pessoas abrigadas, incluindo mulheres, crianças, idosos e deficientes;

(6) Não prover ou garantir a prestação de cuidados médicos aos palestinos em Gaza, incluindo as necessidades decorrentes de outros atos genocidas que causaram danos corporais graves. Esta situação decorre de ataques diretos a hospitais, ambulâncias e outras instalações de saúde palestinas, da morte de médicos e enfermeiros palestinos (incluindo os médicos mais qualificados em Gaza), e da destruição e desativação do sistema de saúde de Gaza;

(7) Destruir a vida palestina em Gaza, ao destruir infraestrutura, escolas, universidades, tribunais, edifícios públicos, registros públicos, bibliotecas, lojas, igrejas, mesquitas, estradas, serviços públicos e outras instalações necessárias para sustentar a vida dos palestinos como um grupo. Israel está matando famílias inteiras, apagando tradições orais inteiras e matando membros proeminentes e ilustres da sociedade;

(8) Impor medidas destinadas a prevenir nascimentos de palestinos em Gaza, através da violência associada à reprodução, infligida a mulheres palestinas, a recém-nascidos, bebês e crianças.

Foram incluídas no processo montado pela África do Sul, várias declarações de proeminentes autoridades israelenses, dentre estas o primeiro ministro Benjamin Netanyahu, o presidente Isaac Herzog e o ministro da defesa, Yoav Gallant. Tais declarações comprovariam haver premeditação no cometimento de genocídio contra os palestinos de Gaza.

As primeiras reações das autoridades israelenses foram de fazer acusações de antissemitismo contra a África do Sul. O porta-voz do governo Netanyahu, Eylon Levy, declarou que a questão se tratava de “uma absurda difamação de sangue”, uma referência a acusações dos tempos medievais de que os judeus praticariam rituais de sacrifício com crianças cristãs. Levy declarou ainda que o caso submetido pela África do Sul “não tem mérito legal”.

Como parte de sua defesa perante o Tribunal, Israel pretenderia alegar que alguns dos agentes de governo israelense citados no processo não exercem funções decisórias, enquanto que aqueles em posições de comando ficaram apenas na retórica, sem cometer as ações que disseram que iriam fazer.

No entanto, para Raz Segal, historiador israelense residente nos Estados Unidos, o ataque israelense a Gaza constitui um “caso clássico de genocídio”: um crime cometido com a intenção de destruir, totalmente ou em parte, uma nacionalidade, um grupo étnico, racial ou religioso.

Estados Unidos são cúmplices no genocídio de palestinos?

Principal aliado e fornecedor de armas para Israel, os EUA já rejeitaram o processo submetido ao TIJ pela África do Sul, como “totalmente sem qualquer base em fatos”. No entanto, juristas estadunidenses do Centro para Direitos Constitucionais (CCR, na sigla em inglês) alertaram que membros do governo Biden, incluindo o próprio presidente, podem ser considerados cúmplices de genocídio, por continuar a fornecer armas aos militares israelenses, que estão sendo usadas contra a população de Gaza.

Segundo os especialistas do CCR, “os Estados Unidos não estão apenas falhando em cumprir sua obrigação de impedir a prática de genocídio, mas existe um argumento plausível e crível a ser feito, de que as ações dos EUA para promover a operação militar israelense, o cerceamento e a campanha contra a população palestina em Gaza chegam ao nível de cumplicidade no crime [de genocídio] cometido, segundo o direito internacional”.

O Tribunal Internacional de Justiça

Ao contrário do Tribunal Penal Internacional, que tem jurisdição para investigar e julgar indivíduos acusados de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, o Tribunal Internacional de Justiça resolve pendências entre países. Um país signatário da Convenção sobre Genocídio pode levar ao TIJ outro signatário, para determinar sua responsabilidade. Isso ocorreu no caso Bósnia vs. Sérvia, quando a Corte considerou que a Sérvia violara a Convenção, ao não cumprir seus deveres de prevenir e punir os crimes de genocídio cometidos contra os bósnios.

O caso contra Israel no TribunaI Internacional de Justiça pode levar vários anos até a obtenção da sentença final, mas medidas provisórias de efeito vinculante podem ser adotadas em curto prazo. A verificação do cumprimento destas medidas pode ser efetuada tanto pelo TIJ como pelo Conselho de Segurança da ONU. As decisões da Corte são definitivas, sem direito à apelação.

Nações subscrevem acusação contra Israel

Países signatários da Convenção de Genocídio podem solicitar permissão para intervir no caso promovido pela África do Sul ou encaminhar processos próprios junto ao TIJ. Turquia, Malásia e Jordânia, já subscreveram o caso, em apoio aos palestinos. Vários países usaram o termo “genocídio” para se referir ao morticínio que ocorre em Gaza, inclusive o Brasil, conforme declaração do presidente Lula. Os próximos a assinar uma Declaração de Intervenção, e se juntar ao grupo de países que buscam a condenação de Israel no TIJ, poderão ser AustráliaIrlanda.

Uma eventual condenação de Israel no TIJ poderá levar a que autoridades e militares israelenses sejam indiciados no Tribunal Penal Internacional. O mesmo poderia ocorrer com autoridades do governo Biden, por cumplicidade no cometimento de genocídio dos palestinos. Resta ver se o britânico Karim Khan, atual procurador geral do TPI, teria “cojones” para levar adiante estes processos.

As sessões das audiências públicas serão transmitidas ao vivo pelo site do TIJ e da ONU Web TV. Em 11 de janeiro, de 06:00 às 08:00hs, horário de Brasília, será apresentada, de forma oral, a acusação colocada pela África do Sul. No dia 12, no mesmo horário, serão apresentados os argumentos da defesa de Israel.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, veiculado no canal da TV GGN e da TV Chacoalhando.

Lobby sionista domina o congresso dos EUA

Por Ruben Rosenthal

O embate entre progressistas e o lobby pró-Israel já estava colocado mesmo antes do atual confronto Israel-Hamas.

Joe Biden discursa na conferência da AIPAC
Vice-presidente Joe Biden na conferência anual da AIPAC de 2016 garante ajuda militar a Israel \ Foto: Cliff Owen/AP

Até o momento, os bombardeios da Faixa de Gaza promovido pelas tropas israelenses já causaram mais de 17 mil mortes, sendo a maioria destas de civis. Nas últimas semanas, o forte lobby sionista vem procurando evitar que as amplas manifestações que ocorrem em vários países do Ocidente, em repúdio contra o genocídio de mulheres, crianças e idosos, possam prejudicar o tradicional apoio diplomático e bélico desses países a Israel.

Nos Estados Unidos, principal aliado de Israel, congressistas de esquerda do Partido Democrata vêm sendo alvo de várias organizações lobistas pró-Israel, e estão ameaçados de não conseguir se reeleger por criticarem as ações do governo Netanyahu.

O chamado “Esquadrão Progressista” ou simplesmente “Esquadrão” deverá encarar uma dura batalha no ciclo eleitoral de 2024, no enfrentamento de várias organizações pró-sionismo. A principal destas organizações, AIPAC (Comitê Americano de Ações Públicas), deverá gastar pelo menos 100 milhões de dólares nas próximas primárias do Partido Democrata, com o intuito de derrotar os candidatos progressistas mais críticos de Israel.

Fazem parte atualmente do Esquadrão na Câmara, além das quatro fundadoras – Alexandria Ocasio-Cortez (AOC), Ilhan Omar, Ayana Pressley e Rashida Tlaib, os congressistas Jamaal Bowman e Cori Bush, eleitos em 2020, além de Greg Casar e Summer Lee, eleitos em 2022.

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Ilustração: Slate \ Fotos: Mandel Ngan/AFP via Getty Images, Anna Moneymaker/Getty Images, e Celal Gunes/Anadolu via Getty Images. Não incluído, o congressista Greg Casar.

Parte da mídia corporativa norte-americana costuma rotular o esquadrão como sendo de extrema esquerda, o que está longe da realidade. A bancada progressista na Câmara é composta por 100 deputados, enquanto que no Senado, o único progressista é Bernie Sanders.

Os votos de resistência ao sionismo

O embate entre progressistas e o lobby pró-Israel já estava colocado mesmo antes do atual confronto Israel-Hamas. Em fevereiro deste ano, Ilham Omar, muçulmana nascida na Somália, foi afastada do Comitê de Relações Exteriores da Câmara, sob o pretexto de comentários que ela havia feito em relação a Israel. Entretanto, após a “punição”, ela alcançou maior notoriedade internacional.

Em julho deste ano, a Câmara votou a resolução 57, se posicionando por 412 a 9, que “Israel não é um estado racista ou de apartheid”. Dentre os 9 deputados democratas que votaram contrariamente à resolução, estavam sete membros do Esquadrão. O único do grupo a votar favoravelmente à resolução foi o novato Greg Casar, que optou por negar o óbvio, que as principais organizações de direitos humanos do Ocidente, Anistia Internacional e Human Rights Watch, já haviam demonstrado em extensos relatórios.

A votação ocorrera em função de uma declaração da deputada Pramila Jayapal, de que Israel é um estado racista. Pramila é líder da bancada progressista na Câmara, mas não faz parte do Esquadrão. No entanto, acuada com os ataques que sofreu na sequência de sua declaração, ela se retratou e votou a favor da resolução.

O episódio sugere que a forte pressão do lobby sionista e da mídia corporativa simpática a Israel intimida mesmo alguns dos progressistas mais assertivos, que por vezes titubeiam em suas convicções.

Na sequência dos ataques do Hamas de 7 de outubro e da retaliação do exército de Israel, foi colocada em votação a resolução 771, em 25 de outubro. A resolução inclui, desde o apoio ao direito de autodefesa de Israel, ao reforço de sanções contra o Irã, sem, no entanto, fazer qualquer menção à Questão Palestina ou ao morticínio da população civil de Gaza pelos bombardeios do exército israelense.

A entidade sionista J Street, tradicionalmente moderada, declarou na ocasião que iria atuar para barrar a reeleição de congressistas que não apoiassem a referida resolução, que, ao final, foi aprovada por 412 a 10, com 6 abstenções. Do esquadrão, Jamaal, Cori, AOC, Ilham, Rashida e Summer votaram contra a resolução; também do esquadrão, se abstiveram Ayanna e Greg Casar.  A líder da bancada progressista, Pramila Jayapal, também se absteve.

AIPAC criticou os membros do esquadrão por não apoiarem a resolução 771. Em resposta, AOC chamou a organização sionista de “racista e preconceituosa”, e que ela “desestabiliza a democracia dos EUA”, por ter endossado 109 congressistas republicanos que haviam votado em 6 de janeiro de 2021 para deslegitimar a eleição de Joe Biden.

Uma pesquisa de opinião da Reuters, divulgada em 15 de novembro, indicou uma maioria da população a favor de que os EUA atuem como mediador neutro do conflito. Dos entrevistados, 68% foram favoráveis a que “Israel concordasse com um cessar fogo e tentasse negociar”.  No entanto, as tentativas de aprovar na Câmara uma resolução nesse sentido estão emperradas.

Em 16 de outubro, alguns membros da bancada progressista deram entrada na resolução 786, que pede uma imediata desescalada e o cessar-fogo do conflito em Gaza. A moção foi encaminhada em 25 de outubro para o Comitê de Relações Exteriores da Câmara, e lá permanece até o momento, sem ser colocada em votação.

Em 7 de novembro, Rashida precisou enfrentar uma moção de censura na Câmara, com a acusação de que ela fizera uso de “retórica antissemita” na sequência da ação do Hamas de 7 de outubro. Alguns democratas se juntaram aos republicanos para aprovar a moção por 234 a 188. Assista aqui a defesa que Rashida fez de suas posições.

Em 28 de novembro, foi votada a resolução 888 pela Câmara de Representantes, reafirmando o direito de existência de Israel, e determinando que negar este direito representa uma forma de antissemitismo. Esta resolução, em que o povo palestino não é sequer mencionado, foi aprovada com 412 votos a favor, 1 abstenção e 1 voto contrário, este do republicano Thomas Massie. A abstenção foi de Rashida Tlaib, que é filha de imigrantes palestinos da classe trabalhadora.

Também em 28 de novembro foi votada a resolução 894, que “estabelece clara e firmemente que antissionismo é antissemitismo”, tendo sido aprovada por 311 a 14, com 92 abstenções de membros democratas. É interessante observar que houve também um voto republicano contrário à resolução, novamente de Thomas Massie.

Já no Senado, não houve qualquer movimento em prol de um cessar-fogo. Apoiadores de Bernie Sanders ficaram descontentes por ele não submeter uma resolução no Senado a favor de um cessar-fogo, no momento em que já tinham ocorrido muitas mortes de civis em Gaza.

Quando da campanha presidencial de 2016, Bernie Sanders trouxe a questão da situação humanitária em Gaza e criticou o apoio incondicional que os EUA davam ao governo israelense, na época também sob o comando de Benjamin Netanyahu. O posicionamento de Sanders repercutiu favoravelmente junto às comunidades árabe e muçulmana dos EUA, e com o apoio destas, ele pode ganhar as primárias em Michigan. A expectativa agora de seus apoiadores em geral era, portanto, que ele defendesse o cessar-fogo no atual conflito.

Em discurso no Senado em dezembro, Sanders se colocou contra a aprovação de verba de 10,1 bilhões de dólares para fomentar a guerra na Ucrânia e fornecer armas para Israel que não fossem exclusivamente para defesa do estado judaico contra mísseis. Mas ainda não foi desta vez que o senador se manifestou a favor da cessação das hostilidades e início de negociações.

O lobby sionista nos EUA

Artigo de 2022 no blogue Chacoalhando mostrou como as diversas organizações do lobby pró-Israel nos Estados Unidos se aliaram aos interesses das grandes corporações, para interferir no processo de seleção de candidatos democratas ao congresso.  Para as corporações, o objetivo da aliança era o de barrar a indicação de candidatos progressistas, e com isso evitar que pudessem ser aprovadas regulamentações que prejudicassem seus interesses.

O artigo descreve como o sistema de doações em campanhas eleitorais nos EUA é utilizado para interferir na “democracia” estadunidense. Um exemplo clássico foi a derrota nas primárias de um distrito em Ohio, da ex-senadora Nina Turner, que defendia que a ajuda dos EUA a Israel não devesse ser usada para perpetuar a ocupação israelense da Cisjordânia.

As organizações lobistas DMFI e America Pro-Israel investiram quase 3 milhões de dólares no candidato opositor de Nina. Também os lobistas pró-corporações declararam guerra a Nina Turner. Ao final, a vantagem inicial de 30 pontos de Nina foi revertida, e ela perdeu por 6 pontos.

Anteriormente, o lobby sionista havia encarado uma derrota, ao não conseguir barrar a vitória do educador Jamaal Bowman em uma primária democrata no distrito do Bronx, Nova Iorque. Jamaal era forte crítico da detenção de crianças palestinas por Israel. Eleito para a Câmara em 2021, ele se juntou ao Esquadrão. Entretanto, Jamaal votou contra o boicote econômico a Israel e a favor dos fundos suplementares de 1 bilhão de dólares para financiar o Iron Dome, o escudo protetor contra mísseis lançados de Gaza.

Campanhas financiadas pelo lobby sionista

No site da organização OpenSecrets é possível se identificar a origem das doações recebidas por políticos estadunidenses para promover suas campanhas eleitorais. Em particular, as doações provenientes do lobby pro-Israel também estão discriminadas.

 Joe Biden, um caso de amor com o sionismo?

Durante seus 36 anos no Senado, Biden foi o maior recebedor de fundos de campanha dos grupos pró-Israel, totalizando 4,228 milhões de dólares desde 1990. Hillary Clinton vem na sequência, com 2,358 milhões de dólares.

Quando Biden se encontrou com Netanyahu durante sua visita a Israel em outubro, o presidente norte-americano declarou: “não acredito que alguém precise ser judeu para ser sionista, e eu sou sionista”. Talvez isso explique, em parte, a resistência de Biden em ser mais assertivo na contenção dos crimes de guerra e de genocídio cometidos contra os palestinos pelo governo de Israel. O dinheiro de campanha explicaria a outra parte dessa relação de amor.

O poder do lobby sionista no congresso dos EUA

Ainda segundo OpenSecrets, as contribuições em 2023 vindas do lobby pró-Israel já alcançaram 2,93 milhões de dólares até o momento. Como ocorrerão eleições em 2024, este valor deverá aumentar bastante. As doações de campanha não são provavelmente o único motivo para o apoio incondicional, por vezes quase que unânime, do congresso norte-americano a Israel. A geopolítica também tem influência significativa.

Nos anos recentes, vem ocorrendo aumento nas contribuições de campanha pelo lobby pró-Israel, com o intuito de interferir no resultado das eleições estadunidenses. O gráfico mostra que ocorreu um crescimento das contribuições para os partidos democrata e republicano a partir de 2020.

Contribuições anuais do lobby pró-Israel
Doações de campanha eleitoral nos EUA pelo lobby pró-Israel / OpenSecrets

O surgimento de um movimento progressista mais radical no interior do Partido Democrata fez com que o lobby precisasse investir mais, para garantir o alinhamento da política externa estadunidense com os interesses de Israel.

Resta ver se os progressistas do Esquadrão vão manter suas convicções, e resistir às pressões do lobby sionista, conforme se aprofundam as políticas de limpeza étnica e de apartheid promovidas por Israel.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, veiculado no canal da TV GGN e da TV Chacoalhando.

Netanyahu, o braço de Javé no genocídio dos palestinos em Gaza

Por Ruben Rosenthal

O primeiro-ministro recorre a passagens bíblicas para garantir a continuidade do apoio dos supremacistas judeus e dos cristãos evangélicos estadunidenses de direita, em seu confronto com o Hamas. 

Citações bíblicas por Netanyahu
Benjamin Netanyahu recorre à Biblia para ganhar apoio contra o Hamas\Foto ilustração: Salon/Getty Images

Em 28 de outubro, ao anunciar a segunda fase da guerra em Gaza, Netanyahu dirigiu uma advertência aos israelenses judeus: “Se lembrem do que Amaleque fez”. Para muitos não judeus, ou mesmo para judeus com pouco conhecimento da Bíblia, a citação é obscura e incompreensível.

Para entender o significado da fala de Netanyahu é necessário recorrer às “sagradas escrituras”, algo que uma busca no Google resolve em um piscar de olhos. Entretanto, quais foram as reais intenções do primeiro-ministro israelense ao citar Amaleque?

Consta na Bíblia que, quando estavam a caminho da Terra Prometida, os israelitas foram atacados por guerreiros amalequitas. Ainda segundo o Velho Testamento, Javé ordenou a Moisés que exterminasse o povo de Amaleque, e que apagasse sua memória da face da Terra. Coube ao rei Saul, concluir essa tarefa, mas Agag, o rei amalequita, foi poupado na ocasião, contrariando a determinação de Javé.

Samuel cumpriu a vontade de Deus, eliminando Agag. Para punir Saul pela desobediência, Javé colocou a David no trono unificado de Israel e Judá (Samuel 15:11).

Mas, mesmo tendo sido exterminado, o povo de Amaleque permanece em espírito, a atormentar Israel. Consta em Exodus 17:16: “por Seu trono, o Senhor fará guerra contra os amalequitas, de geração a geração”. Os rabinos ensinam que sucessivas gerações de judeus foram forçadas a enfrentar recorrentes manifestações corpóreas do espírito malevolente de Amaleque, como Nabucodonosor, os Cruzados, Torquemada, Hitler e Stalin.

Recentemente, o espírito maligno voltou a se manifestar na forma do programa nuclear do Irã. Um assessor próximo a Netanyahu associou Amaleque ao risco existencial a Israel que um arsenal atômico iraniano traria. Após o ataque do Hamas de 7 de outubro, Netanyahu fez uso da mesma figura de retórica, para justificar a limpeza étnica e o genocídio do povo palestino que está colocando em marcha.

Em outra de suas falas, Netanyahu citou o herói bíblico Josué, que liderou a conquista de Canaã. Só que a terra prometida por Javé aos judeus já era habitada por outros povos naqueles tempos bíblicos. E Deus disse aos israelitas que não tinha problema matar, roubar e saquear nessa conquista.

Conforme o Livro de Josué 6:21, homens e mulheres, jovens e velhos de Canaã foram mortos pela lâmina da espada. E consta em Deuteronômio 6:10-12: “quando Javé, teu Deus, te fizer entrar na Terra Prometida a teus pais, Abraão, Isaque e Jacó, terra com grandes e boas cidades que tu não construíste, com casas repletas de tudo o que há de melhor, de obras e bens que não produziste, com cisternas que não cavaste, com vinhas e oliveiras que não plantaste…. não te esqueças de Javé, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão”.

Voltando aos séculos 20 e 21, a formação do moderno Estado de Israel em 1948 e sua expansão nas décadas que se seguiram, repetiram a tomada de Canaã e a formação dos reinos de Israel e Judá: mortes, roubo de terras e de bens dos povos que lá habitavam.

Agora, em 2023, Netanyahu dá prosseguimento ao processo de eliminação e expulsão dos palestinos para expandir as terras do estado-nação judaico e pilhar seus bens, como os depósitos de gás na costa do mar de Gaza. Será que Netanyahu espera contar com uma ajudinha de Javé, mesmo não sendo conhecido por adotar práticas religiosas em sua vida privada?

Para Ariel Gold, analista de política do Oriente Médio, e diretora-executiva da organização Fellowship of Reconciliation-EUA, o primeiro-ministro recorre a passagens bíblicas como forma de garantir a continuidade do apoio dos supremacistas judeus e dos cristãos evangélicos estadunidenses de direita, em seu confronto com o Hamas.

Na verdade, antes mesmo que Netanyahu fizesse uso da retórica de Amaleque, o grupo evangélico  International Christian Embassy Jerusalem já havia feito uma declaração em que afirmava que o ataque do Hamas em 7 de outubro “não ocorreu em protesto pela ocupação israelense ou devido a riscos que a mesquita de al-Aqsa estivesse correndo, mas sim, pelo antigo “espírito de Amaleque”, que sempre visou mulheres e crianças judias, e aos fracos e frágeis em Israel”.

Em uma linha de análise semelhante a de Gold, o rabino Elhanan Miller, sediado em Jerusalém, e que também é escritor e jornalista, avalia que o crescente uso por Netanyahu de referências bíblicas em seus discursos não passaria de uma tentativa de salvar seu prestígio, que ficou fortemente abalado com o ataque surpresa conduzido pelo Hamas em 7 de outubro.

Miller acrescentou ainda que “em tempos de guerra, as lideranças muitas vezes se baseiam na Torá e em textos religiosos. Em guerras anteriores, até mesmo os comandantes de brigadas proferiram citações da Torá”. Ainda segundo o rabino Miller, Netanyahu está obcecado com relações públicas, e usa ferramentas de mídia a seu favor.

Mesmo que as citações bíblicas de Netanyahu tenham o objetivo primordial de relações públicas, a atuação do exército israelense em Gaza pode reproduzir os efeitos nefastos das ações de Josué e seus guerreiros, tendo sido estas reais ou fictícias: “não restou mais ninguém; ele destruiu completamente tudo o que respirava, como ordenou o Senhor, Deus de Israel” (Josué 10:40).

E, enquanto isso, o ministro de Segurança de Israel, Itamar Ben Gvir, de extrema-direita, adquiriu 10 mil rifles para armar civis nos assentamentos da Cisjordânia, em cidades próximas da fronteira do país, e em cidades com populações mistas de árabes e judeus. Na Cisjordânia, após o ataque do Hamas de 7 de outubro, os colonos fundamentalistas judeus já causaram a morte de dezenas de palestinos, além de destruírem milhares de pés de oliveiras.

Os palestinos aguardam o ano inteiro pelo momento no outono, em que as olivas passam de verdes para pretas. Os dois meses da colheita constituem um ritual especial e trazem um reforço nas finanças.  Os soldados e colonos israelenses bloqueram o acesso dos aldeões, e usaram retroescavadeiras para arrancar pela raiz, oliveiras centenárias.

Ao contrário de Netanyahu, as convicções religiosas desses colonos ultranacionalistas não têm nada de fake. Para eles, não existe Cisjordânia, e sim, as bíblicas Judeia e Samaria. Os discursos de Netanyahu servem para atiçar ainda mais os colonos a promover ataques contra os palestinos.

Por enquanto, a paz duradoura na região ainda é uma miragem.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, veiculado no canal da TV GGN e da TV Chacoalhando.

Podcast: A solução final da questão palestina  

Por Ruben Rosenthal

Os palestinos estão passando agora por um enorme morticínio que, no entanto, pode levar a uma “solução final” diferente da que Netanyahu gostaria para a questão palestina.

Assista ao podcast aqui ou acesse a íntegra do artigo.

bandeiras israel palestina (1)

O mapa abaixo mostra como se daria esta permuta de territórios. Cerca de 2,25% das terras da Cisjordânia seriam cedidas a Israel, em troca do recebimento de área equivalente em Gaza e na Cisjordânia. Refugiados palestinos poderiam passar a ocupar estas terras. Um corredor faria a ligação entre Gaza e a Cisjordânia; o corredor ficaria sob a soberania israelense, mas com administração palestina.

Acordo de Genebra
Mapa do Acordo de Genebra mostrando a troca de territórios. Linha verde – fronteira de 1967

 

A solução final da questão palestina 

Por Ruben Rosenthal

Os palestinos estão passando agora por um enorme morticínio que, no entanto, pode levar a uma “solução final” diferente da que Netanyahu gostaria para a questão palestina.

Gaza war
Gaza no centro dos conflitos entre Israel e os palestinos \ Arte: domínio público

Em 1941, os nazistas elaboraram um plano que visava arianizar a Alemanha através da chamada “solução final”, o extermínio dos judeus e de outras etnias não arianas. Os crimes se estenderam também a outros países da Europa, subjugados ou aliados do III Reich.

Agora em 2023, Netanyahu dá continuidade a mais uma etapa de um processo de limpeza étnica iniciado há 75 anos, com a Nakba. Na ocasião, cerca de 726 mil palestinos foram expulsos de suas terras ou fugiram, após o massacre que havia ocorrido em Deir Yassim.  Desde então os palestinos da Cisjordânia veem suas terras serem tomadas por colonos judeus, enquanto que aqueles residentes em Israel se tornaram oficialmente cidadãos de segunda classe, com a promulgação da Lei Básica do Estado Nação em 2018.

O vazamento de um documento da inteligência de Israel, datado de 10 de outubro, revelou o plano de expulsar todos os palestinos da Faixa de Gaza, mais de 2 milhões de pessoas, forçando-as a migrarem para a península do Sinai, no Egito. Não está claro se o vazamento se tratou de um balão de ensaio do governo Netanyahu para avaliar a escala das reações contrárias.

Segundo o documento, após a completa limpeza étnica em  Gaza, haveria a anexação pelo Estado de Israel. Para a conclusão da “solução final” restaria então anexar a Cisjordânia, com a expulsão de boa parte dos palestinos, e o aprofundamento do Apartheid em todo o território de Israel, já acrescido dos territórios anexados.

Mesmo que o plano do governo Netanyahu de expulsar os palestinos e anexar Gaza não prevaleça, o número de mortes causadas pelos bombardeios israelenses já está em torno de 10 mil, e tende a aumentar. O que mais está faltando para que o Ocidente, através de seus líderes e de sua imprensa, chame de genocídio o que está ocorrendo em Gaza?

O diretor do escritório de Nova York, do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos, Craig Mokhiber, ao enviar em protesto sua carta de afastamento, não hesitou em usar o termo genocídio. Ele denunciou ainda que EUA, Reino Unido e parte da Europa “são totalmente cúmplices desse terrível ataque”.

O Holocausto levou à ampliação e consolidação de um movimento que resultou na criação do Estado de Israel em 55% das terras da Palestina, em 1948. Com a guerra que se seguiu, Israel passou a ocupar cerca de 77% da Palestina. Os palestinos estão passando agora por um enorme morticínio que, no entanto, pode levar a uma “solução final” diferente da que Netanyahu gostaria para a questão palestina.

Israel está perdendo a batalha da opinião pública, como resultado das trágicas imagens vindas de Gaza. Vêm ocorrendo protestos de dezenas de milhares de pessoas em várias cidades de países aliados de Israel no Ocidente, que mesmo a mídia corporativa ocidental não pôde ignorar. As discussões sobre a urgência de se corrigir um erro histórico e criar uma nação palestina voltaram a se colocar em diversos fóruns.

A recente Cúpula do Cairo contou com a participação de cerca de 30 países e organizações internacionais para discutir os conflitos recentes em Gaza. Estiveram representados a ONU, a União Africana, a Liga dos Estados Árabes, a União Europeia, membros permanentes do Conselho de Segurança, além do Brasil, por então ocupar a presidência do Conselho.

Entre os pontos de acordo, destacou-se a necessidade de negociar uma solução para o atual conflito. Foi também consenso, a criação de dois estados independentes vivendo lado a lado, em paz, com fronteiras internacionalmente reconhecidas.

No entanto, muitos analistas consideram que a solução de dois estados se tornou irrealizável, e propõem a solução de um só estado, democrático e laico, onde conviveriam judeus e palestinos, com igualdade de direitos. Isto, no entanto, iria requerer que judeus e palestinos abrissem mão de seus respectivos sonhos de autodeterminação em uma nação própria.

A solução de um estado

A solução de um estado é vista com grande desconfiança por boa parte dos judeus israelenses, devido à questão demográfica. O grande temor é que a população árabe – atualmente cerca de 20% – venha a se tornar majoritária, podendo assim comprometer os interesses e a própria segurança dos judeus.

Para Thabet Abu Rass, cidadão palestino residente em Israel, e codiretor dos Acordos de Abraão1, o aumento substancial da população palestina poderia levar a uma guerra civil, caso não fosse desmantelado o sistema de Apartheid. De fato, do ponto de vista palestino, a coexistência em um estado só poderia ser viável com igualdade de direitos civis.

A solução de dois estados

Revendo-se um histórico das diversas negociações de paz ocorridas ao longo dos anos entre israelenses e palestinos, pode-se constatar que nem sempre os fracassos decorreram apenas da intransigência dos representantes palestinos ou de ações armadas promovidas por grupos palestinos extremistas.

Os Acordos de Oslo de 1993 sofreram um duro revés com o assassinato do primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin, em novembro de 1995, por um extremista israelense. O Mapa do Caminho para a Paz, apresentado pelo presidente norte-americano George Bush em 2002 era baseado na solução de dois estados. A autoridade Palestina aceitou a proposta, ao passo que Israel levantou 14 restrições.

Também em 2002, ocorreu a Iniciativa Árabe de Paz, pela qual seria estabelecido um estado palestino com capital em Jerusalém, em troca da normalização de relações de todos os países árabes com Israel. Israel também deveria se retirar das colinas de Golan e do Líbano. A questão dos refugiados palestinos seria resolvida com base na Resolução 194 da ONU, pela qual os refugiados poderiam optar entre receber uma compensação financeira ou ter o direito de retornar para suas antigas casas.

Pela Autoridade Palestina, Yasser Arafat e posteriormente seu sucessor, Mahmoud Abbas, aceitaram a proposta, que foi rejeitada pela maior parte do Hamas. Do lado israelense, o então primeiro-ministro Ariel Sharon rejeitou a ideia de voltar às fronteiras anteriores a guerra de 1967. Em 2018, Netanyahu também rejeitou a Iniciativa.

Em 2003, foi elaborada a chamada Iniciativa de Genebra, que se propunha a ser um acordo definitivo e imutável, uma vez aceito pelas partes. Foram dois anos de reuniões com a participação de especialistas, acadêmicos, oficiais de segurança e políticos dos dois lados. Foi tirado um documento que incluía: reconhecimento mútuo das duas nações; desmilitarização do estado palestino; troca de terras próximas à fronteira, para possibilitar que os principais assentamentos judaicos na Cisjordânia ficassem sob jurisdição israelense.

O mapa abaixo mostra como se daria esta permuta de territórios. Cerca de 2,25% das terras da Cisjordânia seriam cedidas a Israel, em troca do recebimento de área equivalente em Gaza e na Cisjordânia. Refugiados palestinos poderiam passar a ocupar estas terras. Um corredor faria a ligação entre Gaza e a Cisjordânia; o corredor ficaria sob a soberania israelense, mas com administração palestina.

Acordo de Genebra
Mapa do Acordo de Genebra mostrando a troca de territórios. Linha verde – fronteira de 1967

Israel ficaria responsável por realocar em seu território os colonos judeus residentes em regiões que não fossem incluídas na troca de terras; atualmente são mais de cem assentamentos nesta situação. A infraestrutura dos assentamentos deveria ser preservada e transferida para a o governo palestino.

Quanto à Jerusalém, os bairros judaicos ficariam sob jurisdição israelense, enquanto os de maioria árabe fariam parte da capital palestina.

Como relatado em artigo publicado no periódico Jerusalem Quaterly, do Institute for Palestinian Studies, o então primeiro-ministro israelense Ariel Sharon declarou que o documento da Iniciativa de Genebra havia sido uma facada nas costas vinda da esquerda israelense. Mas lideranças do Partido Trabalhista de oposição, como Shimon Peres e Ehud Barak, também foram contrários, notadamente Barak.

Do lado palestino, a reação foi complexa, ainda segundo o artigo. Lideranças como Arafat e Abbas apoiaram a iniciativa. Já era esperada a oposição do Hamas, da Frente Popular e da Jihad Islâmica, mas não que uma forte condenação viesse de alguns setores da ala parlamentar do Fatah, com acusações de que o direito de retorno dos palestinos havia sido ignorado. Uma outra crítica levantada foi que as terras da Cisjordânia que seriam incorporadas a Israel eram de qualidade bem superior às que foram oferecidas em troca.

A questão dos refugiados nos tratados de paz

O número atual de refugiados palestinos é estimado em cerca de 5,5 milhões, vivendo principalmente na Jordânia, na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, Líbano e Síria. O direito de retorno dos refugiados às regiões de onde fugiram ou foram expulsos não ficou especificado nos Acordos de Oslo.

Nakba
Nakba: direito de retorno, 2015\Ashraf Ghrayeb

Entretanto, ficou estabelecido um período de 5 anos, ao final do qual o conflito entre israelenses e palestinos seria resolvido, incluindo o tema dos refugiados. Isso permitiu retomar o debate sobre a questão.

Pela Iniciativa de Genebra é oferecida aos palestinos a possibilidade de opção individual pela realocação em outros países, incluindo o Estado Palestino, ou mesmo Israel. No entanto, Israel poderia decidir o número de refugiados aos quais concederia o direito de residência, que muito provavelmente não seria elevado.

Os refugiados teriam o direito de receber compensação financeira pela perda de suas propriedades quando foram desalojados. Haveria também um fundo a ser desembolsado em prol de comunidades de refugiados em áreas assistidas pela UNRWA, a agência das Nações Unidas para refugiados da Palestina.

A Confederação da Terra Santa

Mais recentemente, surgiu a proposta que ficou conhecida como a Confederação da Terra Santa. Ela incorpora ou avança diversos mecanismos da Iniciativa de Genebra. O enfoque é na coabitação de dois estados soberanos. A expectativa é que em poucos anos após a implementação do acordo, os dois estados possam ter fronteiras permeáveis, liberdade de movimentação para pessoas e bens, assim como algumas instituições políticas em comum.

Em relação à importante questão dos refugiados, a Confederação introduz uma evolução do artigo 7 da Iniciativa de Genebra, no que diz respeito aos refugiados e aos colonos dos assentamentos judaicos na Cisjordânia.

A inovação consiste em que os colonos residentes em assentamentos situados mais para o interior da Cisjordânia poderiam permanecer, mas ficariam sujeitos à legislação do estado palestino. Um número equivalente de palestinos passaria a ter o direito de residir em Israel. Com isso, aumentaria o número de refugiados que, em tese, poderiam voltar a viver nas regiões das quais suas famílias eram oriundas, ou pelo menos nas proximidades.

Resta ver se tal proposta contaria com uma concordância majoritária de palestinos e judeus. No atual estágio de beligerância, em que o conflito ameaça se estender por toda a região com a inclusão de novos atores, a paz mais parece uma miragem no deserto.

Do lado palestino, Hamas, Jihad Islâmica, Frente Popular e setores mais radicais do Fatah precisariam renunciar a luta armada. Ajudaria no processo de conciliação se Israel abrisse as prisões e libertasse os cerca de 5 mil prisioneiros palestinos. Alguém como Marwan Barghouti, que se encontra encarcerado há 21 anos, com certeza seria uma voz a favor da busca da coexistência pacífica.

prisioneiros palestinos
Palestinos mantidos em prisões em Israel, manifestação em abril de 3023 \ Foto: Jaafar Ashtiyeh/AFP

Provavelmente Israel precisará ser convencido a aceitar uma solução justa para a questão palestina, através de uma intensa pressão externa. Se esta pressão não vier dos EUA e da União Europeia, então deveria partir do Sul Global.  A Bolívia já mostrou um caminho, ao romper relações com Israel. Outros países deveriam adotar o mesmo procedimento, ou no mínimo, retirar seus embaixadores de Tel Aviv.

Um outro caminho é aplicar o chamado BDS – boicote, desinvestimentos e sanções. Foram as sanções que forçaram a África do Sul a abolir o regime racista de Apartheid, e convocar eleições gerais que levaram à eleição de Nelson Mandela em 1994.

Vai ser necessária uma ampla mobilização mundial para que a “solução final” da questão palestina não seja a da tragédia. O povo palestino precisa finalmente alcançar sua tão almejada autodeterminação, seja através da solução de um ou de dois estados.

Notas:

  1. Os Acordos de Abraão, que visavam a normalização das relações diplomáticas entre Israel e vários países árabes, podem estar na origem dos ataques do Hamas a Israel em 8 de outubro.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, veiculado no canal da TV GGN e da TV Chacoalhando.

Brasil participará da nova intervenção externa no Haiti

Por Ruben Rosenthal

O envio de tropas ou contingentes policiais deveria ser precedido pela marcação de um calendário eleitoral, acertado com amplos setores da sociedade organizada.

Ariel Henry, primeiro-ministro de fato do Haiti
Ariel Henry durante o juramento de posse como primeiro-ministro em julho de 2021. Henry manteve contato telefônico com o suspeito do assassinato do presidente Jovenel Moïse, dias antes \ Foto: Valerie Baeriswyl/AFP

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai oferecer treinamento à Polícia Nacional do Haiti. Lula teria comunicado ao primeiro-ministro Ariel Henry, a oferta de parceria entre as duas polícias, quando de um encontro em junho dos dois governantes em Paris. A Polícia Federal estaria envolvida nas discussões. A informação de que o Brasil participaria do treinamento dos policiais haitianos foi veiculada pela BBC News Brasil em 25 de agosto.

O “contingente” brasileiro faria parte de uma força policial multinacional não comandada pela ONU, mas que precisaria ser aprovada pelo Conselho de Segurança, em um procedimento de terceirização inédito nas Nações Unidas.

Henry pertence ao partido de extrema direita PHTK, e tem sua legitimidade contestada por amplos setores haitianos. Ele ocupa o cargo por ter sido indicado pelo CORE1, grupo de países do qual o Brasil faz parte. Pesa inclusive sobre Henry, a suspeita de estar envolvido no assassinato do então presidente Jovenel Moïse, em 7 de julho 2021.

A parceria brasileira ocorreria através do envio de destacamentos de elite, como o BOPE, o Batalhão de Operações de Especiais do Rio de Janeiro. Policiais haitianos também viriam ao Brasil como parte do treinamento. O artigo da BBC News menciona também algumas formas com que essa parceria poderia se dar, como ajudar na criação de um serviço de inteligência para investigações e na capacitação de grupos táticos de pronta intervenção.

A possibilidade de participação do Brasil no treinamento da polícia haitiana ocorre no momento em que o Conselho de Segurança das Nações Unidas se reúne em 5 de setembro, para deliberar sobre uma nova intervenção externa, desta vez liderada pelo Quênia, que passaria a ter o mesmo papel que coube ao Brasil no período de 2004 a 2017.

A justificativa para a intervenção é o combate às dezenas de gangues que exercem controle em diversas áreas do país, inclusive na capital Porto Príncipe, as quais são atribuídas milhares de mortes e centenas de sequestros. Mas setores organizados do país se opõem a mais uma interferência estrangeira em solo haitiano.

O movimento justiceiro Bwa Kale

Em abril surgiu o movimento Bwa Kale, que passou a confrontar diretamente as gangues, conseguindo reduzir as ocorrências de sequestros. Um incidente em que uma multidão invadiu uma delegacia para linchar membros de uma gangue e queimar seus corpos, marcou o início de uma revolta nacional espontânea e sem líderes chamada Bwa Kale, que significa literalmente “madeira descascada”. O termo se refere à ferramenta usada em uma forma severa de castigo corporal em alguns lares haitianos.

O movimento reflete não apenas a vontade de seus participantes de identificar, capturar e matar os criminosos violentos, que há muito aterrorizam o país com sequestros, extorsões e assassinatos, mas também de empregar os mesmos métodos horríveis de violência que as gangues usam contra a população.

Dá para imaginar que o surgimento do Bwa Kale deve ter produzido ondas de choque, que puseram em alerta máximo as autoridades haitianas e seus apoiadores internacionais.

A organização de “direitos humanos” Human Rights Watch – HRW deu sua benção para a intervenção externa. Ligada ao partido democrata norte-americano e tendo como maior financiador, o bilionário e especulador George Soros, da Open Society, a organização publicou em 14 de agosto o relatório Vivendo um Pesadelo (Living a Nightmare).

Nele, HRW justifica a intervenção externa como “consensual, porque foi solicitada pelas autoridades haitianas”, mas também admite que os haitianos consideram essas mesmas autoridades como “ilegítimas e corruptas”, e ligadas a gangues.

Pesquisa de opinião recente encomendada pelo governo haitiano indicou que “69% da população apoiam a intervenção”, mas a consulta abrangeu apenas 1.330 haitianos, como revelado pela agência Reuters. O jornalista canadense Travis Ross questiona a metodologia a pesquisa em seu artigo no Haiti Liberté, inclusive se o minúsculo universo da amostragem seria representativo da população do país, de cerca de 11,5 milhões de habitantes. E acrescenta: “os protestos mostram claramente que muitos milhares de haitianos rejeitam qualquer intervenção militar estrangeira.

A CELAC e a Declaração de Buenos Aires

Em 23-24 de janeiro deste ano ocorreu a sétima cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos –CELAC, na Argentina. O primeiro-ministro haitiano, Ariel Henry, conseguiu que fosse incluída na declaração final (itens 101 e 102), uma convocação a todos os países membros, que considerassem as opções apresentadas pelo secretário-geral das Nações Unidas, Antônio Guterres, na carta de 8 de setembro de 2022 que ele dirigira ao Conselho de Segurança  (S/2022/747).

O objetivo do secretário-geral era a criação de uma força multinacional especializada que fora solicitada pelo governo do Haiti, “para assistir as forças de segurança haitianas….na luta contra a proliferação do crime organizado, tráfico ilegal de armas e erradicar as gangues que tornaram refém o país”. A CARICOM, a Comunidade do Caribe, também se colocou a favor da intervenção.

Conforme relatado no periódico Haiti Liberté, Guterres havia proposto que “um ou vários Estados-membros, agindo bilateralmente a convite e em cooperação com o Governo do Haiti, pudessem implementar com urgência, uma força de ação rápida para apoiar a Polícia Nacional Haitiana”. O Secretario apresentou então dois enfoques diferentes:

Opção 1: uma “força-tarefa policial multinacional” que seria apenas consultiva, enquanto a Polícia Nacional do Haiti (PNH) continuaria a ser a única força na linha de frente do policiamento operacional e das operações contra as gangues. Na teoria, essa força-tarefa apenas aconselharia, avaliaria e treinaria a PNH, enquanto “examina as ameaças à segurança nacional e à ordem pública” que as gangues representam.

Opção 2: uma “força especial multinacional”, que se envolveria militarmente em “operações conjuntas de ataque, isolamento e contenção em todo o país” contra as gangues.

Ainda Segundo Guterres, em qualquer das duas opções, a intervenção estrangeira seria conduzida pelo Haiti, ficando a PNH na liderança. O fato é que a Declaração de Buenos Aires concedeu legitimidade a Ariel Henry, um governante que está no poder sem ter o aval da população de seu país, mas com apoio dos Estados Unidos e dos demais membros do grupo CORE.

Quênia aceita liderar a intervenção

Desde outubro de 2022, os EUA, juntamente com o Canadá e França, vinha buscando uma liderança para a coalizão que promoveria a intervenção do Haiti. Os possíveis candidatos a serem convencidos na ocasião eram o próprio Canadá, além do México e Noruega.

Ainda no início de julho deste ano, os EUA prosseguiam ativamente na busca por alguma nação para chefiar uma força multinacional para intervir no Haiti, conforme declarou o secretário de estado Antony Blinken na Cúpula do Caribe, em Georgetown, quando se reuniu com Ariel Henry.

Em 14 de julho, o Conselho de Segurança da ONU aprovou por unanimidade a Resolução 2692, que solicitava a Guterres que delineasse “toda a gama de opções de apoio que as Nações Unidas poderiam fornecer para melhorar a situação de segurança”, incluindo “treinamento adicional para a Polícia Nacional Haitiana, apoio a uma força multinacional não pertencente às Nações Unidas ou uma possível operação de manutenção da paz”.

Em 29 de julho, o ministro do exterior de Quênia, Alfred Mutua, anunciou via Twitter que estava considerando aceitar a liderança da força multinacional, a pedido do grupo de países, “Amigos do Haiti”. Mutua acrescentou que a decisão estava de acordo com seu comprometimento com o Pan-Africanismo. Em 20 de agosto, uma missão queniana chegou ao Haiti para fazer uma avaliação inicial da segurança no país caribenho. 

O Quênia enviaria mil oficiais de polícia para reforçar a PNH. Ruanda, Bahamas, Barbados, e Jamaica também fariam parte da missão. No entanto, a polícia queniana é notória por sua brutalidade, um legado da época do domínio colonial, quando o papel da polícia era servir aos interesses da coroa britânica.

Anistia Internacional questiona a liderança do Quênia

Em carta dirigida aos membros do Conselho de Segurança da ONU em 18 de agosto de 2023, a organização “expressa profunda preocupação com o anúncio de que policiais quenianos podem liderar uma ‘força internacional especializada’, conforme solicitado pelo governo haitiano, para ajudar temporariamente a Polícia Nacional Haitiana (PNH) a lidar com a insegurança causada pela violência de gangues”. A Anistia Internacional salienta na carta, o histórico de violência das forças de segurança quenianas contra manifestantes, que vêm causando no país africano dezenas de mortes de adultos e crianças.  

O documento ressalta também que, quando da intervenção anterior no Haiti (2004 a 2017), ocorreram dezenas de casos de abusos cometidos pelas tropas da Minustah, sem que ocorresse a responsabilização dos culpados e o acesso à justiça para as vítimas desses abusos. E acrescenta que antes de qualquer emprego de forças externas, deveriam ser implementados mecanismos de salvaguarda dos direitos das populações locais.  

A Anistia Internacional também abordou na carta, a questão do tratamento que é dispensado aos haitianos que buscam refúgio em outros países das Américas,  onde “governos de toda a região têm efetuado deportações em massa e políticas racistas”. E complementa: “uma resposta responsável e humana aos haitianos que buscam por segurança precisa ser implementada nas Américas, concomitantemente a qualquer discussão sobre o aumento da estabilidade no país”.

Lula visita tropas brasileiras da Minustah em 2004
Lula visita tropas atuantes na Minustah em 2004 \ Foto: Ricardo Stuckert/Agência Brasil

Novo presidente da CELAC rejeita intervenção

A partir da sétima cúpula da CELAC, a organização passou a ser liderada por Ralph Gonsalves, primeiro-ministro de São Vicente e Granadinas, em substituição ao presidente argentino, Alberto Fernández. Gonsalves já se posicionara anteriormente de forma categórica que “qualquer intervenção no Haiti precisaria ter a adesão das partes interessadas haitianas”.

Gonsalves também reconhece que muitos haitianos não aceitam a legitimidade do atual governo haitiano do primeiro-ministro, Ariel Henry. Ele está relutante em apoiar qualquer forma de intervenção externa no Haiti.

Agora, ocupando a presidência da CELAC, o líder do pequeno arquipélago ao sul do mar do Caribe, que conta com uma população de cerca de 107 mil habitantes, tentará contrabalançar a influência de Lula junto aos líderes regionais, salienta Travis Ross na terceira parte de seu artigo sobre os planos dos EUA e do Canadá de promoverem a interferência externa no Haiti. Conseguirá?

Concluindo:

Parece que o Brasil decidiu se colocar do lado errado da luta pela autodeterminação do povo haitiano, ao ajudar a manter no poder, por tempo ainda indeterminado, um governo ilegítimo e claramente impopular. O envio de tropas ou contingentes policiais deveria ser precedido pela marcação de um calendário eleitoral, acertado com amplos setores da sociedade organizada, que precisaria também ter voz sobre os diversos aspectos de uma possível intervenção externa.

Nota: O grupo CORE é composto por representantes da Alemanha, Brasil, Canadá, Espanha, EUA, França, União Europeia e Organização dos Estados Americanos.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, veiculado no canal da TV GGN e da TV Chacoalhando.