Aborto nos EUA: a solução está no aumento de juízes da Suprema Corte?

Por Ruben Rosenthal

Restaurar o equilíbrio entre conservadores e liberais na Corte, talvez seja a única forma de reverter o progressivo aumento da cisão na sociedade norte-americana.

Abortion is a extremely divisive theme for the north-americanssive
Manifestantes contra e favor da legalização do aborto. A sociedade norte-americana se encontra dividida.

Conforme já era esperado, a Suprema Corte norte-americana decidiu por 5 a 4 reverter o caso Roe vs. Wade que estabelecera o direito constitucional ao aborto em 1973, com base na 4a e 14a emendas da Constituição. Agora os estados poderão estabelecer legislações específicas. Estima-se que em 26 estados do país o aborto será proibido ou terá severas restrições.

As mudanças afetarão principalmente mulheres de baixa renda, que não terão condições financeiras de viajar para outros estados para interromper a gravidez. Algumas empresas, como a Amazon e a Apple, já anunciaram que pagarão as despesas de suas funcionárias que precisarem viajar.

Mas outras liberdades civis também poderão ser afetadas com a nova interpretação da Corte de maioria conservadora. Voltam a surgir no país vozes de peso que defendem o aumento no número de juízes da Corte, de forma a restabelecer o equilíbrio entre liberais e conservadores.

As hesitações de Biden

Na sequência da decisão da corte, Biden se limitou a declarar que “os eleitores terão a palavra final”. Este posicionamento indicou que a intenção do presidente era de capitalizar em cima do drama de milhares de mulheres, visando atrair votos para o partido Democrata nas eleições legislativas de novembro próximo. Mas o presidente parece ter se dado conta que, ao contrário, este posicionamento dúbio estava trazendo imenso desgaste político, no momento em que seu apoio popular já se encontra bastante prejudicado pela alta inflação, que está próxima dos dois dígitos.

Em 30 de junho, após criticar o “comportamento vergonhoso” da Suprema Corte, Biden declarou que irá impedir que a oposição obstrua a votação no Senado que garantiria o direito ao aborto em todo o país: “Temos que codificar Roe vs. Wade na lei, e a forma de conseguir é garantindo que o Congresso faça isso”, disse Biden. “E se a obstrução (pela oposição) for atrapalhar, será como no (caso do) direito ao voto, nós criaremos….uma exceção à obstrução (específica) para essa ação.”

Só que Biden parece se esquecer que, no caso da votação da reforma eleitoral ocorrida em janeiro deste ano, dois senadores democratas “problemáticos”, Joe Manchin e Kyrsten Sinema, se posicionaram com os republicanos, e a legislação não foi aprovada. No caso da questão do aborto, Biden e a liderança democrata precisarão negociar muito para superar a dissidência interna no partido.

A 14a emenda

A 14a emenda foi criada em 1868, no pós-guerra civil nos EUA, para impor aos estados do Sul escravocrata direitos individuais aos ex-escravos.  Conforme lembrou o professor Rafael Ioris, no programa Agenda Mundo, ao longo do século 20, a 14a emenda foi interpretada para garantir a ampliação de direitos individuais, como a dessegregação nas escolas (1954), e estendeu o direito à privacidade (estabelecido pela 4a emenda) ao direito ao aborto (1973), e, posteriormente, ao do casamento entre pessoas do mesmo sexo (2015).

Ioris ressaltou ainda que estes direitos não estão explicitados na Constituição: “A interpretação que foi concedida do direito ao aborto nunca foi absoluta, tanto que possibilitou que os estados regulamentassem de forma diversa sua aplicação. Por se tratar de uma interpretação (da emenda), mudanças na composição da Suprema Corte podem rever decisões anteriores.”

Obama e Biden não cumpriram promessas de campanha

Conforme o ativista político e youtuber Jimmy Dore ressaltou em seu programa, quando das últimas eleições presidenciais em 2020 Biden declarou que, se eleito, enviaria imediatamente para votação no Congresso a codificação da decisão da Corte no caso Roe vs Wade, o que não ele não fez. A codificação da lei do aborto pela autoridade federal invalidaria quaisquer leis estaduais anti-aborto que estivessem em conflito com as cláusulas da lei federal.

Antes dele, Barack Obama também dissera que a primeira coisa que faria como presidente seria assinar o ato da “liberdade de escolha”. Naquela ocasião Obama dispunha de maioria expressiva tanto na Câmara como no Senado, o que não é o caso de Biden agora.

Atualmente, a maioria democrata na Câmara é de 220 a 210, enquanto que no Senado 50 assentos são ocupados pelos republicanos, 48 pelos democratas, e 2 por independentes que votam com os democratas. Em caso de empate 50-50, a decisão cabe ao voto da vice-presidente, Kamala Harris. No entanto, a atual maioria democrata no Senado é ilusória, já que os republicanos podem fazer uso do mecanismo de obstrução (filibuster, em inglês), válido para casos polêmicos.

A obstrução no Senado

Para que uma legislação seja aprovada no Senado sem sofrer obstrução pela oposição, é necessário que uma maioria qualificada de 60 votos seja alcançada. No passado, o mecanismo de obstrução já foi utilizado para barrar a aprovação de projetos de lei que visavam combater a discriminação racial, conforme relatado pelo Centro Brennan por Justiça (Brennan Center for Justice), um think tank progressista norte-americano da área advocatícia.

Quando o projeto de lei chega ao plenário para votação após a conclusão dos debates, basta uma maioria simples de 51 votos para aprová-lo. Entretanto, a oposição pode estender indefinidamente os debates, de forma obstrutiva, a não ser que o projeto alcance um mínimo de 60 votos. Biden anteriormente se posicionara contrariamente aos apelos vindos da ala liberal do Partido Democrata para que fosse abolido de vez o mecanismo da obstrução.

Por vezes, alguns tipos de leis foram isentadas da regra, como em acordos comerciais. Biden tentou criar uma exceção para o caso da reforma eleitoral e não conseguiu. E agora ele declara que vai garantir uma exceção para tornar lei federal o parecer do caso Roe vs Wade. Um possível complicador é que codificar Roe vs Wade significaria ignorar decisões da Suprema Corte posteriores a 1973, que possibilitaram a estados governados por conservadores impor algumas restrições ao aborto. É possível, e mesmo provável, que os senadores Manchin e Sinema não aceitem que Roe vs Wade se torne lei federal, se ficarem de fora as restrições posteriores aceitas pela Corte.

Existe um plano B?

Não está claro ainda se Biden está buscando alternativas, caso não consiga negociar um consenso com os dissidentes democratas. Enquanto esta situação não se define, uma alternativa relativamente simples de ser implementada a curto prazo foi sugerida pela congressista Alexandria Ocasio-Cortez: que nos estados em que o aborto seja totalmente proibido ou sofra fortes restrições, a interrupção da gravidez possa ser conduzida em clínicas estabelecidas em espaços que estejam sob jurisdição federal.

Esta seria evidentemente uma solução emergencial, pois é provável que um futuro presidente republicano viesse a reverter a medida. E esta é a perspectiva que se coloca já para 2024, caso os Democratas não consigam recuperar o apoio que vem perdendo desde a posse de Biden.

Mas a questão da proibição do aborto não é a único trauma que poderá afligir amplos setores da sociedade norte-americana. Com a nova interpretação da14a emenda pela Suprema Corte ficou também aberto o caminho para que outros direitos já estabelecidos sejam revertidos, como o casamento de pessoas do mesmo sexo e o controle de natalidade.

Falta legitimidade à Suprema Corte dos EUA

Na origem dos atuais problemas está a expressiva maioria conservadora na Suprema Corte (6 a 3), alcançada principalmente através de um lobby intenso de grupos bancados por bilionários, conforme detalhado em artigo anterior do blog.

No governo Obama, um doador desconhecido contribuiu com 17 milhões de dólares para barrar a indicação do juiz Merrick Garland para a Suprema Corte, e apoiar posteriormente a indicação de Neil Gorsuck para a mesma vaga, já na administração Trump. Em 2018, o grupo Judicial Crisis Network recebeu possivelmente do mesmo doador outros 17 milhões para intermediar apoio à indicação de Brett Kavanaugh, que precisou superar acusações de que cometera abusos sexuais na juventude.

Outro grupo atuante é a Federalist Society, uma influente organização de advogados conservadores e ultraliberais, com ligações próximas a juízes da Suprema Corte. O advogado Leonard Leo, então vice-presidente executivo da entidade, foi o principal articulador do plano para garantir a indicação de juízes conservadores para as cortes federais, como também para influenciar no desfecho de causas. Detalhes da estratégia adotada foram relatados pelo jornal The Washington Post, em artigo de maio de 2019.

Para a senadora democrata Elisabeth Warren, que foi pré-candidata nas eleições presidenciais de 2020, a solução estaria em expandir a Corte: “Acredito que precisamos restaurar a confiança em nossa Corte, e isso significa que precisamos de mais juízes na Suprema Corte dos Estados Unidos. Já aconteceu antes. Fizemos isso antes e precisamos fazê-lo novamente.”

De fato, isso já foi feito antes, por 7 vezes. O artigo 3 da Constituição dos Estados Unidos, na seção 1, concede esta autoridade ao Congresso. Restaurar o equilíbrio entre conservadores e liberais na Corte, talvez seja a única forma de reverter o progressivo aumento da cisão na sociedade norte-americana. Resta ver se Biden conseguirá se superar e estar à altura da gravidade do atual momento.

Ruben Rosenthal é professor aposentado da UENF, e responsável pelo blogue Chacoalhando.

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