Tio Sam financia rappers na guerra híbrida contra Cuba

Por Ruben Rosenthal

Agentes financiados pelos EUA associados ao Movimento San Isidro defendiam a intervenção em Cuba meses antes das mídias sociais começarem a criticar o governo cubano de forma massiva.

Patria o CIA
Pátria ou CIA: Músicos do rap Patria Y Vida, Foto editada pelo The Grayzone \ Foto original: Yotuel Romero/Instagram

As cenas de um carro de polícia virado por manifestantes ocorridas no município de 10 de Outubro e coquetéis molotov atirados na polícia, ilustram bem o que foram as amplas manifestações de rua ocorridas em 11 de julho em Cuba (ver vídeo).

Segundo relato da BBC News Mundo, os protestos se iniciaram na cidade de San Antonio de los Baños, sudoeste de Havana, e de lá se espalharam por cerca de 20 vilarejos e cidades de todo o país. O artigo chama atenção para a questão do agravamento da situação econômica na ilha e do aumento das mortes por Covid-19.

Mas os veículos de mídia do Ocidente não mencionam o papel subversivo desempenhado pelos EUA, ao incentivar e financiar a dissidência política de artistas e rappers cubanos, reunidos principalmente no Movimento San Isidro. O rap anticomunista “Patria y Vida” se tornou o hino dos protestos, segundo a revista Rolling Stone.

O slogan do Movimento San Isidro é uma corruptela do lema “Patria o Muerte”, que Fidel Castro usou pela primeira vez no memorial aos trabalhadores das docas de Havana, mortos em 1960 em atentado da CIA.

Os EUA e a estratégia da guerra híbrida

Os EUA sabem tirar proveito dos sentimentos nacionalistas de minorias, e das situações de desavenças internas em países que atravessam uma crise econômica, para então lançarem mão de seu arsenal de táticas de guerra híbrida.

Foi assim, ao incentivarem os movimentos separatistas da etnia Uigur, na China, e dos Tártaros, na Rússia. Bem como ao fomentarem, com sucesso, o afastamento de Dilma Roussef e do PT do poder no Brasil, e das tentativas ainda não materializadas, de promoverem a mudança de regime na Bielorrússia, de Lukashenko, e em Cuba, que busca seu caminho ao socialismo.

É evidente que a estratégia norte-americana precisa encontrar um campo fértil para prosperar. No caso de Cuba, as condições econômicas e políticas estavam postas, até mesmo porque o Departamento de Estado norte-americano deu a sua contribuição para tanto.

Crise econômica

A historiadora brasileira Joana Salém mostra como a precária situação econômica atual, que fermentou a discórdia em Cuba, foi o resultado de três fatores principais: a pandemia da Covid-19, paralisando o turismo e reduzindo o PIB em 11%; o boicote norte-americano, agravado ainda mais com a suspensão por Trump do envio de divisas à ilha pelos familiares residentes nos EUA; e a reforma monetária e cambial promovida pelo governo cubano.

Conforme Salém relata, a reforma denominada de Tarea Ordenamiento eliminou o chamado dólar cubano, tornando o peso cubano a única moeda nacional; foi também criada uma moeda transitória na forma de um cartão, a Moneda Libremente Convertible, com valor de 25 pesos.

Ao mesmo tempo, foram eliminados subsídios a itens de consumo diário, aumentadas as tarifas, e os salários foram quintuplicados. No entanto, as medidas resultaram em descontrole financeiro que afetou negativamente o poder de compra dos cubanos de produtos básicos. A insatisfação da população foi inevitável.

Crise política

Em meio às sérias dificuldades econômicas por que vem passando, o povo cubano sente que suas demandas e insatisfações não são escutadas pelo governo, avalia Salém. Segundo a historiadora, “existe um engessamento ou quebra dos canais de poder popular nas estruturas políticas do socialismo cubano”. Assim, restou aos cubanos expressarem nas ruas sua raiva com o governo. Para os cubanos de esquerda, o governo precisa criar novos mecanismos de decisão e de poder popular, complementa ela.

Anti-government protesters gather at the Maximo Gomez monument in Havana, Cuba, Sunday, July 11, 2021. Hundreds of demonstrators took to the streets in several cities in Cuba to protest against ongoing food shortages and high prices of foodstuffs. © Eliana Aponte/AP
Manifestantes contra o governo cubano reunidos no monumento Maximo Gomez, em Havana, Cuba, 11 de julho de 2021 \ Foto: Eliana Aponte/AP

No entanto, os protestos de julho foram fomentados através de ações de entidades norte-americanas tradicionalmente envolvidas na desestabilização política de governos que não seguem a cartilha de Washington. O imperialismo norte-americano procurará canalizar ainda mais o sentimento que resultou na revolta que se espalhou pela ilha em 11 de julho, para acirrar a crise política visando a mudança de regime.

Os principais setores dos EUA que financiam e incentivam as ações de desestabilização em outros países são em geral os mesmos. A USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) e a NED (Fundação Nacional para Democracia). Um das entidades que recebe financiamento da NED é a Atlas Network, que atuou na desestabilização do governo Roussef no Brasil, através de sua cria, o MBL de Kim Kataguiri “et caterva“.

Contrarrevolução em Cuba: EUA financiam a dissidência cultural e artística

Conforme relatado pelo jornalista Max Blumenthal no The Grayzone (em espanhol, em inglês), na última década os EUA utilizaram milhões de dólares para seduzir rappers, músicos, artistas e jornalistas cubanos. O relato que se segue contém extratos do extenso e detalhado artigo de Blumenthal.

Em 2009, um artigo no Journal of Democracy, órgão noticioso da NED, esboçou um plano ambicioso para unir e mobilizar contra “o regime altamente repressivo” de Cuba, os despossuídos, os jovens desempregados, os que ficaram à margem do sistema, atraídos para as drogas, crime e prostituição.

A estratégia recomendada pelos autores do artigo, Carl Gershman e Orlando Gutierrez-Boronat, era que estes grupos não cooperassem com as instituições cubanas. Gershman é fundador e diretor da NED, enquanto Boronat – cubano de nascimento – é secretário geral da USAID, e fervoroso defensor da invasão de Cuba pelos EUA. Boronat foi recebido por Jair Bolsonaro, poucos dias antes da posse deste na presidência do Brasil.

No mesmo ano em que o influente artigo de Gershman e Gutierrez foi publicado, Washington adotou uma audaciosa operação secreta baseada na estratégia sugerida. A USAID iniciou um programa para desencadear um movimento de jovens contra o governo de Cuba, cultivando e promovendo artistas locais de hip-hop.

Devido à sua longa história como uma frente da CIA, a USAID terceirizou a operação para a Creative Associates International, uma empresa com sede em Washington DC, com seu próprio histórico de ações secretas. A empresa enviou a Cuba o sérvio Rajko Bozic, que pertencera ao grupo Otpor! (resistência, em croata), apoiado pela CIA. O grupo ajudara a afastar do poder o líder nacionalista da Sérvia, Slobodan Milosevic.

Posando como um promotor musical, Bozic se aproximou de um grupo de rap cubano chamado Los Aldeanos, que era conhecido por seu hino anti-governo, “Rap is War” (Rap é Guerra). O agente sérvio não revelou que trabalhava para a CIA, alegando ser um profissional de marketing. A inteligência cubana descobriu contratos ligando Bozic à USAID, e expôs a operação.

Conforme publicado no insuspeito jornal britânico Daily Mail, em 2014, a USAID foi novamente exposta por um vazamento que revelou que a agência contratara a Creative Associates para organizar uma série de falsas oficinas de prevenção do HIV, que se tratavam, na verdade, de seminários de recrutamento político.

Na mesma época, o então presidente Barack Obama apresentou seu plano para normalizar as relações com o governo de Cuba, condicionado a que Cuba ampliasse o acesso à internet. Talvez um dia o ex-presidente revele se foi uma armadilha arquitetada para abrir as portas para a interferência norte-americana na ilha, o “cavalo de Tróia” digital.

Expansão da Internet abre as portas para infiltração dos EUA

A rede de internet 3G chegou a Cuba em 2018, permitindo que jovens cubanos acessassem mídias sociais como Facebook e YouTube em seus telefones celulares. A NED e a USAID exploraram a abertura para construir um potente aparato de mídia on-line anti-governo. Novos veículos de viés tóxico, como CubaNet, Cibercuba e ADN Cuba, propagaram acusações ao regime, bem como ofensas ao presidente cubano, Miguel Diaz-Canel.

Para Ted Henken, um acadêmico dos EUA e autor de “A Revolução Digital de Cuba”, os líderes cubanos calcularam mal, não percebendo que [o acesso expandido à internet] rapidamente se voltaria contra eles.

Ainda em 2018, a NED destinou cerca de US$ 500.000 para o recrutamento e treinamento de jornalistas antigoverno, e para estabelecer novos meios de comunicação. Outra subvenção da NED encaminhou fundos para “promover a inclusão de populações marginalizadas na sociedade cubana e fortalecer uma rede de parceiros na ilha”, implicando que seria direcionada aos afro-cubanos.

A NED deu muita ênfase à infiltração na cena hip-hop de Cuba. Também em 2018, a Cuban Soul Foundation recebeu US$ 80.000 para “capacitar artistas independentes a produzir, executar e expor seus trabalhos em eventos comunitários sem censura”. Uma ONG com sede na Colômbia, chamada Fundación Cartel Urbano, recebeu US$ 70.000 para “capacitar artistas cubanos de hip-hop como líderes na sociedade”.

A propaganda antigoverno e a infiltração dos EUA no cenário cultural de Cuba que acompanhou a expansão da internet, provocaram uma forte reação da liderança do país. O governo se deu conta, tardiamente, que nunca deveria ter confiado em Obama, avalia a jornalista cubana Cristina Escobar, conforme relato no The Grayzone.

Poucas horas depois de tomar posse, em abril de 2018, Diaz-Canel propôs o Decreto 349. A nova medida passou a exigir que todos os artistas, músicos e artistas obtenham aprovação prévia do Ministério da Cultura antes de divulgar seus trabalhos.

Rapidamente, um coletivo de artistas e músicos se mobilizou para protestar contra o decreto. O grupo adotou o nome de Movimento San Isidro, nome do bairro de Havana Velha onde vivem vários de seus membros. O novo movimento se apresentou diretamente aos influenciadores culturais do Norte Global como um coletivo diversificado de criadores visuais e rappers independentes, lutando por liberdade artística.

A NED e a USAID continuaram a aprofundar a influência norte-americana em Cuba. A ONG Instituto para Relatos de Guerra e Paz (IWPR, na sigla em inglês), recebeu US$ 145.230 da NED em 2020 para “fortalecer a colaboração entre jornalistas independentes cubanos”, e treiná-los nas mídias sociais.  Entre os beneficiários inclui-se El Estornudo, que também foi financiado pela Open Society, de George Soros, para criticar a resposta do governo cubano à Covid-19.

Outro veículo antigoverno que opera sob os auspícios da IWPR é Tremenda Nota, um site com temática LGBTQ que acusa rotineiramente o governo cubano de homofobia e transfobia, mesmo tendo a administração Diaz-Canel atuado no sentido de legalizar o casamento gay, aberto o exército para soldados gays e iniciado eventos oficiais do orgulho, relata o The Grayzone.

Em 6 de novembro de 2020, um policial apareceu na casa de Denis Solis, um rapper afiliado ao Movimento. Solis usou a câmera do celular para transmitir ao vivo para o Facebook, os insultos antigays que dirigiu ao policial. A sentença de 8 meses de prisão que Solis recebeu por “desacato” gerou a faísca para a greve de fome de novembro de 2020, que levou o San Isidro ao palco global.

Luis Manuel Otero, coordenador do Movimento San Isidro, em atos de desrespeito à bandeira de Cuba
Luis Manuel Otero, coordenador do Movimento San Isidro, em atos de desrespeito à bandeira de Cuba

A greve foi realizada em Havana Velha, na casa do coordenador do Movimento, Luis Manuel Otero Alcántara. Artista afro-cubano, Otero atraiu a ira do governo ao desrespeitar a bandeira cubana, inclusive enrolando-a em torno de seu torso nu, sentado no vaso sanitário. Em outra exibição provocativa, Otero reuniu crianças para correr pelo bairro, agitando uma bandeira americana gigante, o que desencadeou uma resposta policial imediata, e sua própria detenção por 4 dias.

A visita ao local da greve de fome pelo jornalista e reconhecido autor literário cubano, Carlos Manuel Álvarez, ajudou a galvanizar o interesse da mídia internacional. Vindo das fileiras da elite educada de Cuba, Álvarez logo encontrou espaço na seção de opinião do The New York Times, para comercializar San Isidro para um público liberal nos EUA.

greve de fome de membros do Movimento San Isidro
Jornalista Carlos Manuel Álvarez (centro) em solidariedade à greve de fome de Luis Miguel Otero (à direita) e do rapper Maykel Osorbo (à esquerda), novembro de 2020.

Em 27 de novembro de 2020, um grupo de artistas começou um sit-in do lado de fora do Ministério da Cultura. Boa parte deles não era de opositores do governo, e buscavam o diálogo com o ministro. Entretanto, os veículos da mídia ocidental entrevistaram apenas os membros do Movimento San Isidro.

A intensa cobertura alçou o San Isidro ao cenário internacional, ganhando a atenção de artistas e escritores famosos nos EUA e Europa. O Departamento de Estado norte-americano alcançara seu objetivo.

O Movimento aprofundou seus laços com a direita internacional através da fundação CADAL, com base na Argentina, que nomeou o San Isidro para o Prêmio Freemuse de Expressão Artística 2021. A CADAL está no centro de uma rede de organizações libertárias que alavancam o dinheiro corporativo para impulsionar o mercado livre em toda a América Latina. Entre os parceiros mais próximos da CADAL está a Atlas Network, o think tank que também é patrocinado pelo Departamento de Estado dos EUA, através da NED.

Em maio de 2021, depois que Otero foi novamente detido pela segurança cubana, uma carta aberta ao presidente Diaz-Canel, assinada por um elenco de figuras culturais negras e afro-latinas proeminentes, apareceu na New York Review of Books, exigindo sua libertação.

Patria y Vida, o rap favorito do Departamento de Estado dos EUA

Patria y Vida, a primeira canção diretamente associada à mobilização de cubanos para protestar contra o governo, foi gravada em Miami. A canção apresenta três artistas cubanos auto-exilados: Yotuel do grupo de hip-hop Orishas, o duo de reggaeton Gente de Zona e o cantor e compositor Descemer Bueno. Eles foram complementados por dois membros do Movimento San Isidro, os artistas de hip-hop, El Funky e Maykel “Osorbo” Castillo.

The opening image of the video of Patria y Vida
Imagem de abertura do vídeo Patria y Vida

Em 12 de março deste ano, Yotuel e Gente de Zona realizaram uma vídeo-chamada com funcionários do Departamento de Estado, informando-os sobre o sucesso da canção e das demandas do Movimento San Isidro. Ao Parlamento Europeu, Yotuel pediu a “condenação do governo cubano, para que a ilha tenha forças para se rebelar“.

Três meses depois, a USAID emitiu um edital no valor de US$ 2 milhões, para subvenção de organizações da “sociedade civil” que procurassem promover a mudança de regime em Cuba. O documento enfatizou a necessidade de programas que “apoiem populações marginalizadas e vulneráveis, incluindo, mas não se limitando a jovens, mulheres, LGBTQI+, líderes religiosos, artistas, músicos e indivíduos de ascendência afro-cubana”.

11 de julho. Otero emitiu um chamado no Twitter em nome do Movimento San Isidro, para que manifestantes se reunissem no Malecón, litoral da cidade de Havana. As ocorrências iniciais em San Antonio de los Baños podem também ter sido em resposta à convocação de Otero. Os protestos então se espalharam pela ilha.

Joe Biden prometeu adicionar novas e sanções esmagadoras às que haviam sido impostas por Trump. As indicações são de que a administração democrata não retornará ao processo de normalização iniciado por Obama.

O movimento Vidas Negras Importam se posicionou no Instagram com uma declaração de solidariedade com a revolução cubana, recebendo críticas de setores conservadores norte-americanos.

Para o jornalista Max Blumenthal, os protestos de julho em Cuba foram arquitetados na Flórida. Através da hashtag  #SOSCuba, agentes financiados pelos EUA associados ao Movimento San Isidro defendiam a intervenção em Cuba meses antes das mídias sociais começarem a criticar o governo cubano de forma massiva.

A nova liderança cubana, que se seguiu ao período dos irmãos Castro na presidência do país e na secretaria do Partido Comunista Cubano, tem um enorme desafio pela frente, para que a contrarrevolução não seja bem sucedida.

Como salientou a historiadora Joana Salém, o governo precisaria reativar os canais de poder popular nas estruturas políticas, através de novos mecanismos de decisão. Ou seja, aprofundar a revolução socialista, ampliando a democracia popular.

O autor é professor aposentado da UENF e responsável pelo blogue Chacoalhando.

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